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2 COMBATES COTIDIANOS (ARTIGOS NA IMPRENSA PERIÓDICA)

2.3 TEMAS ABORDADOS

2.3.2 Instrumentos musicais

O artigo “Violão, Voz da Raça” (Revista do Centro Polimático, n. 2, agosto de 1920) transcreve o texto de uma conferência realizada por Luís da Câmara Cascudo no Teatro Carlos Gomes, Natal, no dia 19 de janeiro de 1920, em benefício das Escolas Operárias, do Centro Operário Natalense.

Trata-se de um trabalho de juventude, no qual o autor parece preocupar-se mais em demonstrar cultura intelectual do que abordar a informação e a memória, como haveria de fazer depois. A descrição do violão é mais poética do que objetiva e a linguagem é rebuscada, apropriada mesmo para conferência erudita. Não há referências à prática do violão em Natal, mas permeiam menções que começam com gregos de lira ao braço à flor amorosa de três raças tristes, passando por citações e personagens da antiguidade clássica, renascimento, romantismo... A conferência parece seguir normas comuns a esse tipo de espetáculo na época, por vezes com entrada paga, fazendo grande sucesso no meio social e literário brasileiro dos anos 191024.

Nesse artigo, há demonstrações de erudição e quase nada de história. Aliás, o mestre, que tanto gostava de violão, deixou de comentar muitos temas violonísticos bem natalenses. A posterior instalação do Clube do Violão e o início do ensino regular (por música) não foram registrados nem comentados por ele.

Em longo artigo sob título “Instrumentos Musicais dos Negros no Norte do Brasil” (A República, 27/09/28), Câmara Cascudo aborda com detalhes a temática da música negra no Brasil e procura descrever os instrumentos musicais que embasavam a sua arte. Os Banguelas, Cabindas, Quiloas, Rebolos, Minas, Moçambiques, Angolas,

Congos, Cosengues e Monjolos, sacudidos nos porões da escravaria, trouxeram para o Brasil e seu canto, as suas danças, as suas superstições.

Em comparação com a música indígena, muito mais rica em instrumentos de sopro, o negro tinha como base a percussão, e é bastante numeroso e variado o arsenal de que dispunha. Sua influência no que haveria de se tornar música brasileira é

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BRITO BROCA, José. A vida literária no Brasil – 1900 (2005). MACHADO NETO, A. L. Estrutura

indiscutível, marcando decisiva presença em manifestações populares como o carnaval, sem esquecer de sua especial importância nas manifestações religiosas católicas, através de Congadas, Moçambiques e Dança do Espontão, dentre outras, e afro-brasileiras, como o Candomblé.

Cascudo alcança também as festas negras, onde seus cantos e ritmos marcados pela percussão eram presença indispensável. Daí passa a descrever cada instrumento, acentuando-lhes a variada sonoridade e enfatizando a rusticidade dos materiais empregados e a notável improvisação na sua confecção. Conclui com lembranças dos sons que ainda ouviu quando criança em Natal.

É certo que haja nesse artigo uma retomada de temas presentes em Sílvio Romero (Cantos populares do Brasil), que depois Câmara Cascudo editaria e prefaciaria25. Mário de Andrade, no “Ensaio sobre a música brasileira”, evita falar em “música negra” (branca ou indígena também), prefere “música brasileira”, atitude que também, em outro sentido, manifesta-se em sua rapsódia Macunaíma e indica a dimensão nacional desse projeto estético modernista, superando os critérios de raça ainda tão presentes em Romero26.

Cascudo esclarece (“O Cavaquinho é Brasileiro?” Som, n. 12, 16/10/1939) uma dúvida que lhe nasceu de uma leitura de Eduardo Prado (Coletâneas, 1904), em que o autor afirma – seguindo a observação de Balbi – que o cavaquinho era invenção do brasileiro Joaquim Manoel. Penetrando no assunto, chega a conclusões e oferece informações históricas sobre a origem do instrumento. Digna de nota é a posição assumida pelo pesquisador que, contrariando uma crença que beneficiava o seu país, retira dele o posto de pátria do cavaquinho, devolvendo a Portugal, seu legítimo dono, a verdade que lhe pertence. Localizando o livro de Adrien Balbi, Essai statistique sur le

royaume de Portugal et d‟Algarve (Paris, 1822), encontra a informação sobre Joaquim

Manoel, mulato do Rio de Janeiro: renommé surtout par jouer parfaitement d‟une petite

viole française de son invention, apellé cavaquinho. Insatisfeito, procura Guilherme de

Almeida (“A música no Brasil”, Rio de Janeiro, 1922): o mulato é citado como notável

executor e não se refere a uma sua provável invenção. O “Dicionário Musical” (Isaac

Newton, Maceió, 1904), também consultado, nada refere quanto à sua origem. Mais

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ROMERO, Sílvio. Cantos Populares do Brasil (1985).

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ANDRADE, Mário de. Ensaio sobre a música brasileira (1962). ANDRADE, Mário. Macunaíma (1997). Gilda de Mello e Sousa enfatiza a grande importância da música na rapsódia Macunaíma. SOUSA, Gilda de Mello e. O tupi e o alaúde (1979).

resumido ainda é Cândido de Figueiredo. Entrando pessoalmente no assunto, informa:

O cavaquinho, também com este nome em Portugal, é de origem da ilha da Madeira, onde o chamam de “Braguinha”. E, em conclusão: O cavaquinho é português, nacionalizado pelos nossos sereneiros. Instrumento de modinha e samba, jamais ultrapassou seu limite, valorizado nos “conjuntos” convencionalmente “malandros” da música carioca.

Nessa incursão histórica, o autor explora a origem do instrumento sem ufanismo nacional. Ao mesmo tempo, evidencia uma forte matriz lusa para o debate sobre aspectos da nacionalidade.

“Ressurreição do Piano” (“Acta Diurna”, A República, 29/09/1945) pode ser considerado um dos artigos de Cascudo portadores de um título indicando um tema musical que, na realidade, não trata propriamente de música. É mais uma apreciação sociológica em que comenta o fato de o piano estar modificando um hábito secular ao tomar o lugar das conversas em família. Em vez das velhas palestras de outrora, abria-

se o piano, como a um instrumento de suplício, e a menina de casa ia tocar, “para exibir o quanto sabia”.

Começa citando Ribeyrolles27, um visitante do Rio de Janeiro que, em inícios do século XIX, comentara haver o piano assassinado a arte de conversar: é esse o tema central da crônica. Comentando a chegada do “rádio e da radiola”, critica o programa do rádio por não se poder escolher o que se vai ouvir. Argumenta que a sucessão dos programas e a inacessibilidade da escolha tornam a conversa impossível. Para lutar contra isso, vislumbra uma opção: O piano, na lembrança imprevista, numa saudade

que é legítima defesa, está ressuscitando. Já reaparece enfrentando a tonitruante fecúndia radiolesca.

Adotando um comentário de Lyn Yutang (não indica a obra), chega a concluir que o rádio seria uma maravilha se não fossem “os programas”. O rádio impõe sua programação já feita; o piano, entretanto, pode ser programado. Para amenizar o problema, sugere a solução do retorno ao velho hábito e justifica: [...] o piano reivindica

a vantagem de ter os programas do tamanho da paciência ambiental.

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RIBEYROLLES, Charles. Le Brésil pittoresque ou Brasil pitoresco: histoire, description, colonisation, accompagné d‟un album de photos, panoramas, paysages et costumes de Victor Frond (1861). O autor esteve no Brasil a partir de 1858, exilado por Napoleão III. Nasceu em Martel, França (1812), e faleceu no Rio de Janeiro (1860).

Qual será o instrumento musical mais popular no Brasil? Voto pelo violão.

Assim inicia Câmara Cascudo em “Gosta de Violão?” (“Acta Diurna”, A República, 19/05/1948), versando sobre um instrumento que não tocava, mas muito admirava. Comenta a presença do violão em todos os ambientes, em todas as classes sociais e econômicas. Destaca, igualmente, sua importância na área erudita e o nome de seus intérpretes internacionais mais conhecidos:

[...] com essas credenciais, instrumento sagrado pelas mãos de uma Robledo,

um Barrios, um Segovia, um Llobet, um Tarrega, um Sors, vivendo todos os clássicos, todos os românticos, todos os modernos, o violão, proletário e aristocrático, bebedor de champanhe e de cachaça, tem seu devotos, seus amigos, seus fiéis, em todas as classes sociais do mundo.

Entretanto, voltando ao tema da formação clássica, lamenta a inexistência de estudos regulares do instrumento em Natal, pergunta e cobra:

Nesta cidade do Natal mais de mil pessoas tocam o violão. Quantas por música? Quantas realmente sabemos recursos e valores do instrumento popularíssimo? Quantas moças e rapazes desejariam saber tocar o violão? Por que ainda não foi possível interessar a um professor de violão para fique na cidade, ensinando, elevando, vulgarizando o musical violão?

Após mencionar o nome de Amaro Siqueira, introdutor do violão clássico em Natal, sonha com um recital em grande estilo: Já ouvimos e aplaudimos um Amaro

Siqueira. Imaginemos uma exibição violonística de seis, oito, dez bons alunos. E conclui: Se gosto, gostas, gostamos, do violão, por que não dotá-lo de ensino regular?

Em longo artigo denominado “Origem da Cuíca” (A República, 24/05/1949), comenta a história desse instrumento e nega que seja criação africana. Esclarece sua origem árabe, trazida para o Brasil pelo negro escravo. Afirma: A cuíca, que julgamos

africana, foi efetivamente trazida para o Brasil pelos escravos bantos, mas estes já a tinham recebido dos árabes.

Informa não haver encontrado nenhuma referência à cuíca entre os ciganos nas recentes pesquisas que fizera para anotar “Os ciganos” e “O cancioneiro dos ciganos”,

de Melo Moraes Filho, a serem reeditados. Nada de cuíca em centos e centos de

páginas de algumas dezenas de autores.

Essa é mais uma de suas abordagens da formação cultural do Brasil em que destaca, além do legado português-africano-indígena, uma pequena, mas muito popular e tornada brasileiríssima contribuição, dessa vez árabe via africanos – a nossa indispensável carnavalesca cuíca.