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Música Considerações pessoais

2 COMBATES COTIDIANOS (ARTIGOS NA IMPRENSA PERIÓDICA)

2.3 TEMAS ABORDADOS

2.3.16 Música Considerações pessoais

Na “Acta Diurna” “O Canto e a palavra” (A República, 11/05/1943), Cascudo apresenta algumas situações singulares: no Rio de Janeiro, durante uma apresentação de

canto orfeônico regida por Villa-Lobos, um locutor falava descrevendo o que estava sendo cantado. Ao que parece, tinha boa intenção – comenta –, mas atrapalhava o que estava sendo ouvido. Em seguida, relata que em Natal, na realização de uma cerimônia de páscoa dos militares, aconteceu um caso semelhante: Os organizadores do programa

puseram os locutores, profano e sagrado, em cima das emissões sonoras do orfeão do “Colégio Marista”, o melhor que possuímos, regido pela incomparável disciplina do maestro Waldemar de Almeida. O comentário insiste em destacar como os cantos foram

prejudicados pela inoportuna intervenção dos locutores que, de vez em quando, atrapalhavam o desenrolar da música.

É nesse momento que Cascudo emite sua opinião e demonstra o seu apreço pela expressão musical do canto, sobrepondo, na referida ocasião, sua capacidade de comunicação à palavra pura e simples dos sermões religiosos:

Respeitemos a pureza e a expressão ampla do canto. Não haverá maior projeção, mais poderosa influência, maior apelo ao espírito que o canto. A unção espiritual nos vem mil vezes mais facilmente pelo canto do que pela veemência tribunícia do sermão. Quando a palavra humana é fraca, descolorida e tênue, o canto domina, arrebata e convence. Lembra como o canto foi usado na época da catequese: Foi a vitória de Nóbrega e Anchieta.

Para concluir: Sugiro, humildemente, a necessidade de separar os dois

elementos indispensáveis e divinos. Cada um deles no momento próprio. Sem confundi- los. O Canto e a Palavra são inseparáveis. Não os misturem porque não dá certo...

A crônica “Assobiar”, publicada na revista Bando (1950), inicia com comentários sobre o assobio através dos tempos.

Assobio, instrumento musical da área geográfica universal, deve ter sido o primeiro instrumento de sopro que produziu sonoridade melodiosa, isto é, dentro de um registro normal da escala cromática. Se a palma-de-mão é o mais velho instrumento de percussão, o assobio é a inicial da orquestra em sopro.

Em seguida, passa ao estudo do assobio, comentários sobre o assobio nos mais diversos países e através dos tempos.

Voltando ao lado musical, Cascudo aprofunda sua observação:

Musicalmente o assobio é habilidade individual. Vez por outra aparece um assobiador excepcional, nos teatros ou cassinos. Houve-os outrora famosos. No Brasil cita-se o mulato criado do Conselheiro Nabuco de Araújo que assobiava óperas inteiras e de que fala Batista Pereira (FIGURAS DO IMPÉRIO E OUTROS ENSAIOS, 118-9, seg. ed.) e também Wanderley Pinho lembrou Luiz Dominguez nas recepções do Barão de Cotegipe, assobiando melodias, cercado de damas estáticas e acompanhado ao piano por Artur Napoleão (SALÕES E DAMAS DO SEGUNDO REINADO, 164). Mas há ainda outra documentação oficial vinda do assobio. Ouvi-lo é anotar a popularidade, permanência ou deformação de certas músicas. Sentir como elas passam ou ficam na memória coletiva. E como se transformam na execução de cada intérprete anônimo. Também é um encanto ouvir, bruscamente, trechos de modinhas antigas, de cantigas que julgávamos mortas no tempo. Vezes, depois de muita banalidade, reaparecem alguns compassos de autos populares. Fandangos. Bumba-meu-boi. Chegança. Congos. Lapinhas de outrora que os Pastoris interesseiros mataram. Não tenho um professor de universidade norte-americana ou européia para dizer a importância do assobio como documento social e memória geral e anônima, revelando os vários processos de conservação, fixação, modificação de temas melódicos. Se esses trechos reaparecem indicam simpatias, persistências ou reminiscências, conforme a idade do assobiador. É o assobio como o desenho nas paredes dos muros e dos recantos privados: – um depoimento positivo para o conhecimento da psicologia coletiva.

Quanto detalhe passa despercebido ao apressado leitor comum e como é notável a capacidade de observação de um escritor, “leitor profissional”, como se considerava Câmara Cascudo, portador de visualização microscópica até nos mais amplos horizontes...

A “Acta Diurna” “Dez sambas, duas marchas e um artigo” (A República, 9/2/1944) é uma das mais originais e pitorescas crônicas dentre todas as que foram lidas

na preparação do presente trabalho, principalmente por mostrar Cascudo em sua intimidade, com seus problemas, ansiedades do dia a dia e, o mais curioso, em crise com a música.

O cronista relata que, havendo recebido uma solicitação do jornal A Manhã, do Rio de Janeiro, deveria escrever um artigo sobre a República Dominicana, visto que em 27 de fevereiro seria o primeiro centenário de sua independência. Era, pois, um artigo encomendado, um trabalho para o profissional Cascudo, que precisava escrever para garantir o seu ganha-pão.

Esse fato descreve, então, detalhes do escritor em plena atividade: havendo se preparado mentalmente para o assunto, aprontou a máquina datilográfica e quando ia começar: Um rádio, aberto em pleno volume de voz, berra, atordoador:

Prá mostrar que braço é braço! Eu conquistei

Sicília!60

Como era de se esperar, a música atraiu a sua atenção, já que mencionava a conquista da Sicília. É bom lembrar que se vivia em plena segunda guerra e que a cidade onde se desenrola a cena era Natal, a mais importante base brasileira durante o período. Com isso, segue o escritor na tentativa de preparar o artigo; manuseia a bibliografia e, novamente:

Com pandeiro, ou sem pandeiro! Trá-lá-la-laaaaaaa.

Eu... brinco!

Já meio incomodado, comenta: Cinco rádios estão cantando a mesma canção

que se populariza. Mesmo assim, volta ao que tencionava fazer: Vamos ao trabalho, que tenho mais? Sim! Ele menciona uma série de livros quando:

Com dinheiro ou sem dinheiro Trá-lá-la-laaaaaaa...

60“Cecília”, marcha de Roberto Martins e Mário Rossi, gravada por Gilberto Alves para o carnaval de

1944. Cabe destacar que a ilha de Sicília havia sido tomada aos alemães pelos aliados em agosto do ano anterior.

Eu... briiiiiiiiiiiinco!61

Cascudo já parece irritado por precisar trabalhar e não poder brincar: E deve

brincar, se pode. Com pandeiro e sem dinheiro, brinca-se, mas preciso escrever hoje. Vamos ao apelo. Que devo consultar! Cita diversas obras: Junto os livros. Disponho-os à mão. Vou começar. E o rádio, de novo:

Um passo do caruá A – a – a – a!62

Ao que parece, começa a redigir apesar do apelo irresistível da música carnavalesca: Os dedos dançam no teclado da máquina. Enfim, reconhece a sua incapacidade de resistir à inclinação que sentia. O pensamento esvoaça, indeciso. O

vocabulário fica desmilinguido. A República Dominicana não pode fixar-se na minha atenção. Agora são marchas-frevos arrepiando nervos. Vencido pela música,

finalmente se entrega: Fecha-se a máquina. Sem dinheiro, sem pandeiro, sem vontade,

eu paro...

Assim, interrompeu a sua tentativa de trabalhar em época de carnaval, com tanta música no ar...

“A interjeição no acalanto” (“Acta Diurna”, A República, 15/10/1944) é mais uma das tentativas de Cascudo de descobrir algo que decerto ninguém lembrou de saber: o porquê de a interjeição, da vogal repetida, ser tão comum nos acalantos brasileiros.

Começa definindo acalanto:

Canção de ninar, lullaby inglesa, berceuse de França, kalebka na Polônia, Wiegenlied alemã, cancion de cuña da Espanha, monodias do berço. Possuem uma interjeição, na maioria dos exemplos, para ser prolongada, imitando o movimento sonoro do embalo, a bolandas, o ir-e-vir da caminha ou da rede brasileira até que o menino adormeça.

61

Os dois versos anteriores são da marcha “Eu brinco!”, de Pedro Caetano e Claudionor Cruz, gravada por Francisco Alves para o carnaval de 1944.

Dorme Nen-nem Senão a Cuca vem. Papai está na roça, Mamãe logo vem!

U – u – u – u – uuuuu – uuuuuuu?

Diante disso, Cascudo procura nos livros a resposta para a seguinte pergunta: De

onde recebemos e qual a origem remota dessa interjeição? Cita diversos autores,

começando por Gil Vicente, para localizar a origem das interjeições, concluindo: O

nosso u – u – u – uuuu é legitimamente o Ru u u u do século XVI [...]. Encerra dizendo:

A interjeição, onomatopéia que deu nascimento ao verbo arrular, poderá ter vindo, pela Espanha moura, de fontes orientais. É uma sílaba que se canta com uma ou várias notas, provindo de herança longínqua, reminiscência melismática, ainda visível nos nossos aboios do Nordeste do Brasil.

A modernidade oferece uma infinidade de recursos eletrônicos sofisticados para levar uma criança ao sono. A canção de ninar na voz da mãe parece estar destinada ao fim. Quem foi embalado à maneira antiga ficou indelevelmente marcado pelo singelo momento. Os adultos do futuro terão belas recordações e saudades de um “acalentador eletrônico”?