• Nenhum resultado encontrado

5.3 ASPECTOS DESFAVORÁVEIS PARA A CONSOLIDAÇÃO DO VÍNCULO

5.3.2 A TENDIMENTO INSATISFATÓRIO

Se o atendimento satisfatório auxilia na consolidação do vínculo, o atendimento insatisfatório agirá de forma contrária. No trecho E05, quando perguntado sobre qual seria o/a profissional mais difícil de conversar, o paciente Cauã não só mostra sua insatisfação com o atendimento dos/as atendentes do SAME, cujas responsabilidades são, entre outras, lidar com os prontuários, dar informações, marcar consulta e fazer encaminhamentos dentro do CSF; como também contribui para construção de uma definição de “dar atenção”, nos moldes da ESF. Isso é feito quando diz: “(…) fala assim como se perdesse a esperança (…) eles num dão muita atenção, num tem uma estimativa, num tem nada”. A metáfora “como se perdesse a esperança” mostra uma apatia no atendimento, que aflige o/a paciente, causado por uma aceitação de que as coisas são como são e que não vão mudar. Essa forma de ver o serviço público é comum no contexto do Ceará.90 Já o verbo “ter”, Processo relacional possessivo, indica que o mínimo desejado seriam informações sobre o tempo de espera, mas em alguns

89 A frase e o trecho como um todo não me permitem dizer se o elemento “a gerência” é Ator ou Meta, por isso, ponho a possibilidade de ser qualquer um dos dois.

90 Dado observado durante pesquisa de campo nas demais cidades participantes do projeto “O Diálogo como Instrumento de Intervenção de Profissionais da Saúde na Relação com Pacientes”, financiado parcialmente pela Funcap-CE e parcialmente pelo CNPq, coordenado por Izabel Magalhães e em andamento desde 2013.

casos o SAME, de fato, não tem acesso. Logo, por este ficar às cegas, não consegue dar um conforto ao/à paciente, que fica insatisfeito.

Os/as pacientes, durante o grupo focal, falaram sobre o “sistema”, como é possível ver nas orações (49) a (51) a seguir, retiradas do trecho E06:

O sistema que é falho

Portador Marca de oralidade Processo relacional atributivo Atributo

(49) Fala da usuária Bárbara, trecho E06

A falha geralmente é no sistema, que num funciona,

Portador Circ. de extensão

(frequência) Processo relacionalcircunstancial Atributo circunstancialde localização (lugar) Elem.Textual Elem.Interp. Processo materialtransformativo

(50) Fala do usuário Cauã, trecho E06

agora91 o atendimento é razoável, bom.

Elem. Textual Portador Processo relacional atributivo Atributo Atributo

(51) Continuação da fala do usuário Cauã, trecho E06

O que seria o “sistema”? Seria o SUS, a ESF, a saúde em Sobral, a rede de apoio? O Processo material na oração (50) antropomorfiza o Ator “sistema”, que recebe toda a carga negativa do comentário, não indica quem seria responsável ou componente desse “sistema” e distancia-o da realidade. Ademais, a ausência de Circunstâncias, que ofereceriam mais informações sobre ele, demonstra um baixo comprometimento do paciente com o que é dito. A oração (51), de mesmo modo, corrobora com isso, já que o “sistema”, ruim, falho, distante, pouco acessível é comparado com o atendimento recebido no CSF, considerado “razoável”, “bom”, e palpável.

Vejamos a oração (52) e as orações projetadas (53) e (54), presentes no trecho E07, a seguir. Nelas, a enf. Priscila responde à pergunta: “E na sua opinião, ainda sobre o vínculo terapêutico, o que você acha que dificulta ou fragiliza esse/ a consolidação desse vínculo?”.

Eu acho que um profissional que trabalha numa unidade muito sobrecarregado dificulta muuuito o vínculo, porque você não tem a oportunidade de dar atenção que o paciente precisa

Experienciador Processo mental cognitivo Oração projetada

91 Possui sentido adversativo, por isso foi considerado como elemento textual, e não, circunstância de localização (tempo).

(52) Fala da Enf. Priscila, trecho E07 que um profissional que trabalha numa unidade

sobrecarregado

dificulta muuuito o vínculo,

Elem. Textual

Ator Processo material

transformativo

Circ. de modo (grau)

Meta

(53) Oração projetada da fala da Enf. Priscila, trecho E07 porque você não tem a oportunidade de dar atenção que o paciente precisa

Elem.

Textual Possuidor Elem.Interp. Processo relacionalpossessivo Possuído

(54) Continuação da oração projetada da fala da Enf. Priscila, trecho E07

Além da modalidade subjetiva comum, marcada por “eu acho”, a enfermeira Priscila compromete-se pouco com sua fala ao responsabilizar o Ator “profissional sobrecarregado” de dificultar a consolidação do vínculo, haja vista que o/a profissional de saúde é sobrecarregado pela quantidade grande de funções para exercer e pacientes para atender; logo, acredito que ele/a não seria o/a responsável imediato. A responsabilização do profissional na fala da enfermeira também ocorre na construção da oração (54), em que há a impersonalização do Possuidor, e há a presença de uma nominalização no Possuído (“a oportunidade”), a qual omite a ação de receber, ou não, uma oportunidade de alguém (Processo material). Algo semelhante acontece em outro momento da fala da enf. Priscila: “Eu acho que um profissional insatisfeito com a sua profissão dificulta (o vínculo)”.

Por último, sobre o atendimento insatisfatório, a ACS Laís diz (trecho E08, orações (54) e (55)), quando perguntada sobre o que deveria ser mudado no atendimento:

Eu ainda vejo muitaa é ignorância por parte dos do

TRATAMENTO Experienciador Elem. Textual Processo mental perceptivo Circ. de modo (grau) Marca da oralidade Fenômeno

(55) Fala da ACS Laís, trecho E08

Um bom acolhimento é importante

Portador Processo relacional atributivo Atributo

(56) Fala da ACS Laís, trecho E08

Novamente, há dois casos de nominalização (“tratamento” e “acolhimento”), que suprimem o ator social e as ações que eles executam, transformando-as, respectivamente, em (parte de) um Fenômeno e um Portador. Além disso, a escolha pelo uso de Processo mental e Processo relacional corrobora com esse encobrimento, haja vista que, nesse, os dois elementos

estão relacionados, não havendo ação; e naquele um Experienciador percebe algo, indicando uma ação que ocorre dentro do mundo mental, não no mundo material, da realidade (FUZER;CABRAL, 2014). Por fim, quando questionada a respeito da definição de “receber bem” (referente ao bom acolhimento), ela responde: “Tratamento, bom dia, um simples bom dia, né, que é muito importante… dar informação, é direcionar, direcionamento CORRETO (…)”.

Considerando o que foi analisado e com base no que vivenciei no trabalho de campo, por meio da observação participante, nos trechos analisados e nos trechos de apoio (F01 a F16), acredito haver uma fragilidade na estabilidade profissional atrelada a um receio de se prejudicar, os quais dificultam os/as participantes de dizerem diretamente quem ou o que é/são responsável/is pela maioria dos fatores negativos presentes na ESF. Isso foi observado nessa subseção e na anterior e voltará a se evidenciar na próxima, e, por isso, não me alongarei sobre isso, neste momento.