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CAPÍTULO 4 – TRAJETÓRIAS DE TRABALHADORES EM TEMPOS DE

4.2. Narrativas de trabalhadores de baixa escolaridade

4.2.5. Direitos e benefícios

A legislação trabalhista brasileira, através da Consolidação de Leis do Trabalho (CLT ou decreto-lei de 1943) e da Constituição Federal de 1988, define as condições e limites de contratação, uso e despensa de trabalhadores submetidos ao contrato típico de trabalho por tempo indeterminado. O contrato de trabalho seria o acordo (tácito ou expresso) correspondente à relação de emprego que se estabelece entre o empregado (pessoa física que trabalha de maneira subordinada, não-eventual e recebendo salários) e o empregador (Cardoso; Lage, 2007). As normas relativas à contratação estabelecem como

direitos básicos: jornada de trabalho de 44 horas semanais, garantia de remuneração de pelo menos o salário mínimo estabelecido por lei, férias anuais de 30 dias, com adicional de um terço do salário mensal, descanso semanal remunerado, 13º salário, hora extra paga de 50% além do valor da hora normal de trabalho e Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) depositado mensalmente em nome do trabalhador, equivalente a 8% de seu salário mensal. Em relação ao rompimento do contrato de trabalho, a despedida sem justa causa obriga o empregador a dar o aviso prévio de 30 dias, pagamento de multa de 40% sobre o FGTS, férias e 13º salário proporcionais ao tempo de emprego. Além disso, o demitido tem a possibilidade de sacar o FGTS e receber o seguro-desemprego.

Segundo o Anuário Estatístico da Previdência Social de 2006, no ano anterior apenas 15,1% dos trabalhadores por conta-própria e 12,9% dos empregados sem carteira do Brasil contribuíam para instituto de previdência (Brasil, 2006). Estudo realizado no Distrito Federal com trabalhadores no comércio de rua chega a um número muito parecido de proteção social. Somente 12,7% declararam algum vínculo com sistema de previdência social (Theodoro; Nunes, 2000). Já entre os vendedores e feirantes entrevistados para a presente pesquisa, não havia nenhum contribuinte de instituto de previdência. Como conseqüência, nenhum deles está protegido em caso de acidentes, doenças e aposentadoria.

Considerando que a maior parte dos entrevistados faz parte de uma relação de trabalho de maneira subordinada, não-eventual e em troca de remuneração (seja em forma de salário, seja por comissão) estaria implícito o contrato de trabalho com as garantias inscritas na legislação. No entanto, assim como nenhum deles têm a carteira de trabalho assinada ou o vínculo com a previdência social de modo a assegurar a proteção social, pouquíssimos têm acesso a algum direito. Seis entrevistados mencionam o direito a gozar trinta dias de férias (sem o acréscimo), dos quais quatro também recebem 13º salário. O restante não tem nenhum direito, além de transporte e refeição.

É interessante notar que das pessoas que poderiam tirar férias, duas não tiram porque isto implicaria perder a comissão do mês. Uma delas recebe só um percentual por venda e a outra recebe um salário fixo, mais a comissão. Nenhuma pode prescindir deste dinheiro. A primeira, Beatriz, afirma isto abertamente: “Sempre tá devendo, como é que tira férias? Aqui ganho na comissão, né? Tenho que trabalhar”. A segunda, Elisa, explica que não tira um descanso porque “gosta de trabalhar”, embora revele o quanto fica cansada

(“algumas vezes assim eu estou... exausta... hoje mesmo foi um dia que eu pensei em nem me levantar da cama”): “na verdade eu não tirei nenhuma férias até hoje... depois de três anos que eu estou trabalhando... mas foi porque eu mesma não quis”.

Algumas pessoas revelaram que se fossem demitidas tentariam entrar em acordo com o patrão para terem direito aos benefícios na demissão. Caso não houvesse acordo, pensavam em entrar na Justiça para garantir seus direitos. Felipe discute o assunto de forma ambígua. Parece criticar os colegas que “metem o patrão na Justiça sem dó”. Diz que não faria isto com o seu chefe, mas que “se fosse um chefe assim...chato, ignorante”, ele o denunciaria por não assinar sua carteira de trabalho:

“É, a única garantia que eu tenho é os cinco por cento [comissão por

vendas]. Por que o bom senso (dele)/... quando... eu... sair de lá, (Deus

me livre), eu for demitido, ele entra num acordo comigo. Porque lá, muita gente que sai, mete... o chefe no pau, né, na Justiça. ‘Quer entrar num acordo?’ ( ) tem lá, tem... sete anos que eu estou lá. Aí, o cara fala; ‘Ah, Felipe,(não dá mais não)’ ‘Tá bom, vamos fazer um acordo então, pelos sete anos’, né? Se ele não fizer esse acordo, aí vai e mete na Justiça. Se for ... (os que fizeram isso), ganha. E o pior é que ganha. Porque tem gente que mete sem dó... não tá nem aí. Fala: ‘Ah, eu ajudei o cara, vendi, não sei o que, (enriquei ele), agora ele mete o pé na bunda, vou sair assim? (O cara) ( )/... e fui falar uma coisa com ele, ele mandou eu procurar os meus direitos, então eu vou’. Muita gente lá faz isso.” (Felipe, vendedor da Feira do Guará)

Um exemplo é Cecília, que se diz decidida a lutar por todos os direitos que lhe foram negados quando sair do trabalho. Critica as pessoas que “deixam o patrão resolver” se vai pagar os direitos ou não. A princípio, também prefere decidir a questão em um acordo, mas se não conseguir, pretende apelar para os meios jurídicos para reaver tudo que lhe devem após tanto tempo “se matando” na feira:

“Vou brigar. Porque eu tenho direito. Perante a Justiça, eu tenho direito. Porque a maioria das meninas que trabalha aqui, todo mundo que trabalha aqui tem que brigar com o patrão pra ganhar os direitos. Muitos acabam conseguindo. Outros não porque nunca faz nada, deixa o patrão resolver (...). ‘Ai, será que vai dar, será que não vai dar...’. Acho que a pessoa tem que correr atrás dos seus direitos. Lógico, né? (Eu vou atrás). Eu trabalhei, eu tenho direito, então tem que dar. Eu não quero entrar na Justiça, mas vamos ter que fazer um acordo. Se ele não quiser, o único jeito é entrar na Justiça. (Porque eu não vou deixar pra trás não). Me matando aqui...ralando aqui...” (Cecília, vendedora da Feira de Planaltina)

No entanto, nem sempre o fato de demandar os direitos na Justiça significa obter um resultado favorável ao trabalhador. Em estudo sobre as instituições de regulação do mercado de trabalho no Brasil, Cardoso e Lage (2007) concluem que há muitos problemas no sistema desde a fiscalização das irregularidades até o julgamento das demandas trabalhistas, o que resulta em eficácia duvidosa na garantia dos direitos dos trabalhadores. No que se refere ao desempenho da Justiça do Trabalho brasileira nos anos 1990, constatou-se que “70% das demandas recebidas, em média, são efetivamente submetidas aos ritos do processo judicial trabalhista, sendo 45% conciliadas e 25% julgadas” (Cardoso; Lage, 2006, p.115). Contudo, em análise mais detalhada de processos colhidos nas varas do Trabalho do Rio de Janeiro do período de 1995 a 2000, descobriram que apenas 49% dos processos foram deferidos total ou parcialmente. Além disto,

apenas 50% dos processos deferidos tiveram resultado favorável ao trabalhador, no todo ou em parte. Isso ocorre porque, ainda que um processo seja julgado procedente, no todo ou em parte, a sentença, mesmo se favorável, pode não ser cumprida: a empresa pode ter falido, pode apresentar dificuldades financeiras no momento da execução, pode ter desaparecido etc. Ademais, o trâmite processual como um todo incentiva, nas conciliações, a que os trabalhadores abram mão de direitos. Isso termina por ser um incentivo à burla por parte dos empresários, que, nas conciliações, acabam pagando menos do que se tivessem cumprido a lei durante a vigência dos contratos de trabalho (Cardoso e Lage, 2007, p.164-165).

No caso de vendedores com acesso a algum direito em sua condição de trabalhador, há uma tendência a considerar o benefício como uma dádiva do patrão e não como uma obrigação gerada por uma relação trabalhista. Talvez pelo fato de que a maioria dos seus colegas não tenha acesso a nada além do salário, os poucos que concedem algo além do básico são representados como pessoas muito boas, conscientes e compreensivas. Como diz Beatriz: “Ele fala que se algum dia eu sair, ele paga meus direitos certinho. Ele é bem compreensível...”.

É esta também a imagem que Diana concebe de seu patrão, que lhe “dá tudo”, mas não assina sua carteira, e, conseqüentemente, não paga INSS, o que lhe impede o acesso à aposentadoria e outros benefícios sociais:

“Férias, 13º, tudo. Tudo, tudo que tá na lei eu recebo. (...) Não, não tenho carteira assinada. Isso tudo é porque ele é consciente, ele sabe que... não é pelo fato de minha carteira não ser assinada que (me desfaço dos) meus direitos. Ele paga direitinho. (...) Mas o meu patrão, graças a Deus, ele é consciente... ele paga desde que eu entrei, ele paga direitinho, ele paga minhas férias, meu 13º, tudo direitinho. E quando, assim, às vezes ele precisa, assim... viajar e não deu pra tirar férias... igual esse ano mesmo não deu pra tirar um mês completo... ele foi, tirei só 15 dias e ele pagou o resto.” (Diana, vendedora da Feia de Planaltina)

Mais uma vez, é Cecília uma das vozes mais contundentes que se levantam contra as precárias relações de trabalho. Com experiência de sete anos de trabalho informal na feira e mais um tanto em “casas de família” (onde começou a trabalhar ainda criança), ela cansou de ficar calada. Quando indagada a respeito de seus direitos, é assim que a vendedora responde:

“Direitos, direitos nós temos, só que eles não querem pagar né? Que nem no final do ano, não quer pagar 13º, férias... O que ele dá assim é uma semana. Pra mim não é uma semana. Eles não pagam férias, pra mim não é férias desse jeito não. (...) Não. Emprego informal mesmo. Não tem nada. (...) Se a gente vai reclamar: ‘Ai, não posso. Não posso dar um mês, não sei o quê’. Não pode dar um mês. A carteira eu já questionei, já falei: ‘Ah, faz tanto tempo que eu trabalho aqui, você podia fichar minha carteira, nossa carteira.’ Não sou só eu que trabalho pra ele, tem umas meninas que trabalham pra ele. ‘Ah, eu não tenho condição de fichar sua carteira’, num sei o quê... e fica por isso mesmo. (...) Devia receber as férias que todo trabalhador tem direito perante a lei. [interrupção] Nós temos que chegar e falar, né? Mas a gente fala e não adianta nada. Da carteira eu ainda falei, né? Mas falam, ‘ah, não tem condições’. Que não tem condição? Não querem é pagar mesmo, cumprir com seus direitos, né?” (Cecília, vendedora da Feira de Planaltina)

Entre os entrevistados de baixa escolaridade, Cecília é uma das poucas que questionam a não formalização de seu contrato por parte do patrão. Enquanto outros gostariam de ter a carteira assinada, apenas ela relaciona o fato de não ter acesso aos benefícios do vínculo empregatício com a negativa do patrão em pagar e “cumprir com seus direitos”. No entanto, mesmo sem apontar o papel do dono do negócio em sua situação de vulnerabilidade, a maioria dos sujeitos de pesquisa indica que a falta de direitos atua como fator preponderante na sua insatisfação no trabalho.

A realidade atual não favorece uma modificação desta situação pela resistência dos trabalhadores ou pela atuação das instituições que regulam o mercado de trabalho.

Conforme a pesquisa de Cardoso e Lage, as chances de alguém que não formaliza as relações de trabalho ser apanhado e punido por ações de fiscalização da inspeção do trabalho do Ministério do Trabalho são muito remotas em caso de empresários sem registro, incluindo trabalhadores por conta própria ou autônomos que empregam um ou outro funcionário. Além disto, “quanto mais precário o mercado de trabalho e maior a taxa de desemprego, menores os incentivos para que os trabalhadores denunciem más condições de trabalho” (Cardoso; Lage, 2007, p.93). Como a possibilidade de fiscalização nestes casos depende exclusivamente das denúncias dos trabalhadores e as chances de que estes denunciem irregularidades são inversamente proporcionais ao medo de desemprego pelo aumento da precarização do mercado de trabalho, conclui-se pela dificuldade de mudar tais condições dentro do atual sistema de regulação do trabalho.