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Diálogos com outros pesquisadores

2 COMBATES COTIDIANOS (ARTIGOS NA IMPRENSA PERIÓDICA)

2.3 TEMAS ABORDADOS

2.3.5 Diálogos com outros pesquisadores

Câmara Cascudo registra, no texto “Musicalerias IV” (A República 16/10/1929), que Mário de Andrade lhe enviara um recorte do Diário Nacional, tratando da participação do pesquisador paulistano, através de trabalho remetido no Congresso de Cultura Popular que se reuniu em Praga. O tema desse trabalho era “Influência Portuguesa nas Rodas Infantis do Brasil”. Esse artigo é um comentário sobre o tema e suas variantes. Essa notícia evidencia a afinação do estudioso potiguar com o pensamento de Mário de Andrade e também indica vieses europeus do debate modernista no Brasil, seja no tema, seja no espaço de sua divulgação original.

O cronista transcreve um trecho da História da Música, de Renato de Almeida, no qual se encontram referências que conferem importância excepcional ao Bumba meu boi: O Bumba-meu-boi é o folguedo brasileiro de maior significação estética e social e

bem merece uma forma artística duradoura36.

Cascudo recorda que Mário de Andrade havia sugerido a Luciano Gallet uma

suíte para orquestra, utilizando os motivos musicais do Bumba-meu-boi, talqualmente fizera, noutro processo, o russo Mussorgski, com o seu Tableaux d‟une Exposition,

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cada quadro sugerindo uma expressão musical. Tal projeto não pôde ser realizado

devido ao falecimento de Gallet em 1931. É o teor de sua crônica “Bumba-Meu-Boi”. (“Acta Diurna”, A República, 17/09/1943).

Na “Acta Diurna” “Oneyda” (Diário de Natal, 05/05/1948) Cascudo focaliza a obra da pesquisadora Oneyda Paoliello de Alvarenga (1911-1984). Oneyda é uma

pequisadora em quem podemos confiar cem por cento, afirma com convicção. O grande

trabalho realizado na área da música brasileira é apenas destacado por uma de suas obras:

Oneyda está fazendo um trabalho magnífico de dedicação, de clareza, e de segurança mental. Das mãos lhe sai o que melhor podemos desejar. Um exemplo é essa MUSICA POPULAR BRASILEÑA,37 edição mexicana, livro de informação precioso e que alto serviço presta a quem o lê.

Uma carta de um professor estrangeiro que pedia a Cascudo inúmeras e variadas informações sobre a música brasileira levou o escritor a múltiplas considerações. Imaginando o quanto de trabalho seria necessário para atender ao pedido, comenta que poderia fazê-lo facilmente graças a um autor brasileiro: Renato de Almeida e sua

História da Música Brasileira. Diga-se, também, serenamente, que este livro é único na bibliografia especializada. É sobre o que versa a crônica livre “Santo de casa é que faz

milagre” (A República, 04/02/1950). São muito numerosas as referências e as citações sobre o particular amigo Renato de Almeida e sobre seus trabalhos.

Na crônica “Contribuição para o estudo da modinha” (“Acta Diurna”, Diário de

Natal, 26/03/1962), apresenta comentários a respeito da publicação do livro com esse

título, publicado por Eunice Evanira Pereira Mendes, e aproveita para apresentar algumas considerações referentes à matéria, que sempre gozou de sua particular simpatia. O trabalho foi publicado na “Revista do Arquivo”, Prefeitura do Município de São Paulo – Divisão de Arquivo Histórico, São Paulo, 1959.

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Em artigo intitulado “Mário de Andrade”, publicado no Boletim de Ariel (Rio de Janeiro: junho de 1934, n. 9), Cascudo faz um comentário de todos os livros publicados por Mário de Andrade até aquela data. Quanto aos livros sobre música, inicia com o

Ensaio sobre a música brasileira, publicado em 1928. Começa relacionando o livro

com a viagem do autor:

A documentação melódica, em sua proporção maior, sai do Norte e aqui Mário sambou os melhores sambas e gritou entusiasmado nos melhores cocos. É o primeiro ensaio sobre a música brasileira feitos sobre quem sabe música e recolhe material por mão própria. A documentação impressa é insignificante porque o Ensaio sobre a música brasileira é uma revelação de riqueza folclórica.

Em seguida, passa a comentar o Compêndio de história da música brasileira (1929) e sua segunda edição, em 1933. Assim, Cascudo se pronuncia, enfático: Pela

primeira vez alguém escreve uma história absolutamente pessoal, estridentemente livre, com uma capacidade de análise e um poder de síntese que o velho Lavignac38 desconheceu irremediavelmente. O destaque especial de Cascudo é a forma como Mário

se expressou, indicando irreverências à sisuda gramática de Eduardo Carlos Pereira.

Modinhas imperiais (1930) recebeu um breve comentário em que Cascudo

utiliza apenas três breves linhas com menções elogiosas.

Mais adiante é a vez de Música doce música, de 1934. É uma coleção de

crônicas sobre assuntos musicais publicados no Diário Nacional de São Paulo. Resume

seu apreço pela publicação dizendo que ela é indispensável na livraria de qualquer

músico e de qualquer que suspeite gostar de música. Recorda os dias passados em

viagem pelo interior do Rio Grande do Norte: Mário anotou tudo, cantigas de cegos,

ritmos de marcha, paisagem, tipos, versos, cantoria. Aproveita para registrar um fato

curioso: De tanto andar atrás de Bumba-meu-boi ou zambês, pegou o apelido de

Doutor do boi, e, nas ruas, os homens do povo apontavam-no sorridentes: “Aquele é o doutor que veio de São Paulo estudá o boi...” E era mesmo.

Refere-se ao sonhado Na pancada do ganzá, onde, segundo Cascudo, nós

teremos uma surpresa para os estudiosos da música brasileira.

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Cascudo se refere a Alexandre-Jean Albert Lavignac (1846-1916), compositor e musicólogo francês, autor de obras teóricas, com a Encyclopédie de la musique.

A crônica “Desafio africano”39

focaliza um dos temas preferidos e mais comentados pelo escritor. Revela, especialmente, o clima de entendimento nem sempre concordante que existia na sua relação literária com Mário de Andrade. Inicia abordando o assunto com muita cautela, tomando habilmente o renomado sociólogo Roger Bastide, professor da Universidade de São Paulo no período de 1938 a 1984, como seu aliado para a questão do desafio nordestino, que já havia provocado debate com o pesquisador paulistano, como aconteceu com o artigo “Vaqueiros e cantadores” (datado de 11-II-940), constante de O empalhador de passarinhos, livro que Mário publicou em 1944.

O estudioso francês publicou um livro em que considera que o desafio não era comum na África. Cascudo diz que tomou conhecimento não através da publicação, mas através de um artigo que Mário de Andrade lhe remetera, intitulado “O desafio brasileiro”, publicado no Estado de São Paulo a 23 de novembro de 1941. Nesse artigo, Mário comenta o problema do desafio. Cascudo havia assegurado antes que não tinha desafio na África, da forma como ocorre no Nordeste do Brasil. Mário tem um entendimento diferente, aceitando a ocorrência africana do desafio. Cascudo, por sua vez, opta por outras origens da atividade trazida pelos portugueses. É mais um capítulo na história dos debates entre os dois pesquisadores, que não concordavam em todas as ocasiões. Cascudo informa que Mário apresenta o depoimento de alguns autores que optam pela presença do desafio na África, os quais ele não aceita. Esses desafios,

diversos e não endossando matéria contrária ao que disse, são recentes e incaracterísticos. Figuram como canto de trabalho ou pormenor cerimonial. Continua: Não lhes encontro em caráter de pugna em versos, de luta verdadeira, cantador contra cantador, constituindo eles próprios o cerimonial, o centro de interesses para a curiosidade ambiental.

A partir desse ponto, Cascudo comenta os autores que leu sobre o assunto afirmando que em nenhum deles encontrou referência à ocorrência do desafio na África da forma como acontece no Nordeste brasileiro. Então, assume uma posição bem peculiar:

Que poderia eu fazer? Depois dessas leituras? Escrevi que o desafio de improvisação, acompanhado musicalmente, como tínhamos no Brasil, não

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Cópia do original, com indicação de publicação no Diário de Notícias (28/12/1941). Acervo Ludovicus – Instituto Câmara Cascudo, Natal/RN.

havia n‟África. Pelo exposto o prof. Roger Bastide, aceitando minha afirmativa, estava pisando terra segura porque eu a fora examinar e bater por todos os meios. E ainda reforça: Que poderia eu fazer em face de tanta gente ilustre negando a existência dessa luta em versos? Alegria maior teria em registrar-lhe a vida e mostrar que a solidariedade negra ao desafio era um encontro de hábitos dentro de sua literatura oral.

Lembra, ainda, que nenhum estudioso do negro no Brasil faz referência à ocorrência do desafio entre eles. Encerra dirigindo-se a Mário, o que mostra ainda mais as origens de suas convicções:

Assim, ao brilhante mestre paulista, informo que a frase sobre o desafio africano não foi leviana nem individualmente escolhida. Representou a soma de quanto me foi possível ler, na província e na Biblioteca Nacional, quando vou ao Rio de Janeiro. Um desafio atual nas terras africanas, filmado, gravado, fixado, surgiria para mim como uma assimilação de habilidade dos brancos feita pelo negro. Não era possível que o desafio, querido e tradicional como uma dança ou um canto, deixasse de ser vivido e registrado nos grandes atravessadores do continente negro.