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Inicio esta seção afirmando que, em ADC, os conceitos basilares que a compõem estão interligados dialeticamente, em constante movimento, o que dificulta a identificação das fronteiras que os separam. Portanto, meu objetivo é tentar explicar os conceitos de discurso, ordens de discurso, práticas sociais, textos e eventos sociais e, em seguida, recuperar os conceitos de ideologia e hegemonia, para, assim, finalizar o panorama introdutório da ADC.

O conceito de discurso é desenvolvido por autores de diversas áreas, tais como a Linguística, a Filosofia, as Ciências Sociais e a Antropologia. Neste trabalho, adoto a definição de discurso de Fairclough (2001; 2003; 2010) e de Chouliaraki e Fairclough (1999). Fairclough (2001, p. 94-95) entende discurso como “um modo de ação, uma forma em que as pessoas podem agir sobre o mundo e especialmente sobre os outros, como também um modo de representação”, definição que advém da Linguística Sistêmico-Funcional (LSF) de Halliday (1985), que divide o discurso em funções da linguagem (Fairclough adere parcialmente a essa visão, em sua obra de 2001). Com o desenvolvimento de seu trabalho, Fairclough (2003) passa a ver o discurso enquanto tipos de significado do discurso, ainda fazendo um paralelo com as funções da linguagem de Halliday (1985):

Representação corresponde à função ‘ideacional’ de Halliday; Ação aproxima-se de sua função ‘interpessoal’, embora enfatize o texto como uma forma de (inter)agir em eventos sociais, e como pode ser visto como incorporando Relação (encenando relações sociais); Halliday não diferencia uma função separada relacionada à identificação – muito do que eu incluo em Identificação está em sua função ‘interpessoal’. Eu não distinguo uma função ‘textual’ a parte, em vez disso, eu incorporo-a na Ação (FAIRCLOUGH, 2003, p. 27, tradução minha).31

Por isso, o discurso passa a ser entendido como formas de ser, de (inter)agir e de representar o mundo, por meio de textos. Portanto, a palavra discurso, em ADC, possui dois sentidos: como termo abstrato e momento irredutível das práticas sociais e como termo concreto, que representa um modo particular de ver aspectos do mundo (relacionado ao significado Representacional do discurso). A primeira noção de discurso também pode ser chamada de ordem do discurso (FOUCAULT, 1999; FAIRCLOUGH, 2001).

Práticas sociais são “modos habituais [mais ou menos abstratos], ligados a tempos e lugares articulados, nos quais as pessoas aplicam recursos (materiais ou simbólicos) para atuarem juntas no mundo” (CHOULIARAKI; FAIRCLOUGH, 1999, p. 21), são “atividade[s] potencia[is] individua[is] ou coletiva[s], que t[ê]m fundamento nas instituições sociais, envolve[m] procedimentos rotineiros e de conhecimento dos participantes e t[ê]m implicações para o público em geral ou para um pequeno grupo social” (MAGALHÃES;MARTINS; RESENDE, 2017, p. 125). Logo, as práticas sociais são constituídas por discursos, crenças, valores, desejos, sujeitos e suas relações sociais, objetos, instrumentos, atividades materiais, tempo e lugar (FAIRCLOUGH, 2010).

31 No original: Representation corresponds to Halliday’s ‘ideational’ function; Action is closest to his ‘interpersonal’ function, though it puts more emphasis on text as a way of (inter)acting in social events, and it can be seen as incorporating Relation (enacting social relations); Halliday does not differentiate a separate function to do with identification – most of what I include in Identification is in his ‘interpersonal’ function. I do not distinguish a separate ‘textual’ function, rather I incorporate it within Action.

Dizer que o discurso é um momento das práticas sociais é dizer que o discurso é materializado em textos e que age sobre a estrutura social, assim como a estrutura social constrange esses textos, por meio da prática social, dialeticamente. A ordem do discurso é, então, o aspecto discursivo das práticas sociais, e é por meio dela que acessamos gêneros discursivos, discursos (no sentido concreto do termo) e estilos específicos em textos de uma determinada prática social. Por conseguinte, as redes de práticas sociais se organizam por meio de um “sistema, isto é, um potencial semiótico estruturado que possibilita e regula nossas ações discursivas, tal como as práticas sociais possibilitam e regulam nossas ações sociais” (VIEIRA;RESENDE, 2016, p. 46-47). Esse “sistema” é chamado de redes de ordens do discurso.

Como brevemente citado anteriormente, os textos materializam discursivamente os eventos sociais, decorrentes de práticas sociais, e podem ser falados, escritos ou multimodais (FAIRCLOUGH, 2003). Se os textos agem sobre a estrutura social, ainda que de forma lenta e gradual, eles promovem mudanças. Assim, nas palavras de Fairclough (2003):

Quase imediatamente, textos podem promover mudanças em nosso conhecimento, (nós podemos aprender coisas com eles), nossas crenças, nossas atitudes, valores e assim por diante. Eles também podem causar efeitos a longo prazo – alguém pode, por exemplo, argumentar que uma longa experiência com propagandas e outros textos comerciais pode contribuir para moldar as identidades das pessoas como ‘consumidoras’ ou suas identidades de gênero. Textos podem também começar guerras ou contribuir para mudanças em educação ou para mudanças nas relações industriais, e assim sucessivamente. Seus efeitos podem incluir mudanças no mundo material, tais como mudanças no design urbano ou na arquitetura e no design de tipos particulares de edifícios (FAIRCLOUGH, 2003, p. 8, tradução minha).32 Ou seja, textos têm a potencialidade de promover mudanças em todos os elementos constituintes das práticas sociais, que contribuem, ou não, na transformação da estrutura social. Porém, como o próprio Fairclough (2003) ressalta, essa causalidade dos textos não é mecânica.

Com o intuito de esclarecer explicitamente, um evento social é a materialização das práticas sociais, o que significa dizer que elementos potenciais das práticas sociais se materializam (mesmo que parcialmente, por vezes) e tornam-se concretos. Já o discurso, enquanto ordem de discurso, materializa-se em textos. Assim, temos que as línguas estão para

32 No original: Most immediately, texts can bring about changes in our knowledge (we can learn things from them), our beliefs, our attitudes, values and so forth. They also have longer-term causal effects – one might for instance argue that prolonged experience of advertising and other commercial texts contributes to shaping people’s identities as ‘consumers’, or their gender identities. Texts can also start wars, or contribute to changes in education, or to changes in industrial relations, and so forth. Their effects can include changes in the material world, such as changes in urban design, or the architecture and design of particular types of building.

as estruturas sociais (abstratas), assim como as ordens de discurso estão para as práticas sociais (mais ou menos abstratas) e os textos, para os eventos sociais (concretos).

Baseado no debate efetuado até aqui, preciso, neste momento, pensar nos conceitos de ideologia e hegemonia e sua relação com os textos, com o discurso e com a ADC. Pensando que o texto materializa práticas sociais e algumas potencialidades das estruturas sociais e age sobre elas, ao mesmo tempo, seria correto dizer que um texto pode contribuir para a reprodução ou transformação de aspectos da sociedade. Toda e qualquer prática social possui em si diversos modos de (inter)agir, de ser e de representar, como mencionado anteriormente. Tais modos são materializados em textos que podem estar, ou não, investidos ideologicamente. Dizer que um texto é ideológico significa dizer que ele ajuda a preservar ou a manter uma relação opressora entre grupos de pessoas. Quanto mais eficaz ideologicamente for um discurso em um texto, menos perceptíveis são as estratégias e as formas usadas para tal fim; dessa forma, quando uma ideologia é desvelada, ela perde sua força de ação (FAIRCLOUGH, 1989).

Portanto, por acreditarmos, em ADC, que a linguagem é social e que o social é construído, também pela linguagem, e por acreditarmos que a mudança discursiva e social são cabíveis, é objetivo da ADC investigar discursivamente as ‘pistas’ ideológicas presentes em textos e desvelá-las, contribuindo com a luta hegemônica e com a emancipação social de (grupos de) atores sociais. Dito isso, fica claro que nosso material de análise sempre será o texto (FAIRCLOUGH, 2001), que nos permitirá acessar os demais elementos da prática social e entender a ideologia que há investida no texto e qual a relação de poder que ele ajuda a sustentar.

Na seção seguinte, apresento as três categorias analíticas adotadas nesta pesquisa.