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3 O SISTEMA VOCÁLICO E CONSONANTAL NO FAC-SÍMILE DE

3.1 A diferença entre Vogal e Consoante

A análise do sistema ortográfico de qualquer língua, independente do período em questão, exige, antes, reflexões do que é a escrita, pois é por meio dessa tecnologia que a ortografia se materializa

O objetivo primordial da escrita é permitir a leitura a qual se processa quando interpretada a partir dos símbolos escritos, traduzidos na linguagem oral. Cagliari apud Silva (2009, p. 18) define a escrita como uma “representação gráfica que permite a leitura”. Esta definição é fundamental para se entender qualquer aspecto relacionado a ela. O especialista acrescenta que:

Com relação aos sistemas de escrita, é preciso sempre partir da ideia de que eles foram criados para permitir a leitura. [...] Ora, se o sistema de escrita permite a leitura, ele é uma representação da linguagem oral e só faz se associado à linguagem oral; não é uma linguagem independente, não vale por si. A escrita nunca é representação direta de um pensamento, porque este só existe na linguagem oral.

Ainda, para esse autor, a unidade básica de todo sistema de escrita é a palavra. Nenhum sistema de escrita transmite, diretamente, um significado ou um som. Toda representação escrita exige do leitor (ou do escritor, na hora de escrever) uma interpretação para traduzir o que está escrito em material próprio da língua oral. Segundo o autor:

A ortografia abriu caminho para a leitura em qualquer variedade dialetal. Isto ajudou muito o leitor que terá diante de si um mesmo texto, que poderá ser lido em diferentes pronúncias, de acordo com as conveniências sociais, como diz a sociolinguística. Para a escrita, porém, a ortografia complicou a vida do usuário. Agora, ninguém pode mais escrever como fala. Precisa escrever de acordo com a ortografia vigente. Isto requer um aprendizado a mais, além do simples ato de escrever alfabeticamente. (CAGLIARI, 1994a, p. 6).

O sistema ortográfico da língua portuguesa é composto de letras vocálicas e consonantais. A natureza fonêmica da ortografia portuguesa, assim como a dos sistemas ortográficos de outras línguas, garante a unidade do sistema de escrita. Se a escrita fosse fonética, isto é, se representasse exatamente os sons da fala, teríamos uma diversidade tamanha que a unidade da língua ficaria comprometida. Isso porque a escrita reproduziria, não só a imensa variedade dialetal brasileira, mas também aquela que se verifica entre os falares do português europeu e africano. Uma palavra cuja forma ortográfica única é ‘vestido’, por exemplo, pode ser pronunciada no português do Brasil de, no mínimo, cinco formas diferentes, [ves’tido], [vis’tido], [vis’tidu], [vis’tidu], ou [vi’tidu] dependendo do dialeto do falante. Se cada usuário da língua portuguesa escrevesse a palavra “vestido” da maneira como pronuncia seria um caos para a leitura. Nessa perspectiva, vale ressaltar aqui, as palavras do foneticista Cagliari (2004, p. 18) “a ortografia existe para neutralizar a variação linguística”.

Articulatoriamente, a diferença entre consoantes e vogais é que, para as consoantes, o ar é obstruído de alguma maneira, enquanto a passagem do ar é livre para as vogais. Os segmentos consonantais são sons de fala produzidos com algum tipo de obstrução nas cavidades supraglotais, podendo haver obstrução total/parcial ou fricção da corrente de ar. Os segmentos vocálicos são sons produzidos por uma corrente de ar pulmonar egressiva que faz vibrar as cordas vocais normalmente. O que varia na produção dos sons vocálicos é a forma e o tamanho do trato vocal. (SILVA, 2003).

Na Gramática de Fernão de Oliveira (1536, p. 25), no sexto capítulo, o autor faz uma referência sobre a diferença entre os segmentos vocálicos e consonantais, no qual relata:

Figura 3.1 - Diferença entre letra e figura de voz

Fonte: Imagens do arquivo pessoal do Professor Cagliari (FERNÃO DE OLIVIERA, 1536, p. 25).

Transcrição: Letra é figura de voz estas dividimos em consoantes e vogais. As vogais tem em se

voz: e as consoantes não se não juntas com as vogais.Como .A. que é vogal: .B. que é consoante: e não tem voz ao menos tão perfeita como .A. vogal. As figuras dessas letras chamam os gregos de caracteres: e os latinos notas: Nós lhe podemos chamar Sinais. Os quais hão de ser tantos como as pronunciações a quem os latinos chamam de elementos: e nós podemos interpretar fundamentos das vozes e escritura.

Fernão de Oliveira descreve letra como figura de voz, ou seja, o que atualmente é considerado um fonema. Estas figuras são divididas em vogais e consoantes, sendo as vogais, aquelas figuras que possuem voz e as consoantes as que não possuem, senão junto com as vogais. Já a letra é por ele chamada de sinal.

Não muito diferente de Fernão de Oliveira, Madureira Feijó (1734) diferencia as vogais das consoantes, também pela relação da letra com a voz. Ambos os autores as diferenciam mostrando que as consoantes só produzem sons junto com as vogais. Estas são em números de oito, -  a, ε, e, i, o, , u, y, mas que não têm mais que cinco figuras. Oliveira (1536, p. 27), por sua vez, afirma:

Figura: 3.2 - Vogais grandes e pequenas

Fonte: Imagens do arquivo pessoal do Professor Cagliari (FERNÃO DE OLIVIERA, 1536, p. 27).

Transcrição: Na nossa língua podemos dividir antes e necessário que dividamos as letras vogais em

grandes e pequenas como os gregos, mas não já todas porque é verdade que temos a grande e pequeno; e  grande e  pequeno; e também grande e  pequeno. Mas não temos assim diversidade em .i. nem.v.Temos a grande como almada e  pequeno como lemnha: temos  grande como fsta e e pequeno como festo: e temoso grande como fermso e o pequeno como fermoso. E conhecendo esta verdade avemos de confessar que temos oito vogais na nossa língua, mas não temos mais de cinco figuras: porque não queremos saber mais de nos que quando nos ensinam os latinos: aos quais diz Plinio que é pouco saber escoldrilhar as coisas alheias não nos entendendo a nos mesmos.

Oliveira (1536), na sua gramática, pontua que as vogais estão dividas em grandes e pequenas. O que ele chamou de grandes são as vogais abertas , , e de pequenas as fechadas , , .

Para o referido autor, os gramáticos costumam:

[...] repartir as letras consoantes em mudas e semivogais em qualquer língua, e esta é a principal causa de sua repartição, que as semivogais podem estar no fim das vozes como as vogais. E, portanto, se chamam semivogais, que quer dizer quase vogais. E as mudas, cujo nome é bem claro, não podem dar cabo às vozes. E deixadas outras razões desta divisão por esta que me a mim melhor parece: não há aí entre nós mais letras semivogais que somente estas: l, r, s e z [...]. As letras mudas são estas: b, c, d, f, g, m, n, p, q, t e x. Chamam-se mudas porque em si (não) têm voz alguma nem oficio ou lugar que lha dê (OLIVEIRA, 1536, p. 7-7v).

Feijó (1734, p. 20-21) em sua gramática “Orthographia ou Arte de Escrever, e Pronunciar com Acerto a Língua Portugueza” fez uma distinção sobre as vogais e consoantes:

Figura 3.3 - diferença entre vogal e consoante

Fonte: Imagens do arquivo pessoal do Professor Cagliari (FEIJÓ, 1734, p. 20-21).

Transcrição: 4. Dividem-se todas as letras acima em Vogais e Consoantes. As vogais são seis, A, e,

i, o, u, y. Chamam-se vogais, porque cada uma por si só tem voz clara, e definida. As mais chamam- se de Consoantes, porque na sua pronunciação soam juntamente com as vogais; tanto que se as escrevêssemos como as pronunciamos seriam assim be, ce, de, efi, Ge, aha e jota. O H para os latinos, não é letra, mas um sinal de aspiração nas letras, a que se junta. Para nós serve de letra nas palavras, em que se escreve depois de C, N, L, e soa Cha, Che, Chi, Cho, Chu, Nha, Nhe, Nhi, Nho, Nhu, Lha, Lhe Lhi, Lho, Lhu.

5. As Consoantes dividem-se em Mutas ou Mudas, e Semivogais. As Mutas são oito: B, C, D, G, K, P, Q, T. Chamam-se Mudas, porque por si só não tem voz alguma, nem som perceptível; como experimentará quem as quizer pronunciar sem a vogal junta. As semivogais, ou quase vogal são outras oito: F, L, M, N, R, S, X e Z.. Chamam-se semivogais porque na sua pronunciação tem um meio tom de vogais.

Para Feijó todas as letras são divididas em vogais e consoantes, as vogais eram assim chamadas devido à clareza na voz e eram em número de seis , , , , , . As consoantes, na sua pronúncia, segundo ele, eram produzidas como as vogais:

[...] tanto que se escrevêssemos como pronunciamos teríamos os sons be,

ce, de, efi, Ge, etc. (...) As consoantes dividem-s em mutas ou mudas e

semivogais. As mudas são oito – B, C, D, G, K, P, Q, T. Chamam-se Mudas porque por si só não tem voz alguma, nem som perceptível, como experimentará que as quizer pronunciar sem a vogal junta. (FEIJÓ, 1734, p. 21).

Coutinho (1973) define um som vocálico como fonemas que ao serem produzidos ocorrerá uma vibração da glote e irá passar pela boca, sem encontrar obstáculo. E as consoantes são fonemas resultantes do obstáculo oposto pelos órgãos bucais à corrente de ar, sonorizada ou não pela glote. O autor acrescenta que:

Não se julgue que exista diferença radical entre vogais e consoantes. Um abrimento maior ou estreitamento do tubo vocal poderá determinar a transição de uma espécie para outra, fazendo que as vogais se transformem em consoantes, e vice-versa. (COUTINHO, 1973, p. 93).

Ao pronunciarmos palavras formadas tanto por sons vocálicos quanto consonantais, estamos traduzindo padrões fônicos mentais, aos quais chamamos de fonemas. Os sons são ilimitados em termos articulatórios e acústicos, podendo não ser nunca exatamente iguais. Já os fonemas são poucos, mas sempre os mesmos. Na escrita, o sistema de sinalização visual acontece semelhante ao da fala. Escrevemos e desenhamos letras que traduzem modelos gráficos mentais aos quais denominamos “grafemas”.

Bloomfield, na esteira do pensamento lingüístico de Sapir, postulou que fonema “seria uma unidade mínima de traços sônicos distintivos”. Para Trubetzkoy e Jakbson, fonema é um conjunto de traços fonologicamente relevantes numa estrutura fônica. (CAMARA JR., 1980, p. 30,31).

Um mesmo fonema varia, na sua realização, de acordo com o ambiente fonético ou as peculiaridades do sujeito falante. No português isso acontece com o fonema /l/, quando pré-vocálico ele é dental ou anterior e quando pós-vocálico é posterior ou velar, por exemplo: liberdade, immortal. Por outro lado, sendo o fonema um conceito da língua oral, não deve ser confundido com a letra da língua escrita.

Trubetzkoy (apud CÂMARA JR, 2008) distingue o segmento vocálico do consonantal através de um critério distributivo de que as vogais podem sempre estar na posição de núcleo de sílaba, enquanto as consoantes, em muitas línguas, não podem. Para o autor, as consoantes do sistema ortográfico português não possuem função silábica e o núcleo da sílaba será sempre uma vogal. (CÂMARA JR, 2008, p. 51).

Vogais e consoantes são sons produzidos dentro de padrões mentais, como já citado anteriormente, que permitem codificar e decodificar um número infinito de mensagens faladas e escritas. Em relação às consoantes pode-se verificar:

a) o uso de mais de uma letra para um só fonema; Tem-se para exemplificação alguns modelos retirados dos corpora em estudo:

Para o fonema /s/ - letras C, Ç, SS e Z (entre vogais)

Quadro 3.1 - Representação do fonema /s/ nos corpora

Harpas de Ouro Documentos da Guerra Jornais

Ceos província Lyceu

Secção amiaçada Pontissima

cassino consecuençias Acções

revèzes vantajozo Brazileira

b) o uso de uma só letra para mais de um fonema: Para os fonemas /k,  / - letras CH, X

Quadro 3.2 - Representação do fonema /k / e // nos corpora

Harpas de Ouro Documentos da Guerra Jornais

Eucharistia marche Christã

Chita achavão Catechismo

Paixão, rouxinoes caxias, lanxão Luxo

choro Obs: Não foi encontrada

nenhuma palavra com a letra X com o som de /K/

Complexo

As vogais do português são representadas por Câmara Jr (1980, p. 41) por um triângulo, em que de um lado há uma série de vogais anteriores com um avanço

da parte anterior da língua gradualmente elevada e de outro uma série de vogais posteriores com um recuo da parte superior da língua gradualmente elevada. Ao produzir-se há um arredondamento gradual dos lábios.

Cagliari (2007b) distingue a relação entre sons e letras, mostrando que essa relação leva a um objetivo que é a decifração e a leitura e acrescenta ainda que a “passagem das letras para os sons necessita de apenas algumas regras”. Do ponto de vista da leitura é importante saber decodificar a palavra para que o leitor ao ler, utilizando sua variação dialetal, compreenda a mensagem. Do ponto de vista da escrita, o usuário deve conhecer a grafia das palavras que escreve, diferenciando um segmento consonantal de um vocálico, sabendo a ordem que elas aparecem para que haja sentido. O autor distingue, ainda, os segmentos vocálicos dos consonantais a partir de seus aspectos acústicos e diz:

As vogais se distinguem das consoantes pelo fato de terem uma qualidade acústica específica, pelo modo como são articuladas e pela maneira como participam na formação das sílabas. Numa sílaba, por exemplo, podemos ter uma vogal precedida e seguida de consoantes, mas não podemos ter uma sílaba com uma consoante precedida e seguida de uma vogal. (CAGLIARI, 2007b, p. 51).

Segundo Câmara Jr. (2008), os sons vocais elementares são classificados em vogais ou consoantes. Para ele, a divisão resulta de processo da parte de quem fala e de quem ouve. Segundo a tradição da corrente estruturalista, o referido autor apresenta dois critérios para estabelecer a diferença entre vogal e consoante. No primeiro critério, o autor considera a vogal como sendo um som produzido pela ressonância bucal em que a corrente de ar passa sem impedimento algum. No segundo critério, na passagem da corrente de ar, ocorre uma oclusão ou fechamento, uma contrição ou um aperto, uma oclusão parcial ou uma tremulação da língua imprimindo uma vibração à corrente de ar, produzindo uma consoante.

As relações que se estabelecem entre o sistema de sons da língua e o sistema ortográfico foram mostrados por Lemle (1982), no qual analisa o sistema de consoantes descrevendo dois tipos de relações que se estabelecem entre fonemas e grafemas: as biunívocas e as múltiplas. A relação biunívoca ocorre quando um fonema tem apenas uma representação gráfica e esta corresponde a apenas um fonema. A seguir podem-se observar os casos em que tal relação se verifica:

Quadro 3.3 - Relações biunívocas

FONEMA GRAFEMA EXEMPLOS

/p/ ‘p’ Prometheus,pae

/b/ ‘b’ bello, lábio, isabell,

/t/ ‘t’ Tectos,

/d/ ‘d’ Della, ideaes

/ f / ‘f’ Fôra, Cofre

/v/ ‘v’ Verdosas, desvelos

As relações múltiplas definem-se pelo fato de haver um grafema representando vários fonemas ou um fonema para vários grafemas. Exemplos desse tipo de relação estão apresentados a seguir, nos quadros abaixo.

Quadro 3.4 - Relações múltiplas: um grafema representando vários fonemas, de acordo com a posição

GRAFEMA FONEMA EXEMPLOS

‘r’ /x/ / / rubor, refractaio Choro, oiro ‘c’ /k/ /s/ Corôas, volcão Ceos, ausência ‘s’ /s/ /z/ Serpentes , hóstia, pés Malicioso, rosal ‘g’ /g/ //

Sangue, algas, governo Imagem, gentil

Quadro 3.5 - Relações múltiplas: um fonema representado por vários grafemas

FONEMA GRAFEMA EXEMPLOS

/s/ ‘ss’ ‘sc’ ‘sç’ ‘xc’ ‘ s’

‘c’ ‘ç’ ‘x’

Assi,

scismo adolesça, Sorriu, infanticídio, berço,

/x/ ‘r ’ ‘rr’ Rir, torre

// ‘ j’ ‘g’ ja Lactejante, relógios

Nos quadros 3.4 e 3.5, apresentam-se exemplos de relações múltiplas sem que se fizesse menção ao contexto em que tais relações se estabelecem. Não se pode deixar de referir que o reconhecimento do contexto leva a uma redução do número de alternativas para grafia de certos fonemas. Observe o caso do fonema /s/, por exemplo. Como pode-se ver no quadro 3.5, são oito os grafemas disponíveis no sistema para representá-lo, porém, existem limitações para o uso de alguns deles. O ‘ss’ assim como os demais dígrafos, ‘sc’/‘sç’ e ‘xc’, por exemplo, só podem ser utilizados entre vogais, o que reduz as opções de grafias disponíveis.

É, pois, nesse contexto histórico de difusão de palavras escrita e falada com segmentos vocálicos e consonantais que se pesquisa sobre o uso da grafia no português do Brasil, mas antes discute-se o sistema vocálico e consonantal do português.