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2 COMBATES COTIDIANOS (ARTIGOS NA IMPRENSA PERIÓDICA)

2.3 TEMAS ABORDADOS

2.3.3 Música e poesia popular

O escravo alforriado Fabião Hermenegildo, mais conhecido como Fabião das Queimadas, é o mais famoso dos cantadores norte-rio-grandenses que, ao estilo dos trovadores medievais europeus, divulgava as velhas gestas regionais em forma de canções.

Cascudo relata, no longo artigo “Fabião das Queimadas” (A República, 02/08/1928), seu encontro com o cantador: Ao primeiro pedido, tirou a rabeca dum

saco. Colocou-a no peito à velha maneira dos troubadours. Arranhou notas ásperas. E cantou.

Pena que se tenha detido apenas nos aspectos literários do que ouviu com ouvidos de folclorista, sem apresentar nenhum comentário à parte musical. A caracterização do cantador é feita em uma evocação dos trovadores medievais, referência clássica para uma tradição de poesia e de identidade regional ou nacional. A ênfase no literário, portanto, é intensa.

Esse personagem é retomado em Vaqueiros e Cantadores (primeira edição em 1939), valorizado no plano qualitativo (o cantador se apresentou para o Governador do Estado e seus convidados no Palácio do Governo). É digno de nota o fato da aceitação de um artista negro no meio da elite política e cultural potiguar28.

Em outra crônica, recorda os nomes dos grandes acompanhadores de modinhas de seu tempo de rapaz, citando as canções mais populares, os sucessos seresteiros do momento (“Acompanhamento de Modinha”, “Acta Diurna”, A República, 26/04/1940). Igualmente, lamenta o desaparecimento desses musicistas, que desempenham tão importante papel na execução desse tipo de canção, acompanhada tanto ao piano como ao violão. Refere-se a alguns membros da família Albuquerque Maranhão, chefes

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políticos prestigiados, a elite socioeconômica do estado, que também se destacavam pelo gosto pela modinha e adequação no acompanhamento. Encerra sua crônica lembrando Waldemar de Almeida, que está salvando as modinhas, a ouvir alguns cantores do passado, que muito podem contribuir para seu trabalho de recuperação musical.

Era uma chula de Joaquim Lourival de Melo Açucena, letra e música, popularíssima em toda província. Significava uma pequenina sátira inofensiva, desabafo de eleitor provincial, desiludido e desencantado, em rimas simples que depressa se tornaram inseparáveis das serenatas de outrora. Assim explica Cascudo o

motivo da “Acta Diurna” intitulada “A „Política‟ de Lourival Açucena”. (A República, 18/10/1942). Açucena (1827-1907) é o mais antigo poeta de que se tem notícia no Rio Grande do Norte. É, também, o primeiro que se conhece a musicar ele próprio os seus versos. Esse poema, datado de 1884, foi incluído posteriormente no livro póstumo

Versos, de Lourival Açucena, reunidos e publicados pelo próprio Câmara Cascudo29. Impressiona a atualidade do tema, mesmo se tratando de versos escritos em pleno período imperial. As críticas que contém bem poderiam ser aplicadas aos dias atuais. A linha mestra do longo poema é a resposta que dá o poeta ao seguinte questionamento: Por que deixei a política? A reprodução de duas quadras pode ser o bastante para a percepção do clima da obra:

Prometem ao pobre povo Um governo angelical, A terra da promissão, Um paraíso ideal... Porém, quando grimpam Cessam as cantigas E tratam somente De suas barrigas. E nem mais conhecem Aquele bom moço Com quem já viveram

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De braço ao pescoço...

Infelizmente, mesmo popularíssima em toda a província conforme afirmou Cascudo, não foi possível encontrar quem soubesse cantar a melodia de A Política, o que impossibilitou o seu resgate 30.

Detalhe curioso da história de Lourival Açucena é que lhe havia sido prometido apoio para tornar-se deputado provincial, o que nunca foi cumprido. A razão de tal atitude foi que o chefe político local

[...] lhe tinha garantido um lugar na Assembléia mediante a condição do Sr.

não cantar no coro, pois, como se expressou, achava indecente um deputado feito mestre de orquestra. Mas o Sr. não tem feito outra coisa senão cantar e tocar nas igrejas, na rua, em toda parte31.

Tal incidente provocou a vingativa composição, decerto a mais antiga crítica política de que se tem notícia no estado. Estes versos tornaram-se populares em todo

Brasil e foram transcritos em diversos jornais portugueses do tempo32.

Câmara Cascudo transcreve em sua “Acta Diurna” “Um Soneto Musical” (A

República, 10/09/1943) o texto de um poema publicado na revista natalense Oásis, de

17 de junho de 1896. Embora o tema seja o dilúvio universal e o título “Soneto Lírico”, é extremamente criativo ter o autor (nunca identificado) iniciado cada verso com o nome de uma nota musical. O mais impressionante é que essas notas estejam em escala ascendente e, em seguida, descendente: são sete notas subindo a escala e sete descendo, o que se encaixa perfeitamente nas 14 estrofes de um soneto. Vê-se aí um Câmara Cascudo leitor-autor, com as antenas direcionadas para tudo o que acontecesse no campo musical.

Na “Acta Diurna” “Cego Cantando e Vendendo Folhetos em Currais Novos” (A

República, 13/11/1943), Câmara Cascudo evoca os cegos cantadores, figuras

comuníssimas nos sertões do nordeste. Diz ele:

30

Algumas das melodias de Lourival Açucena tem suas partituras em GALVÃO, Claudio. A Modinha

Norte-Rio-Grandense (2000).

31 CASTRICIANO, Henrique. “Lourival e seu tempo (VI)” (1965, p. 204). 32

Neste outubro, vindo de [da cidade de] Caicó, durante minutos ouvi, na feira de [da cidade de] Currais Novos, manhã de uma segunda-feira bonita, um cego cantando e vendendo folhetos de versos populares. Essa atividade é antiga e clássica, e não vou citar a Homero, cego, cantando as rapsódias pelas estradas da Grécia, povoada de deuses.

Após uma breve incursão na história mais remota desses trovadores, conclui:

Tivemos e temos grandes cantadores cegos, invencíveis na improvisação, soberanos no desafio, reis nos ritmo dos martelos agalopados, príncipes na carretilha, imperadores nas colcheias. É o Cascudo sertanejo, tantas e tantas vezes manifestado. Uma grandiosa

tradição pouco conhecida, pouco divulgada e menos valorizada em um país de admiração por títulos bizarros e valores estrangeiros; não imaginaria ele que a atualidade – sessenta anos após esse seu escrito – apagaria mais ainda os vestígios dessas e de outras manifestações tão legítimas de nossa cultura. Não poderia fazer melhor do que estabelecer uma conexão com a tradição clássica, com usos e costumes da velha Grécia, felizmente ainda valorizados.

Cascudo inicia relatando na “Acta Diurna” “A Reserva dos Cantadores” (A

República, 31/01/1945) um episódio acontecido quando Lord Bekford estava em

Lisboa, no tempo de Dona Maria I. Referindo-se ao luxo e ao conforto de que ele desfrutava, um frade loio – pertencente à Congregação de São João Evangelista – teria dito: O inglês é tão rico que os próprios talheres de prata são de ouro!.

Aproveitando o sentido dessa expressão, direciona-se aos cantadores nordestinos: Os nossos cantadores, esquecidos pelos estudiosos no Brasil, um dia

merecerão frase semelhante ao espanto louvaminheiro do frade [...]. O pior cantador é quase excelente. Enfatiza o seu pensamento ao afirmar que o maior poeta negro do

Brasil é o cantador Inácio da Catingueira, e não Cruz e Souza, que era branco por

dentro.

Enfocando os poetas sertanejos (como o fez no escrito precedente), indica as

maravilhas de uma literatura oral assombrosa de recursos, de imagens, de curiosidades, de imprevistos, de originalidade. E afirma, ainda enfático: Nenhum documentário estrangeiro suporta o confronto. Recorda que muito da literatura clássica

isolamento secular a que foram reservadas as distantes regiões do interior nordestino: [...] continuando o vocabulário rico e sonoro que se perdeu nos lábios dos letrados,

permanecendo clássico no sertão e artificial para o escritor. Essa crônica data de

janeiro de 1945. Caberia indagar se tal repositório cultural ainda permanece vivo, considerando-se que o progresso encurtou as distâncias e introduziu, no sertão antes virgem, elementos modificadores e estranhos àquele ambiente.

Citando nominalmente inúmeros eruditos internacionais que documentaram sua cultura e os indicando como exemplo, diz, voltando ao seu país: Toda essa reserva um

dia será convocada e, feliz a geração de estudiosos que a revelar ao Brasil mental.

Conclui, regozijando-se pelo que foi feito e lamentando o que se perdeu: Um dia

um grupo olhará o material reunido por Silvio Romero, Pereira da Costa, Leonardo Mota, reunindo ainda mais, o estudará, lamentando o que se perdeu pela vaidade e o que morreu por incúria...

Nove anos mais tarde, seu amigo e conterrâneo Oswaldo de Souza empreenderia com sucesso uma pesquisa musical pela região do médio Rio São Francisco, oportunidade em que recolheu mais de 400 exemplares do mais autêntico e original folclore daquela região. Parte desse material foi publicada em dois volumes pelo Conselho Federal de Cultura, com o título “Música folclórica do Médio Rio São Francisco” (v. 1, 1979; v. 2, 1980). O terceiro volume nunca foi publicado33

.

A polícia do Rio de Janeiro, então Distrito Federal proibiu que se cantassem três músicas de carnaval, depois de haverem sido impressas, gravadas e divulgadas. Cascudo, na “Acta Diurna” “A Letra das Músicas Carnavalescas” (Diário de Natal, 18/02/1948), reconhece a pobreza, mediocridade e vulgaridade das letras de muitas músicas carnavalescas: Meia dúzia de idiotas, (pertenço a essa meia dúzia) há anos e

anos vem lutando contra a vulgaridade criminosa das letras que sujam as músicas de carnaval, músicas sempre deliciosas de graça melódica: vivazes, sugerindo movimento, alacridade, bom humor.

Em outras crônicas, já havia abordado o assunto. Sugere até a criação de um órgão de censura para as letras, antes da divulgação...

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SOUZA, Oswaldo de. Música folclórica do Médio Rio São Francisco (v. 1, 1979; v. 2, 1980). Detalhes da viagem e pesquisa em GALVÃO, Claudio. Oswaldo de Souza: o canto do Nordeste (1988).