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Intervenção moral das penas nos antecedentes históricos do discurso punitivo brasileiro

RACIONALIDADE PUNITIVA E DIMENSÃO MORAL DA EDUCAÇÃO NAS PRISÕES BRASILEIRAS

3.1 Intervenção moral das penas nos antecedentes históricos do discurso punitivo brasileiro

Todo o esforço empregado neste capítulo visa demonstrar que os fundamentos da educação praticada nas prisões brasileiras estão atrelados a idéia de transformação individual do prisioneiro através da educação, e que tais fundamentos podem ser comprovados mediante análise da história da racionalidade punitiva do Brasil, da legislação penal pátria, da política nacional de educação em prisões, e da produção acadêmica nacional acerca do tema.

Para que se compreenda de maneira satisfatória o sentido com o qual a expressão “discurso punitivo brasileiro” é empregada neste tópico, se faz necessário de início, estabelecer as diferenças entre o conjunto de conhecimentos produzidos pelas instâncias oficiais de controle penal, e o conjunto de conhecimentos produzidos a partir dos estudos sociológicos do desvio, enquanto discursos antagônicos.

Em trabalho intitulado Os discursos sobre crime e criminalidade, o professor Juarez Cirino dos Santos (2012, p.1) apresenta de maneira didática que todas as tentativas de explicação sobre a forma como as sociedades imputam crimes e

entendem o fenômeno da criminalidade podem ser resumidas em dois conjuntos discursivos: o primeiro, chamado de discurso da teoria jurídica do crime, e o segundo, chamado de teoria criminológica da criminalidade, esta última, cujos conceitos serão tratados em capítulo específico deste trabalho.

Tal como explica o referido criminólogo, o discurso jurídico do crime pode ser entendido como aquele que provém do conjunto normativo penal de cada Estado, sendo construído a partir da interpretação e aplicação da lei penal aos casos concretos, materializado e justificado num rol de princípios estruturantes, tais como os da tipicidade, legalidade, culpabilidade, proporcionalidade e outros, e que tem como função precípua imputar punições a sujeitos considerados como autores de fatos definidos na legislação como crimes. Trata-se, pois, de um discurso fechado, na medida em que seu conteúdo se limita à chamada dogmática penal, possuindo institutos e verdades pré-definidas, que levam em conta tão somente os conceitos de crime e pena como enunciados descritivos, somados às técnicas de hermenêutica da lei penal. O discurso jurídico do crime seria formado, portanto, pelas teorias do crime e da pena.

Segundo SANTOS (2012, p.2), a chamada teoria do crime possui como fundamento o conceito de fato punível, que se traduz em duas categorias elementares, o tipo de injusto e a culpabilidade, que estabelecem respectivamente o

que e por que se imputa ao indivíduo.

De um lado, a categoria tipo de injusto é a que estabelece o que se imputa ao autor, ou seja, é ela que define o objeto de imputação a partir do qual será desenvolvido todo o discurso jurídico penal. Para a definição do objeto da imputação, é levada em conta a ação típica e antijurídica concreta praticada pelo sujeito, que por sua fez é composta por uma dimensão objetiva (relação de causalidade entre a conduta descrita na lei como injusta e o resultado danoso alcançado), e por uma dimensão subjetiva de seu comportamento (o grau de vontade com o qual o agente atua, podendo ser uma vontade deliberada ou imprudência).

Por outro lado, a categoria chamada culpabilidade estabelece os fundamentos da punição, sendo formada por três outras categorias dogmáticas: a imputabilidade, entendida como a capacidade genérica do sujeito saber e controlar o que faz ou deixa de fazer; a consciência do injusto, que significa a real possibilidade do sujeito saber o que realmente faz ou deixa de fazer do momento em que praticava a

conduta típica; e finalmente, a inexigibilidade de comportamento diverso, entendido como o poder que o indivíduo possui de não fazer o que ele fez, ou seja, não praticar a conduta típica.

Como se percebe, o fundamento sine qua non ou pressuposto elementar de validade da teoria do crime enquanto integrante do discurso jurídico do crime pode ser identificado a partir do entrelaçamento das noções de sujeito, consciência e vontade. Vejamos então, o segundo pilar estruturante do discurso jurídico do crime, qual seja, a teoria da pena.

Conforme já apresentado em tópicos anteriores deste texto, a teoria da pena condensa o conjunto de justificações a partir das quais se concebe e se busca legitimar que determinado grupo de pessoas monopolize o poder de castigar a outros, a partir de critérios definidos por elas próprias, e revestidos de racionalidade ou lógica no instante em que são institucionalizados. Trata-se, portanto, de justificar a punição a partir de sua funcionalidade, de maneira que são identificadas pelo menos duas funções oficiais para as penas, retribuição e prevenção.

Explica Juarez Cirino dos Santos (2012, p.3) que a função retributiva da pena é aquela que parte da suposição de que “o mal justo da pena permite expiar ou compensar o mal injusto do crime”, entendendo expiação como a idéia de cunho religioso que atribuiria à pena a capacidade de expurgar os pecados coletivos, e por outro lado, identificando a compensação como o conteúdo de natureza metafísica capaz de estabelecer alguma relação de equivalência ou proporcionalidade entre a culpabilidade do agente infrator e a reação punitiva.

Para o citado professor, quatro seriam os argumentos existentes para a explicação do porquê da persistência da função de retribuição na história, quais sejam: primeiro, a idéia de retaliação em face de uma agressão injusta se constituiria como um dado natural, biológico, de maneira que a psicologia dos povos seria regida pela lógica de Talião, expressa na regra do olho por olho, dentre por dente; segundo, a retribuição penal nada mais seria do que um reflexo da “imagem retributiva da justiça divina” advinda das religiões, que exerceria uma forte pressão cultural sobre a psicologia popular; terceiro, “os grandes sistemas filosóficos do pensamento ocidental são retributivos” (SANTOS, p.4), a exemplo das formulações de Kant e Hegel; e finalmente, a retribuição penal permanece consagrada na legislação, a exemplo do que dispõe o artigo 59 do Código Penal Brasileiro, ao fixar que o magistrado, no momento de aplicação da pena, estabeleça o quantum

necessário para a reprovação do crime.

Assim como ocorre em relação aos fundamentos da teoria do crime, é possível perceber também que a idéia de retribuição penal permanece ancorada na idéia de liberdade de vontade do sujeito. Com efeito, é impossível estabelecer uma relação de equivalência, compensação ou proporcionalidade entre a pena e a culpa, sem a individualização desta última, o que pressupõe de maneira óbvia, a capacidade do indivíduo de agir exclusivamente conforme sua consciência, bem como o crime como resultado exclusivo dessa condição.

Na mesma direção, expiar as culpas coletivas através da punição também, somente é compreensível, diante da afirmação da culpa e da vontade individual, pois, existindo apenas a responsabilização coletiva pelo crime, a idéia de expiação estaria então prejudicada, substituída, pois, por uma retribuição de natureza geral. Ora, quando da individualização da culpa e da punição, cria-se uma ilusão coletiva de que o mal se restringe àquele indivíduo, de maneira que, eliminando o indivíduo, todos estariam a salvo; por outro lado, admitindo-se a culpa de todo o grupo social, forçoso seria reconhecer a disseminação do mal, de maneira que punir perderia então a capacidade de salvar a todos, prevalecendo aí, somente, a tentativa de vingar-se de todos.

Ao lado da função retributiva, a pena possuiria também, no contexto do discurso da teoria jurídica do crime, as funções preventivas, especial e geral.

O cerne da função preventiva especial da pena é um “projeto de correção do condenado” (SANTOS, 2012, p.5), o que somente seria possível a partir de duas dimensões, primeiro, a chamada dimensão negativa, consistente na neutralização ou incapacitação do condenado para o cometimento de novos crimes e alcançada via enclausuramento penitenciário; segundo, a chamada dimensão positiva, que consistiria no conjunto de técnicas corretivas aplicadas no condenado para que se alcançasse a sua “ortopedia moral”. Já neste ponto, imperioso reconhecer que a idéia de prevenção especial notadamente só guardaria sentido admitindo-se a consciência do indivíduo acerca de sua condição de criminoso, tal como sua liberdade de vontade e escolha para abster-se do chamado mundo do crime.

Por sua vez, a partir da função de prevenção geral, à pena é atribuída uma dupla capacidade, primeiro, a de intimidar o grupo social desestimulando a prática de crimes (dimensão negativa); segundo, a de reforçar a fidelidade às leis e às instituições. Do mesmo modo que ocorre no que concerne à prevenção especial,

indemonstrável seria a justificação da prevenção geral sem admitir a consciência e vontade dos indivíduos para o não cometimento de crimes e para o respeito às leis e instituições.

Conforme exposto nas linhas anteriores, infere-se que o discurso da teoria jurídica do crime, de fato, tenta sustentar o conjunto de seus argumentos na concepção de crime como produto exclusivo da vontade humana, da individualização da culpa, e da utilidade social da pena. Isto ocorre, pois, na realidade, o discurso da teoria jurídica do crime funciona como uma tentativa de racionalização do sistema penal característico do moderno paradigma da defesa social, já devidamente explicado no capítulo anterior, e segundo o qual o objetivo das punições é a salvaguarda do Estado enquanto expressão máxima das vontades individuais.

Porém, essa tentativa de racionalização carece de legitimidade. Explica Danilo Zolo (2002, p.35) que, embora os processos históricos de secularização tenham produzido uma distinção nítida entre os campos do direito, da religião e da moral, a pretensa racionalidade das penas presente no discurso moderno da defesa social (e da teoria jurídica do crime), ainda guarda consigo uma tradição milenar que concebe a justiça punitiva a partir da vingança, do suplício, do sacrifício, da correção moral e espiritual, mantendo assim, impulsos coletivos verdadeiramente irracionais. Nas palavras do filósofo:

(...) sobrevivem mecanismos psicológicos elementares que atribuem à sanção penal uma função vingativa e retributiva que nada tem em comum com as finalidades da defesa social. (...) Por outro lado, os mecanismos penais são imbuídos de emoções coletivas ligadas essencialmente à insegurança e ao medo. A sua função latente é a de produzirem estabilidade e de estreitarem a coesão do grupo através do tratamento hostil ou o sacrifício de alguns membros do próprio grupo, sobre os quais concentram- se os sentimentos de culpa e as frustrações coletivas. (ZOLO, 2002, p.36)

E complementa, defendendo que essa mesma lógica punitiva de justiça pela justiça, que ao mesmo tempo em que se torna responsável por exaltar as virtudes terapêuticas do cárcere, noutros momentos justifica práticas punitivas desumanas “não corresponde de maneira alguma a uma exigência de racionalização e modernização do controle social e de tratamento dos comportamentos desviantes”

(ZOLO, 2002, p.37).

Apresentada a noção de discurso punitivo que será utilizada neste tópico, compreendida como o discurso da teoria jurídica do crime fundamentado nas noções de autonomia da vontade, culpa e responsabilização penal individual, que serve como tentativa de racionalização penal no contexto do paradigma moderno da defesa social, e que ainda guarda consigo traços característicos do paradigma antigo da ordem cósmica, consubstanciados nas idéias de vingança e expiação de cunho moral e religioso, impende a partir daqui, proceder a um resgate historiográfico acerca da formação do discurso punitivo no Brasil, identificando as raízes da lógica de transformação moral do prisioneiro, que viria a influenciar a dimensão moral a partir da qual a educação é pensada no contexto prisional nacional.

Para tanto, é de real utilidade o clássico da criminologia brasileira Matrizes

Ibéricas do Sistema Penal Brasileiro, do professor Nilo Batista, referência estrutural

das linhas seguintes. No prólogo da citada obra, Eugenio Raul Zaffaroni (2002, p.11), explica que toda ciência ou saber é produto da história e das experiências vividas, porém, acrescentando os ensinamentos de ANITUA (2008, p.11-15) ao diálogo com Zaffaroni, tem-se que as ideologias, as teorias e finalmente, os discursos, são igualmente produtos da história.

Dito isto, é imperioso lembrar que o discurso jurídico do crime se desenvolveu a partir das formas de exercício do poder de punir da cultura européia ocidental, e a partir daí, alcançou o além-mar com os processos de colonialismo, neocolonialismo e globalização. Nas exatas palavras de Nilo Batista (2002, p.12), “o poder punitivo constituiu o eixo sobre o qual se hierarquizaram as sociedades européias, e essa corporativização verticalizante foi condição indispensável para a planetarização posterior de seu poder”. É assim que a história da Europa se faz relevante para compreender a formação do discurso jurídico punitivo brasileiro.

Na tentativa de reconstrução das origens ibéricas do direito penal brasileiro, Nilo Batista estabelece como marco inicial o estudo das questões penais no direito germânico antigo, pois fora um reino germânico, o dos Visigodos, que mais tarde, se encarregaria de levar à península ibérica as pedras fundamentais de seu direito penal. Contudo, a despeito do rigor historiográfico com o qual o criminólogo brasileiro conduz sua investigação e apresenta em detalhes seu objeto, aqui interessa uma característica especial presente naquela cultura, qual seja, a

objetividade ou objetivismo na concepção da responsabilidade penal.

Explica BATISTA (2002, p.31) que os povos germânicos antigos se organizavam em clãs e tribos que determinavam sua existência a partir dos ciclos naturais e das divindades, de maneira que o aspecto natural-mitológico permeava e orientava todas as ações e compreensões humanas. Não havia ainda a noção de autonomia no agir humano, mas sim uma pré-determinação natural ou divina. Desconheciam a propriedade privada da terra e os constantes conflitos com outras tribos, bem como o exaurimento da terra, foram responsáveis por promover dentre tais povos uma organização social fundada numa “coesão grupal-familiar especialmente intensa”. Assim, o indivíduo germânico só era compreendido numa relação de solidariedade e dependência para com o clã (Sippe) ao qual estava filiado, sendo esta filiação condição indispensável para o reconhecimento e pertencimento social.

Esta forma peculiar de organização social apresentava reflexos nas idéias de ordem social e responsabilidade penal que são relevantes para o objetivo do presente trabalho. Ocorre que, diante de qualquer acontecimento que agredisse a paz:

(...) a ruptura da paz conduzia a um estado de inimizade (fehde ou faida), que perduraria até a compensação, real ou simbólica, do grupo ofendido. E se a ofensa houvesse consistido na morte violenta de alguém, a solidariedade grupal e a devoção ao morto – enquanto elemento indissociável da Sippe, organicamente representativo dela – impunha a vingança de sangue (Blutrache). A identificação entre os membros da Sippe, atrelados igualmente a um destino igual, fazia com que a vingança pudesse recair em qualquer parente próximo do ofensor (BATISTA, 2002, p.34).

Como se percebe, no contexto cultural germânico antigo, a atenção penal atribuía pouca ou quase nenhuma importância às condições pessoais do autor do fato violento, de maneira que as noções de imputabilidade, consciência de vontade na consecução do fato, motivos, não possuíam significado relevante. Tratava-se, pois, de uma concepção penal orientada em função do fato e de seu resultado – ou seja, as conseqüências do fato violento em relação à tranqüilidade social esperada pelo grupo –, daí o chamado objetivismo ou responsabilidade penal objetiva, das práticas penais dos germanos antigos (BATISTA, 2002, p.40).

Decorre desta característica outra informação relevante para o presente estudo. Da mesma maneira que não era subjetiva, pois dispensava pouca ou nenhuma atenção à vontade do autor, a responsabilidade penal no direito germânico antigo não era pessoal, mas sim grupal, pois o fato danoso não era imputado exclusivamente à pessoa do autor, mas a todo o grupo social ao qual o autor pertencia. E complementa Nilo Batista (2002, p.41):

A faida é uma situação de inimizade, e logo beligerância, entre estirpes, não entre indivíduos; a conduta desviante macula a totalidade indissolúvel da

Sippe, e a vingança do sangue pode exercer-se contra qualquer de seus

membros.

No que diz respeito às penas, os povos germânicos antigos desconheciam a privação de liberdade e esta, quando presente, possuía apenas a função cautelar para a garantia do juízo de execução de uma pena corporal, desprovida, portanto, de qualquer finalidade correcional. Do que fora dito até este ponto, verifica-se que as concepções de crime e pena do direito penal germânico antigo, a princípio, em nada se aproximam com as concepções presentes no discurso jurídico brasileiro atual, porém, é com o advento do reinado visigótico a partir dos séculos IV e V que algumas das tradições jurídicas germânicas são rompidas, e tem-se a gênese da

intervenção moral como objetivo das penas.

Os Godos eram um povo de origem germânica provenientes da ilha de

Gotland, atual Suécia, que migraram sucessivamente e em pequenos grupos

cruzando o mar báltico pela costa da Polônia, tendo chegado à Europa ocidental e se fixado entre os séculos II e IV na região em que hoje se encontra os territórios da Romênia, Moldávia, Ucrânia e Itália, divididos em dois grupos, os Visigodos, residentes às margens do rio Danubio, e os Ostrogodos, nas margens do rio Dniester (BATISTA, 2002, p.61 – 63).

Não interessa aqui o detalhamento histórico dos inúmeros conflitos nos quais os Visigodos figuraram no contexto do império romano, nem tampouco o conjunto de suas articulações diplomáticas enquanto foederati57, assim, tal como feito em

57 Expressão latina que designa os povos federados, que estabeleciam relações com o imperio

romano por tratados (foedus), mediante as quais o império forneceria subsídios em troca de contingentes militares para o exército. No ano de 376, fugindo dos hunos, os Visigodos solicitaram ao

relação aos povos germânicos em geral, este trabalho passa a tentar compreender os elementos fundamentais da organização social e política nos reinos visigóticos, e como tais elementos influenciaram o direito penal ibérico, e consequentemente, o direito penal brasileiro.

Explicam os professores Ernesto Fernandes e Aníbal Rêgo, no clássico

História do Direito Português, que as relações entre os visigodos e a península

ibérica podem ser divididas em duas fases: a primeira, chamada de Fase de aliança

entre os visigodos e o império romano, que vai da instalação às margens do Danúbio

até o reinado de Eurico, por volta do ano 476; a segunda, chamada Fase da

emancipação dos visigodos relativamente ao império, que vai até a desintegração do

reino visigótico e conseqüente conquista mulçumana na península, a partir de 711. Na primeira destas fases, os povos visigóticos não formaram um Estado no sentido atribuído pelos cientistas políticos, pois lhes faltava a base territorial. Formaram, na realidade, uma nação a serviço do Império Romano e resumido a uma das suas províncias segundo as leis Hospitalitas58. Embora os visigodos

possuíssem autoridades políticas, tais autoridades não exerciam nenhum poder sobre as terras provinciais. Por outro lado (FERNANDES e RÊGO, 1941, p.99), na segunda fase citada, os visigodos reivindicam a titularidade do território por eles ocupado, constituindo assim uma organização política autônoma, com governo, povo e território independentes do Império.

É certo que a concepção de Estado germânica não se confunde com a concepção de Cidade-Estado romana. Como explicam os citados professores portugueses (1941, p.100), a organização política romana teve origem na comunidade dos cidadãos, que ia sendo ampliada conforme as conquistas do império, de maneira que havia uma noção de republicanismo, na medida em que o poder pertencia, pelo menos em tese, à universalidade dos cidadãos.

Já a organização política dos visigodos obedecia a uma outra lógica.

Ora as comunidades germânicas assentavam noutra base. São grupos de homens do mesmo sangue que se formam para a aventura e para a guerra, imperador Valente autorização para se estabelecerem na costa do rio Danúbio na qualidade de federados (BATISTA, 2002, p.61).

58 Legislação romana codificada por Arcádio em 396 que obrigava os proprietários agrícolas a abrigar

sob a chefia dum principe (rex ou princeps). O que une os homens entre si não é o pertencerem a mesma cidade, é obedecerem ao mesmo chefe, a quem se devotaram com total dedicação e lealdade. As comunidades assim formadas aliam-se e não é raro se unem fundindo-se noutra mais ampla, assim como também se desagregam em novos grupos dotados dos seus chefes próprios. Cada comunidade (civitas) reúne-se em assembleia geral, por via de regra num dos quartos da lua, lua nova ou lua cheia. Só têm capacidade jurídica plena os homens livres aptos a pegar em armas, e a assembléia ou concilium civitatis acorrem os homens armados, compondo o exercito a que o chefe passa revista. É essa assembléia que decide da paz