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A dimensão moral da educação nas prisões no discurso acadêmico nacional

RACIONALIDADE PUNITIVA E DIMENSÃO MORAL DA EDUCAÇÃO NAS PRISÕES BRASILEIRAS

2. DOS QUE ARRENEGAM OU BLASFEMAM DE DEUS OU DOS SANTOS Qualquer que arrenegar, descrer ou pesar de Deus, ou de sua

3.5 A dimensão moral da educação nas prisões no discurso acadêmico nacional

Segundo Vernor Muñoz, que atuou como relator especial da ONU sobre educação entre 2004 e 2010, a educação ofertada nas prisões dos países da América Latina segue basicamente três modelos: o primeiro é o modelo médico, segundo o qual a educação faz parte do programa terapêutico para a cura dos encarcerados; o segundo é o modelo da deficiência cognitiva, no qual a educação visa corrigir pessoas internamente imorais; e o terceiro é o modelo oportunista, que limita o alcance da educação nas prisões à preparação para atendimento das necessidades do mercado de trabalho87.

Como se percebe, o elemento comum entre os três modelos defendidos por

87 Idéia originalmente apresentada em palestra realizada no ano de 2009, para a Comissão de

Educação da Câmara dos Deputados, e posteriormente reproduzido em The right to education for people deprived of liberty, em 2012.

Vernor Muñoz é a idéia de que o prisioneiro é o único responsável pelo seu encarceramento, da mesma forma que o será para a sua transformação e retorno ao convívio social. Trata-se, portanto, de três modelos que têm o paradigma da defesa social enquanto fundamento. No Brasil, o discurso acadêmico, tal como já apresentado em relação ao discurso jurídico e à política pública, tem adotado o mesmo fundamento.

Nos estudos realizados em busca do chamado “estado da arte” da pesquisa em educação nas prisões no Brasil, por ocasião de seu doutoramento, a professora Mariângela Graciano (2010, p.15) conclui que o foco das “investigações acerca da educação em prisões tem centrado no seu potencial de ressocialização, reeducação ou reinserção social, argumentos oficialmente utilizados para justificar a própria existência das prisões, e enunciado na Lei de Execução Penal”. Com efeito, é esta perspectiva, a que chamo dimensão moral da educação na prisão, que proponho identificar e confirmar na análise do discurso acadêmico nacional.

Porém, ao contrário da professora, cujas investigações iniciais foram centradas na produção dos Programas de Pós-graduação stricto sensu em Educação existentes no país, o que chamo discurso acadêmico nacional não se reduz às pesquisas oriundas dos Programas de Pós-Graduação, nem tampouco à área de concentração em Educação. Trata-se, na realidade, de uma pequeníssima amostra dos escritos de professores e pesquisadores que se fizeram presentes em algum momento ao longo do processo de construção da política nacional de educação em prisões no país, desde o lançamento do Programa Educando para a Liberdade, em 2005.

Da mesma forma que Fernando Salla (2006, p.107) nos seus estudos sobre a temática prisão na literatura e nas academias do Brasil, o que pretendo aqui “não se trata de um levantamento exaustivo da literatura já elaborada, mas apenas uma reflexão sobre o perfil dessa produção”, que procura identificar em alguns textos sobre educação na prisão um elemento de coesão, qual seja, o alinhamento com o paradigma de defesa social, e consequentemente, a idéia de uma educação na prisão como instrumento para a transformação (ressocialização ou similares termos) do prisioneiro.

Voltando à pesquisa da professora Mariângela Graciano (2010, p.14), verifica- se que os trabalhos acadêmicos só muito recentemente, a partir dos anos 2000, vêm se ocupando da temática da educação de jovens e adultos privados de liberdade.

Segundo a professora, de 1975 até 2000, não houve registro de nenhuma dissertação de mestrado ou tese de doutorado que abordasse o tema das práticas educativas desenvolvidas nas prisões, junto aos programas de pós graduação em educação no Brasil. Pesquisando no Banco de Teses e Dissertações da CAPES, Mariângela Graciano registra no período de 2000 a 2008, um total de 23 trabalhos, entre teses e dissertações, acerca do tema “Educação nas Prisões”.

Relata a professora que o elemento comum a cada um destes trabalhos é que “as expectativas da educação na prisão recaem sobre o futuro a ser construído com a conquista da liberdade”, a partir das intervenções que se fazem no presente, reforçando assim a tese aqui apresentada.

Em pesquisa realizada junto ao mesmo Banco da Capes, em outubro de 2015, a partir da expressão “Educação na Prisão”, encontrei referencia a 25 trabalhos, produzidos entre 2011 e 2012, contudo, é preciso registrar que, devido a um trabalho de atualização que vem sendo realizado no Banco para que se garanta a consistência das informações, trabalhos anteriores a 2011 não estavam disponíveis. Em cada um destes trabalhos identificados, era igualmente presente o fundamento da educação como meio correcional.

Tanto os levantamentos realizados por mim, quanto pela professora Mariângela Graciano, são confirmados por Fernando Salla (2006, p.108) em A

pesquisa sobre as prisões: um balanço preliminar. Segundo o autor, no Brasil, desde

o século XIX, as temáticas referentes à prisão só têm despertado interesse em estudiosos do direito e da medicina vinculada à criminologia, e mesmo assim de maneira muito modesta, daí que, somente a partir de 1970 começam a surgir os primeiros estudiosos específicos da área, sendo que, somente com a chegada do ano 2000 “há um verdadeiro boom de dissertações e teses sobre temas relacionados à prisão”. Explica o professor que o Banco de Teses e Dissertações da Capes revela que, nas áreas da Ciência Política, Sociologia, Antropologia Social, Psicologia e Serviço Social, a partir dos termos “penitenciária”, “prisão” e “sistema penitenciário”, a produção dos trabalhos entre 1987 e 2000 era numericamente baixa, vindo a receber incremento com a chegada do novo século.

Sobre a temática da educação nas prisões, ponderou Fernando Salla (2006, p.113-118) que trabalhos nessa área começaram a surgir também no final da década de 90 e a partir dos anos 2000, como os trabalhos de José Ribeiro Leite (1997), de Manoel Rodrigues Português (2001), José Antônio Gonçalves Leme (2002), R. da

Silva (2001), S. Santos (2002), e outros. Porém, como afirma o citado professor, embora o número de pesquisas com a temática prisional venha aumentando significativamente desde esse período, tal produção tem tido “pouca criatividade”, pois “reproduzem as orientações teóricas clássicas”, e no que diz respeito à educação, se limitam a discutir o papel desta “na ressocialização dos presos”.

Informações retiradas da Plataforma Lattes do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ), em outubro de 2015, dão conta de que haviam registrados naquele banco de dados 1.161 pesquisadores com estudos que se relacionavam de alguma forma a temática da educação em prisões, dos quais 603 doutores.88 Obviamente, como já fora dito anteriormente, não se trata

aqui da realização de um estudo pormenorizado de cada uma das teses, ou dissertações, ou artigos e similares, mas tão somente da identificação de uma tendência ou perfil. O critério estabelecido para tal foi o da participação na construção da política pública, assim, os textos apresentados a seguir foram produzidos por dois dos professores ou pesquisadores com participação fundamental nos relatórios, seminários, publicações, organizações não governamentais ou instituições públicas envolvidas com a educação em prisões desde o Educando para a Liberdade de 2005.

Dentre tantos que se dedicam ao estudo da temática, se pode citar os professores Timothy Denis Ireland, Elenice Maria Cammarosano Onofre, Mariângela Graciano, Elionaldo Julião, Arlindo da Silva Lourenço, Aline Yamamoto, Denise Carreira, Manoel Rodrigues Portugûes, Sérgio Haddad, Helen Halinne Rodrigues de Lucena, José Antonio Gonçalves Leme, Alexandre Aguiar, Eliane Leal Vasquez, e outros. Reforço que o objetivo aqui não é acompanhar o caminho teórico de cada um dos pesquisadores, senão apenas a identificação de uma tendência, a partir da análise de textos de alguns deles. Destes, foram escolhidos dois, o professor Elionaldo Fernandes Julião e a professora Elenice Maria Cammarosano Onofre.

Convém discorrer também que, conforme afirma IRELAND (2012, p.35), se por um lado “a literatura sobre educação em prisões versa, em geral, acerca da importância do atendimento ao preso, dando menos atenção para as famílias, para os profissionais que trabalham no entorno prisional e para a sociedade”, por outro lado, observa-se a partir de 2010, ainda lentamente e de maneira não radical, a

88 Pesquisa a partir da expressão “Educação em Prisões”, identificada no título dos trabalhos ou

ampliação dos debates para além da perspectiva da “transformação do prisioneiro”, influenciados pela produção internacional89, aproximando assim os estudos daquilo

que chamei dimensão cultural da educação em prisões.

Daí ser possível identificar ao menos duas fases ou períodos do discurso acadêmico produzido no Brasil sobre educação em prisões. O primeiro, que compreende o intervalo temporal da década de 90 até o ano de 2010, onde a dimensão moral é expressada de maneira mais clara; e a segunda, que começa a incorporar elementos da sociologia crítica do crime, e influenciada pelos pesquisadores internacionais, se distancia aos poucos do discurso correcional. Porém, é preciso dizer que essa “nova perspectiva” de estudo da educação inserida no contexto de privação de liberdade, ainda não operou uma mudança abrupta nas percepções de crime, criminoso e educação, nem foi percebida pela legislação, tampouco se tornou fundamento da embrionária política pública, pois que estas, legislação e política, continuam a reproduzir a primeira fase do discurso acadêmico, anterior a 2010. Eis as discussões.

Na tese de doutoramento intitulada "Ressocialização através da educação e do trabalho no Sistema Penitenciário Brasileiro", defendida no ano de 2009 junto ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, o professor Elionaldo Fernandes Julião propôs como objetivo de sua pesquisa “perceber se realmente os programas de ressocialização de cunho educacional e laborativo interferem diretamente na reinserção social do apenado” (2009, p.6). Após investigar um conjunto de programas educacionais e de trabalho desenvolvidos nas prisões do Brasil, e em especial no Estado do Rio de Janeiro, conclui o referido professor que os conceitos de ressocialização e reinserção social estão ultrapassados, propondo sua substituição pelo termo “socialização”, no qual “reconhece-se que o papel do sistema de privação de liberdade, em suma, é de sócio-educar: do compromisso com a segurança da sociedade, e de promover a educação do delinqüente para o convívio social” (2009, p.411). E complementa o professor (2009, p.420) que conforme os resultados da pesquisa, é “positivo o papel da educação e do trabalho na política de reinserção social”, pois “é importante que compreendamos que são fundamentais a educação e o trabalho para o

89 Cite-se as influências de autores como Marc de Maeyer, Vernor Muñoz, Francisco Scarfó e Hugo

Rangel Trujillo, que já apontavam desde início dos anos 2000 o reducionismo individualista e subjetivista nos estudos acerca da educação em prisões na América Latina e Europa.

desenvolvimento humano, inclusive para sua socialização”.

Como se percebe, embora o texto apresente a necessidade de ressignificação dos termos ressocialização e reinserção social, a sugestão apresentada (socialização) em nada distancia da concepção utilitarista e subjetivista da reforma individual do prisioneiro, tanto, que apesar da crítica, ao longo de todo o trabalho a utilização dos termos se confunde, atrelando-se sempre as atividades educativas na prisão à idéia de um tratamento penitenciário.

É preciso registrar que o professor Elionaldo Julião esteve presente na construção da política pública de educação em prisões no Brasil desde sua gênese, uma vez que fora um dos fundadores da Rede Latinoamericana de Educação em Prisões, e consultor da UNESCO no Programa Educando para a Liberdade. Dentre as várias participações do professor no processo de construção da política nacional de educação em prisões, pode-se citar, por exemplo, a elaboração do texto referência para o III Seminário Nacional de Educação em Prisões no ano de 2012, no qual também defende as ações educativas como parte de um programa de reinserção social.

Esta mesma concepção da educação em prisões é apresentada por Elionaldo Julião em outros textos, a exemplo de As políticas de educação para o Sistema

Penitenciário (2007), Educação e Trabalho como programas de Reinserção Social (2011), A ressocialização por meio do estudo e do trabalho no Sistema Penitenciário Brasileiro (2012), e A educação em espaços de restrição e privação de liberdade no Brasil: perspectivas e concepções (2014).

Outra pesquisadora com participação ativa nos debates em torno da construção de uma política pública de educação em prisões no Brasil é a professora Elenice Maria Cammarosano Onofre, da Universidade Federal de São Carlos. Seja na qualidade de palestrante, articulista ou consultora, é a professora uma das pioneiras no estudo da educação em prisões no país, tanto, que trabalho de sua autoria fora incluído pelo professor Timothy Ireland (2012, p.15) como uma das 20 “ricas referências bibliográficas” sobre o tema.

Na sua tese de doutoramento, intitulada Educação Escolar na Prisão. Para

além das grades: a essência da escola e a possibilidade de resgate da identidade do homem aprisionado, defendida no ano de 2002 junto ao Programa de Pós