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Diálogo entre a Psicodinâmica no Trabalho e a Ergonomia da Atividade

A SAÚDE NO TRABALHO: AS ABORDAGENS DA PSICODINÂMICA DO TRABALHO E DA ERGONOMIA DA ATIVIDADE

3.3. Diálogo entre a Psicodinâmica no Trabalho e a Ergonomia da Atividade

O diálogo entre as duas abordagens ainda é inicial, portanto, poucos são os estudos com esse objetivo. Neste projeto, apresentar-se-ão dois estudos que buscam realizar a articulação entre a psicodinâmica do trabalho e a ergonomia da atividade.

O primeiro esforço em articular as duas abordagens consiste no estudo que Ferreira e Mendes (2001) realizaram com servidores de atendimento ao público, em instituição pública do Distrito Federal. O estudo teve como objetivo abordar a inter-relação entre a atividade de trabalho e as vivências de prazer-sofrimento, na busca de identificar seu impacto no bem-estar psíquico dos atendentes.

Para isso, as abordagens fundamentaram-se em duas premissas teóricas interdependentes: a atividade e o prazer-sofrimento. A atividade, que é a ação do sujeito em situação de trabalho, foi compreendida como um processo permanente de regulação que visa a responder aos objetivos da tarefa; e o prazer-sofrimento, enquanto vivência subjetiva do próprio trabalhador, é compartilhada coletivamente e, ao mesmo tempo, é influenciada pela atividade de trabalho. Para os pesquisadores, o trabalho transmite implicitamente um custo humano que se expressa nas vivências de prazer-sofrimento. Desta maneira, há impacto no bem-estar do trabalhador.

Os resultados mostraram a atividade de trabalho do atendente, a qual se

caracterizou por três aspectos interdependentes, que são: a) trabalho mental intenso; b) condições ambientais, materiais e instrumentais de trabalho limitadoras para a execução das atividades; c) multiplicidade de fatores no trabalho, gerando dificuldades para realizá-lo, como um elemento que explica a predominância das vivências de sofrimento.

Apesar das limitações, o estudo contribui para a perspectiva do diálogo entre as duas abordagens, uma vez que a análise da atividade, elemento central da ergonomia, produz uma radiografia do ambiente de trabalho, ao mesmo tempo que corrobora a psicodinâmica do trabalho em seus estudos sobre o prazer-sofrimento. Além disso, diante da realidade do trabalho no atual contexto histórico, é significativa a articulação de duas abordagens na busca da saúde no trabalho.

O segundo estudo que buscou realizar o diálogo entre as duas disciplinas foi realizado por Ferreira e Mendes (2003) com auditores-fiscais da Previdência Social brasileira. O referido estudo apontou as inter-relações possíveis entre as duas disciplinas, primeiro sob os aspectos conceituais e, segundo, na proposição de novas categorias conceituais.

O diálogo, ainda em construção, entre as duas disciplinas apresenta similaridades nos objetos de estudo e nos objetivos, à medida que ambas estudam a inter-relação dos trabalhadores com os contextos de trabalho e compreendem tal contexto como um espaço de contradição. Neste sentido, para as disciplinas, há a utilização, pelos trabalhadores, de estratégias tanto de mediação individual quanto coletiva, na busca de superar as diversidades presentes nas situações reais de trabalho. Desse modo, tanto uma como a outra centram os seus estudos na análise dos problemas que podem estar causando sofrimento no trabalho.

As duas disciplinas se afinam, também, na compreensão de que o trabalhador é portador de uma subjetividade própria, pois participa de maneira ativa na construção da sua subjetividade no trabalho.

Outro elemento de afinidade das referidas disciplinas, apontada pelos pesquisadores, diz respeito ao caráter interdisciplinar. A ergonomia, como já foi abordado anteriormente, desde a sua origem se referencia na psicologia e na fisiologia e, ao longo do seu desenvolvimento, tem buscado conhecimentos de outras áreas, como a sociologia. A psicodinâmica, por sua vez, tem suas bases na psicanálise, na hermenêutica e na sociologia.

As afinidades epistemológicas propiciaram a elaboração de novos conceitos, os quais serão apresentados a seguir, e são referenciais do presente projeto de investigação.

Um primeiro conceito construído por meio do diálogo entre as disciplinas diz respeito ao trabalho. Este é definido como uma “(...) atividade humana ontológica finalística por meio do qual os trabalhadores forjam estratégias de mediação individuais e coletivas vis-à-vis num contexto de produção de bens e

serviços” (Ferreira e Mendes, 2003, p. 38). O trabalho é, portanto, a atividade, a ação

do trabalhador no contexto de trabalho de bens e serviços. É nele que o sujeito trabalhador realiza a sua subjetividade, constrói as suas estratégias individuais e coletivas.

Na busca de articular a reflexão em torno da organização do trabalho, as condições de trabalho e as relações socioprofissionais, o diálogo das referidas disciplinas possibilitou a criação da categoria conceitual contexto de trabalho (CT), que é definido, por Ferreira e Mendes (2003, p. 41), como

“(...) o lócus material, organizacional e social onde se operam a atividade de trabalho e as estratégias individual e coletiva de mediação utilizadas pelos trabalhadores na interação com a realidade de trabalho. Esse contexto articula múltiplas e diversificadas variáveis, compondo uma totalidade integrada e articulada”.

Portanto, o contexto de trabalho apresenta três dimensões: a organização do trabalho (OT), as condições de trabalho (CT) e as relações socioprofissionais (RSP).

A OT é composta pelos elementos prescritos, os quais traduzem as concepções e as práticas de gestão de pessoas nas empresas. A divisão do trabalho, as metas de produção, as regras impostas, a duração da jornada, os ritmos e os controles constituem os elementos centrais dessa dimensão.

As condições de trabalho representam a infra-estrutura, o apoio institucional e as práticas administrativas. Os elementos da CT são o ambiente físico, os instrumentos de trabalho, os equipamentos, a matéria-prima, o suporte organizacional e a remuneração.

As relações socioprofissionais (RSP) expressam as relações existentes no local de trabalho. Seus principais elementos dizem respeito às interações hierárquicas, às interações coletivas intra e intergrupos e às interações externas.

As estratégias de mediação individual e coletiva (EMIC), segundo os autores, são as maneiras que os trabalhadores apresentam de pensar, sentir e agir no seu contexto de trabalho. Elas objetivam dar conta da diversidade das contradições presentes no contexto de trabalho. Para Ferreira e Mendes (2003, p.

44), “A finalidade básica das estratégias de mediação dos trabalhadores é confrontar, superar e/ou transformar as adversidades do contexto de trabalho, visando a assegurar a integridade física, psicológica e social”.

De acordo com Ferreira e Mendes (2003), a estratégia de mediação operatória ocorre quando o trabalhador constrói modos de trabalho para atenuar os efeitos negativos deste. A estratégia de mediação do tipo defesa surge quando o trabalhador cria mecanismos outros para compensar o desgaste que o trabalho traz. No caso dos auditores, perceberam-se explicações para a causa do sofrimento, o que representa a racionalização, ou seja, mesmo como os problemas levantados, a questão econômica é apresentada como justificativa para a manutenção na empresa. No processo de trabalho, várias dimensões (físicas, cognitivas, e afetivas) são requeridas por quem o realiza, as quais não atuam de forma separada, mas interligadas. Ferreira e Mendes (2003, p. 48-49) trazem o conceito de custo humano do trabalho (CHT), o qual representa o que os trabalhadores despendem nas esferas físicas, cognitivas e afetivas no contexto de trabalho. Os autores compreendem que as exigências físicas representam o custo corporal que é imposto aos trabalhadores no contexto de trabalho. Essas exigências tomam forma nas posturas, nos gestos e no emprego da força física. As exigências cognitivas se relacionam com o dispêndio mental que ocorre no processo de aprendizagem em situações de trabalho, quando da resolução de problemas e, também, da tomada de decisão. As exigências afetivas, por sua vez, têm a ver com o dispêndio emocional imposto no contexto de trabalho. Estas se traduzem sob a forma de reações afetivas, assim como por sentimentos e humor.

Diante das construções teóricas apresentadas, Mendes e Ferreira (2003) realizaram uma investigação quantitativa, envolvendo 1.916 auditores-fiscais da Previdência Social (AFPS). A pesquisa empírica nacional investigou três dimensões: o contexto de trabalho; as vivências de prazer-sofrimento no trabalho; e os índices de adoecimento.

Os resultados revelaram que o contexto de trabalho dos AFPS é percebido como moderadamente problemático e adverso. Observou-se que a instituição oferece apoio moderado para que os auditores possam realizar as suas tarefas. Para os pesquisadores, o apoio moderado contribui para minimizar o surgimento de doenças ocupacionais.

Em relação à organização do trabalho, notou-se que os auditores percebem a existência de uma rigidez moderada das tarefas prescritas pela instituição. Segundo os pesquisadores, pode-se hipotetizar que o trabalho dos auditores apresenta certa criticidade, a qual se associa à divisão inadequada de tarefas, às regras, ao controle sobre o desempenho esperado e à dimensão temporal do trabalho.

Quanto às relações socioprofissionais, os auditores consideraram que são moderadamente satisfatórias. Assim, percebe-se que há dificuldades na comunicação entre chefias e subordinados, entre os próprios auditores e com os contribuintes. Mendes e Ferreira (2003) sugerem que há necessidade de eliminar ou minimizar as causas dos problemas de comunicação. Assim, será possível evitar futuros transtornos à saúde dos auditores.

As vivências de prazer-sofrimento dos AFPS foram percebidas de forma moderada. Observou-se que a vivência moderada de prazer se dá em termos de gratificação e liberdade, sendo que a gratificação é mais marcante que a liberdade. O sofrimento, que também é vivenciado moderadamente, está representado nos fatores de desgaste e insegurança. O desgaste aparece mais forte que a insegurança. Os pesquisadores percebem que algumas dimensões do contexto de trabalho (apoio institucional e relações soioprofissionais) podem estar na origem da vivência moderada de prazer-sofrimento

Desta forma, Mendes e Ferreira (2003) compreendem que os auditores podem estar utilizando estratégias de mediação do sofrimento, tais como acomodação, passividade, descrença e banalização das dificuldades presentes no trabalho.

Em relação ao adoecimento, verificou-se que os auditores estão no grupo de risco para a incidência de Dort e de depressão. De acordo com os pesquisadores, pode-se inferir que a precariedade das condições de trabalho, o controle exercido pela organização, o desgaste e a insegurança podem ser os responsáveis pelos sintomas de adoecimento.

O diálogo ora apresentado advém de apenas dois estudos. Portanto, cabem vários questionamentos e pesquisas na área para que os novos conceitos apresentados sejam ampliados ou refutados. A presente tese visa a aprofundar o

diálogo na busca de contribuir com as reflexões em torno da saúde do trabalhador, no atual contexto de trabalho flexível.

No próximo capítulo será apresentado o objeto de investigação proposto para este estudo.

PARTE II