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5.3 ASPECTOS DESFAVORÁVEIS PARA A CONSOLIDAÇÃO DO VÍNCULO

5.3.1 R OTATIVIDADE DE PROFISSIONAIS DE SAÚDE

A frequente troca de profissionais de saúde nos CSFs foi comentada desde a Pesquisa Inicial, tanto em conversas informais, quanto em algumas entrevistas que foram descartadas. Esses dados me fizeram perceber a necessidade de perguntar sobre a rotatividade quando refiz as primeiras entrevistas, principalmente aos profissionais de saúde. Essa decisão foi tomada fora do campo de pesquisa, em momento posterior à Pesquisa Inicial, quando refleti sobre o que eu havia vivenciado. Quando voltei a campo e descobri que uma das enfermeiras e a gerente do posto haviam saído do CSF Oswaldo Cruz, percebi que além de necessário, era urgente não só perguntar nas entrevistas, como analisar minuciosamente essa fragilidade presente na ESF em Sobral/CE. Por isso, utilizei o mesmo recurso da nuvem de palavras gerada no website <wordclouds.com> com as palavras-chave sobre a rotatividade de profissionais,84 a fim de ilustrar o que profissionais de saúde e pacientes acham sobre isso. A seguir, apresento a Figura 10, em que consta a nuvem de palavras.

Figura 10: Nuvem de palavras acerca da rotatividade de profissionais de saúde

Fonte: Da autora, gerada pelo website <wordclouds.com>

84 Relembro que o website <wordclouds.com> não reconhece locuções, nomes compostos ou termos como sendo apenas uma palavra; por isso, esses casos estão interligados por hífen.

Com base na nuvem de palavras, é fácil perceber que não há nenhum termo positivo associado à rotatividade de profissionais, apenas termos negativos e neutros.85 Esses últimos estão incluídos na lista de palavras-chave por sofrerem com a rotatividade, como mostrarei nas próximas páginas. Introduzo a seção com falas do grupo focal de pacientes (trecho E01, retirado do grupo focal com pacientes):

Ultimamente, os médico que vêm geralmente são os recém-formado

Elem. Interp. Identificado Circ. de extensão (frequência)

Processo relacional identificativo

Identificador

(33) Fala do usuário Cauã, trecho E01

(isso) É um rodízio,

Identificado Processo relacional identificativo86 Identificador Marca da oralidade (34) Fala da usuária Andressa simultânea à do usuário Cauã, trecho E01

Nunca tem um médico que acompanha ele (paciente) até o final

Circ. de extensão (frequência) Processo existencial Existente

(35) Continuação da fala do usuário Cauã, trecho E01

Três meses depois é outro médico

Circ. de localização (tempo) Processo existencial Existente

(36) Fala do usuário Cauã, trecho E01 O que mais se apresenta relevante nas orações (33) a (36) são, em primeiro lugar, as Circunstâncias de tempo e frequência, que aparecem em três, das quatro orações. Essas Circunstâncias ilustram a inconstância de permanência de profissionais de saúde na rede pública87 de Sobral, comprovada inclusive pela indignação da paciente Andressa, expressa na fala “ELE NÃO CONHECE MEU HISTÓRICO, porque é um rodízio tão grande”. Provavelmente, Andressa refere-se aos/às profissionais da rede de apoio, haja vista que é mantido prontuário de cada família atendida no CSF, por mais que haja grande rotatividade de profissionais. Nos trechos de apoio F01 a F05, em especial o F04, essa frequência de troca de profissionais é comentada detalhadamente.

85 Considero termos neutros aqueles que, por si só, não carregam um significado negativo. Por exemplo, as palavras “enfermagem” e “medicina” significam áreas de formação e “gerência” é um cargo, então considerá-las negativas não seria adequado.

86 Por conta da dificuldade de inferir exatamente a que a paciente Andressa se refere, essa oração pode ser interpretada também como um processo existencial, em que o único participante seria o rodízio (existente). 87 O termo “rede pública” não se restringe apenas aos CSFs, mas também aos profissionais e clínicas

Em segundo lugar, os processos escolhidos para se referirem ao “fenômeno” são, em sua maioria, existenciais, especialmente se considerarmos a oração (34) como existencial, que é outra interpretação possível. Dessa forma, a ação de contratar um/a profissional de saúde, bem como os participantes envolvidos nessa ação não são representados, pois, como comentado anteriormente, os Existentes simplesmente existem, como um acontecimento autônomo. Portanto, o que parecem ser orações categóricas “absolutas”, com altíssimo comprometimento com a verdade, tratando-se de modalidade, no fundo, não o são. Voltarei a falar disso adiante.

A ACS Laís, quando questionada a respeito da rotatividade de profissionais, no trecho E02, caracteriza-a, por meio de um atributo, como “uma coisa negativa”,88 e explica o porquê, como podemos ver nas orações (37) a (41):

Porque se você cria um vínculo…

Elem. textual Elem. textual Ator Processo material criativo Meta

(37) Fala da ACS Laís, trecho E02

E aquele vínculo é quebrado…

Elem. Textual Meta Processo material transformativo

(38) Fala da ACS Laís, trecho E02

E vem outro (profissional de saúde)…

Elem. Textual Processo material criativo Ator

(39) Fala da ACS Laís, trecho E02

E deixa a desejar…

Elem. Textual Processo material Escopo-processo

(40) Fala da ACS Laís, trecho E02

vem a a cobrança.

Elem. Textual Processo material criativo Ator

(41) Fala da ACS Laís, trecho E02

Na explicação da ACS Laís, há, novamente, a impersonalidade por abstração do ator social, por meio do uso do “você”, que marca uma situação hipotética. Logo, isso não é o fator relevante. Já a oração (38) é particularmente intrigante, haja vista que a oração está na voz passiva e há o apagamento do Ator do Processo material, bem como a falta da causa do vínculo, por meio de uso de Circunstância. Ambos o participante Ator e as circunstâncias não são obrigatórias no processo, motivo pelo qual o Ator foi omitido e não houve explicitação de razões para a quebra do vínculo; porém a escolha por omiti-los é significativa. Além disso, o uso de Processo material na oração (39), em que o Ator é o substituto do/a profissional que foi

trocado, faz parecer que a decisão de trabalhar no novo local foi decisão do Ator e não de um órgão regulador, nesse caso, a Secretaria de Saúde do município. Algo parecido acontece em (41), em que a nominalização “cobrança” é o Ator do Processo material, dificultando a recuperação do ator social excluído por encobrimento. Outro exemplo de uso de nominalização para encobrir o ator social é “medida administrativa”, presente na frase: “Foi só medida administrativa”, da mesma participante, no mesmo trecho.

A seguir, as orações (42) e (43), retiradas do grupo focal com profissionais de saúde, quando perguntados sobre a rotatividade de profissionais no CSF:

Existe uma rotatividade profissional ENOOORME ENORME ENORME ENORME

Processo

existencial Existente Circ. de modo(grau) Circ. de modo(grau) Circ. de modo(grau) Circ. de modo(grau)

(42) Fala do ACS Gustavo, trecho E03

(quando) Troca um profissional, o vínculo ó estilhaça

Elem. Textual Processo material

transformativo Meta Ator Marcaoralidade de Processo materialtransformativo

(43) Fala do ACS Gustavo, trecho E03

Em (42), destaco a repetição da Circunstância de modo (grau), enfatizada pela marca de alteração no tom de voz (maiúsculas), e o processo existencial, que, como dito anteriormente, não indica como, por conta de quem ou por quê existe o Existente. Já na oração (43), o Ator do primeiro Processo material é omitido e o Ator do segundo processo é personificado e responsável pela ação. Isto é, em vez de “o vínculo” ser Meta como esperado, já que é ele o “estilhaçado” na fala, e em vez de “estilhaça” estar na estrutura de voz passiva, a oração é construída como ativa (vínculo como Ator). Assim, a princípio faz-se a pergunta: “o vínculo estilhaça o quê?”. Depois, fica claro que “estilhaça” tem o sentido de “estilhaça- se”, num processo reflexivo, que mais uma vez, não só exclui o real ator social da ação, como também faz entender que o vínculo quebra a si mesmo, por conta de uma troca feita sem ator explícito. Todos esses elementos juntos constroem um fenômeno incontrolável e inevitável.

O ACS Gustavo e a enfermeira Priscila dão uma sugestão de melhoria para a rotatividade, nas orações (44) a (46), abaixo:

O concurso ele estabiliza o profissional

Ator Processo material trasnformativo Meta

O vínculo que a gente tem empregatício é muito frágil

Portador Processo relacional atributivo Circ. de modo (grau) Atributo

(45) Fala da Enf. Priscila, trecho E03

Isso dificulta… o trabalho

Ator Processo material transformativo Meta

(46) Fala da Enf. Priscila, trecho E03

As construções frasais seguem o mesmo padrão das anteriores, pois antropomorfizam “o concurso” (44) e “o vínculo empregatício” (46), ação que, enfatizo, suprime o real Ator/ator social da oração. Para além da gramática, a fala “QUISERAM… DESVINCULAR profissional DAQUELE local, porque ele já tava HÁ MUITO TEMPO” da enfermeira Priscila (trecho E03), exemplifica uma das razões pelas quais a Secretaria de Saúde municipal troca frequentemente os/as profissionais. É uma prática que, parafraseando a mesma participante, em sua fala do trecho de apoio F05, que trago a seguir a título de ilustração, vê o longo tempo de um profissional em um CSF como criador de “vícios” e não de vínculos.

Primeira entrevista com a enf. Priscila

17. Pesquisadora: Comente sobre a rotatividade de profissionais de saúde nas unidades.

18. Enf. Priscila: É, eu eu, assim, eu vejo que ééé hoje em dia há uma grande dificuldade de/ TALVEZ, NÃO SEI, de de alguns gestores compreenderem essa essência do da Estratégia Saúde da Família, que é a NECESSIDADE do vínculo. De alguns anos pra cá, nós temos tido algumas mudanças aqui no… na prefeitura, é onde eu percebo que que os gestores… eles têm uma imagem distorcida do profissional que fica MUITO tempo naquela unidade, como se isso fosse/ em vez de gerar um vínculo, girass/ gerasse VÍCIOS, né, então assim eu acredito que o vínculo, pra ele existir, o profissional ele tem que permanecer por um tem/ um tempo prolongado, que ele tem, que ele vai gerar um conhecimento da comunidade que ele trabalha, dos profissionais que ele trabalha e que OUTROS problemas, né, de funcionamento organizacional ou de gerenciamento eles precisam ser resolvidos éé nesse nível, né, de de de se conversar, de se precisar é de de, como é o nome? advertências, né, dos processos punitivos mesmo, né (…).

O último trecho analisado nesta seção é o E04, que teve como pergunta geradora: “Como você vê a rotatividade de profissionais na unidade?”. As orações (47) e (48), que se seguem, mantêm o padrão observado na fala dos/as participantes até então. Em (47), suprime-

se o Ator do processo material, se considerarmos “a gerência” como meta, ou coloca-a como Ator que executa a ação sobre si, como aconteceu na oração (43). Em (48), por outro lado, outro padrão se materializa: o uso de Processo existencial, junto da nominalização (“mudança”) para transformar uma ação em um acontecimento e excluir os atores sociais responsáveis. As orações (47) e (48) estão dispostas, a seguir.

De dois em dois ano agora está mudando (a gerência)

Circ. de extensão (frequência) Circ. de localização (tempo) Processo material transformativo Ator/Meta89 (47) Fala da ACSCamila, trecho E04

Teve muita mudança já de vários médicos e enfermeiras

Processo existencial Circ. de modo (grau) Existente

(48) Fala da ACSCamila, trecho E04

O próximo assunto a ser analisado é sobre o atendimento insatisfatório como prejudicial ao vínculo terapêutico.