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CAPÍTULO 4 – TRAJETÓRIAS DE TRABALHADORES EM TEMPOS DE

4.2. Narrativas de trabalhadores de baixa escolaridade

4.2.8. Satisfação no trabalho

Além da insegurança provocada pela falta de direitos, outros aspectos devem ser considerados ao se analisar a satisfação no trabalho. Entre as variáveis próprias de quem tem um trabalho precário estão a incerteza de emprego futuro, o esforço de conseguir emprego e a proteção pelo fato de estar empregado. Já o trabalho em si pode ser avaliado pela interação entre o nível de exigência, o poder de decisão e o grau de reconhecimento dados ao trabalhador (Clarke et al., 2007).

Entre os trabalhadores de escolaridade mais baixa, as condições de trabalho são tradicionalmente mais precárias. No caso da amostra escolhida para participar da pesquisa, de modo geral estão presentes a incerteza da continuidade do trabalho, a falta de proteção, baixos rendimentos e a falta de controle sobre as condições do trabalho. Todas as dimensões que configuram o trabalho precário (Rodgers, 1989; Vosko, 2006) podem ser encontradas na maioria das falas dos entrevistados. Apenas no caso dos feirantes que são os próprios donos do negócio que esta vulnerabilidade não aparece e há um maior grau de satisfação com o trabalho.

A insegurança do trabalho é bem palpável na experiência de Ana como vendedora ambulante. A entrevistada percorre um longo caminho andando de porta em porta vendendo produtos de cama, mesa e banho por catálogo. Além da incerteza de não possuir vínculo empregatício e os direitos trabalhistas, há outras formas mais específicas de insegurança que são relatadas por ela. A primeira é a falta de segurança de trabalhar nas ruas. Caso o dinheiro recebido seja roubado, o vendedor é responsabilizado e esta quantia é descontada de seu salário:

“... é uma coisa assim, que você trabalha, mas não tem nenhuma segurança. Nenhuma segurança. Vamos dizer que nós estamos trabalhando com a demonstração na rua... ou com cobrança, que a gente faz muito isso também. Que nem/... o dono ajuda, quando é época de cobrança, dia de cobrança, ele vai com a gente, sempre vai com a gente um (homem). Mas, se um pegar, te botar uma arma na cara, leva o dinheiro dele todinho, e você não pode fazer nada. A única coisa que ele faz pela gente... é::: parcelar dívida, para você ir pagando. Mas não esquece... não tem como ser (dispensado).” (Ana, vendedora ambulante)

Outro aspecto da insegurança vem da própria natureza do trabalho. Ao vender um produto a prazo, se o cliente não pagar a mercadoria, ela não tem a quem recorrer para reaver o dinheiro. Como vendedora autônoma, tudo que ela pode fazer é retornar ao local e insistir que lhe paguem, mas não tem nenhuma forma legal de garantir que será ressarcida:

“...se a pessoa... éh:: intencionalmente não quiser pagar... lógico que você não vai falar isso, quando você vai vender... ele não paga e você não pode fazer nada. (...) É, porque, você vai no Procon... a primeira coisa que o Procon pergunta pra::... para você, ‘A senhora tem loja? Ele foi até a loja comprar?’ ‘Não, eu sou vendedor autônomo’. ‘Ah, senhora, então não recebe não... a gente não pode fazer nada’.” (Ana, vendedora ambulante)

Mas mesmo diante disso, Ana demonstra muita satisfação com o trabalho em si. Apesar da falta de direitos e de segurança para trabalhar e planejar o futuro, a entrevistada acredita que tem muitas vantagens. Entre elas, aponta o rendimento de cerca de dois salários mínimos, a possibilidade de conhecer pessoas novas e de aprender com o serviço. É importante observar, porém, que um dos aspectos positivos que menciona é desmentido em outros momentos de sua fala. A vendedora não trabalha na hora que quer, pois na verdade ela tem sim um patrão que coordena o grupo de vendedores e leva-os todos os dias aos pontos a partir dos quais vão trabalhar.

“Mas, eu acho assim, que, quando dá certo, é um dos melhor serviço que tem. (...) Não, não é nem porque não tem patrão. É por se/... quem trabalha por conta própria tem muitas vantagens. (...) Porque você vai trabalhar a hora que quer... você vai a hora que quer, chega a hora que quer... e... e dá para ganhar. Vendendo bem, você tira o quê? Você tira dois salários, dois e meio por mês... de lucro. (...) eu acho o serviço assim, divino. Engraçado, né? Tem que gostar das coisas... tem que gostar. Eu gosto, acho que/... para mim, é o serviço melhor que tem... melhor que tem. Conhece pessoas, você anda... conhece as coisas, é muito bom . E, também, as reunião, você conhece muita gente, você aprende, é um serviço que te ensina...” (Ana, vendedora ambulante)

Outros entrevistados também citam o aspecto dinâmico da ocupação, de vender, conhecer pessoas e ouvir histórias. Entre eles, Felipe é um dos que demonstram maior entusiasmo pelo ofício de vendedor. Em sua narrativa, diz que tentou outros empregos, mas que não tem para onde correr, já que o negócio está no seu sangue, pois muitos parentes são feirantes. Além disso, Felipe demonstra sentir orgulho de sua habilidade profissional (afirma que quando o cliente entra na sua banca “só não leva se não tiver dinheiro”):

“Ah... o que eu tenho pra falar da feira, que... acho que é... porque minha família quase toda mexia com isso, né? Minha mãe... desde pequena mexia com isso, ela tinha banca na feira da Ceilândia. Aí em oitenta e dois mais ou menos foi quando eu comecei (ir) pra feira da Ceilândia. Aí eu peguei gosto assim pela feira... aí, saía assim, arrumava um emprego temporário assim... mas nunca deu certo. Sempre meu negócio era feira mesmo. (...) Eu::... eu não tenho que... correr (para outro rumo)/... (com) outras coisas assim não. Porque::... (vai ver é) no sangue da família, porque tem muito parente meu que é feirante. Então... não tem que sair pra outro lado, tem que ficar é lá mesmo. (...) Porque::... não é querendo ser o bonzão não, mas eu acho que eu atendo muito bem. Aí a pessoa... parece que fica meio perturbada... aquele... pressão psicológica, que tu

bota na pessoa? A pessoa leva mesmo só pela insistência do vendedor? Eu acho que é isso.” (Felipe, vendedor da Feira do Guará)

Mas não é porque gostam do trabalho em si que todos estão satisfeitos em sua condição de trabalhadores informais. Assim como Felipe, Beatriz é exceção entre os vendedores, pois ambos têm rendimentos mais elevados. Nem por isso ela deixa de se preocupar com a instabilidade de se viver sem uma renda fixa e estável. Atualmente sua renda depende inteiramente das vendas, o que leva a conseqüências pessoais como o aumento do estresse pela dificuldade de planejar seu futuro:

“Tem que gostar, né? [risos] Eu dependo disso, tem que gostar, né? Mas não é fácil. (...)Isso aqui prende muito a gente. Isso aqui é bom pra quem é dono. Agora pra gente que é funcionária não. (...) Porque a gente só ganha se a gente vender. O que mais... o que faz ficar estressada é isso, sabia? Tensão, vender...(...) Agora se fosse um emprego fichado, né? Estava ali garantido todo mês, né? Não tinha essa preocupação. Agora não, aqui a gente tem que correr atrás pra poder vender, para garantir pra pagar as contas, senão...” (Beatriz, vendedora da Feira de Planaltina)

No balanço da satisfação do trabalho, muitos entrevistados já estão pendendo inteiramente para o “não”. É o que aponta Diana, que depois de cinco anos trabalhando como vendedora de feira, já não suporta mais a jornada cansativa e a falta de um contrato formalizado. Mesmo gostando do movimento da feira, das amizades que construiu e elogiando a “consciência” do patrão que lhe paga férias e décimo terceiro, o desgaste foi tanto que prefere nem trabalhar mais na área de vendas, mesmo que seja com carteira assinada:

“Porque aqui é muito cansativo...toma muito tempo... tem só uma folga por semana e é na segunda-feira (...) minha preocupação mesmo é em não ser fichada... e aqui é cansativo, você lida com todo tipo de gente... Cansa. Eu cansei de ser vendedora, não quero mais trabalhar com venda. (...) já cansei, já tem 5 anos, né, que eu tô aqui...” (Diana, vendedora da Feira de Planaltina)

Finalmente, no caso de Cecília a insatisfação é total. Desde o trabalho em si, com alta exigência e exíguo reconhecimento, até as condições em que é exercido, a baixa remuneração, a ausência de vínculo e de direitos. Todos estes fatores atestam o grau de

vulnerabilidade em que ela se encontra. O interessante é que o momento da entrevista, que inicialmente aceitou com certa relutância, levou Cecília a uma auto-análise provocada em que pôde construir e manifestar o ponto de vista a partir do qual ela mesma se vê e se justifica (Bourdieu, 1997). Deste modo, a ocasião serviu não apenas para se fazer ouvir, mas também para se explicar e repensar sua trajetória. Mais uma vez, a vendedora expõe seu descontentamento com o trabalho:

“Eu quero sair. Quero dar um basta, não posso mais ficar aqui não. Aqui não tem oportunidade da gente crescer. Não oferece oportunidade. Só... só para (...) mesmo, porque crescer ninguém cresce aqui dentro não. Só o dono. A gente vai se matando, matando, matando, e eles vão subindo. Não é verdade? (...) Negócio de feira eu não quero. Feira cansa demais, acaba com a pessoa. Não quero mais, nem funcionária, nem nada. Sabe o que é você enjoar de um serviço? É isso, enjoei. Enjoei daqui. Tem dia que eu acordo e penso: ‘Ah, Meu Deus do céu, tem que ir pra feira’. Ah, é ruim demais, não gosto. Seis anos. Credo. (...) Se eu ficar é até o final do ano, que eu não agüento mais não. É muito estressante, muito estressante. Eu acho trabalho demais aqui também. Feira cansa muito. A gente trabalha, se mata...” (Cecília, vendedora da Feira de Planaltina)

Além da insatisfação, as palavras da vendedora revelam que o equilíbrio instável entre cooperação e conflito foi rompido pela crescente conscientização da relação de trabalho como relação de exploração, pela extração máxima do sobretrabalho para a acumulação de capital pelo dono do negócio (Liedke, 2006). “A gente vai se matando, matando, matando, e eles vão subindo”, é assim que a contradição entre capital e trabalho é percebida por Cecília. Depois de tanto tempo trabalhando nove horas por dia, seis dias por semana, para ganhar um salário mínimo, ela não agüenta mais. Mal consegue levantar da cama para começar mais uma jornada de trabalho.

O balanço entre colaboração e conflito também de desequilibra nas relações de trabalho de outros vendedores. Muitos, porém, não relacionam a insatisfação relativa às condições de trabalho com os interesses contraditórios entre proprietário e trabalhador. Em alguns casos as exigências de trabalho são percebidas como inerentes ao fato de se trabalhar em feira60. A apreensão do real significado do trabalho é difícil (Cattani, 2006) e,

em geral, as possibilidades de resistência e confronto não se colocam nas entrevistas. De todo modo, as narrativas confirmam que as conseqüências das características deste 60 A tal ponto que uma entrevistada chega a recusar até mesmo a possibilidade de vir a trabalhar na feira como dona de banca, dizendo que aceitava tudo, menos trabalhar em feira ou como empregada doméstica.

processo de trabalho “não se esgotam no espaço de trabalho e tampouco cessam no fim da jornada, estendendo-se à totalidade da vida social” (Cattani, 2006, p. 209).