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CAPÍTULO 4 – TRAJETÓRIAS DE TRABALHADORES EM TEMPOS DE

4.2. Narrativas de trabalhadores de baixa escolaridade

4.2.4. Relações de trabalho

Em verbete relativo ao conceito, Liedke define relações de trabalho como “o conjunto de arranjos institucionais e informais que modelam e transformam as relações sociais de produção nos locais de trabalho, transcendendo por isso a situação laborativa” (Liedke, 2006, p. 242). No capitalismo, as relações de trabalho se dão de forma 58 Confirma-se, assim, a necessidade sustentada por Vosko (2006) de contabilizar o trabalho total do indivíduo (tanto o trabalho pago como o não pago) para se ter uma real dimensão do período trabalhado, evidenciando mais um indicador do vínculo entre precarização e gênero.

assimétrica, como relações de dominação e subordinação. Com o patrão de um lado e o trabalhador e de outro, tais relações envolvem interesses contraditórios, de modo que se constroem em um equilíbrio instável entre cooperação e conflito. Enquanto o primeiro procura extrair o máximo de trabalho do outro, sem elevar os seus custos, o trabalhador tenta resistir a esta intensificação, em um contexto em que não controla o próprio processo de trabalho (Edwards, 1979 apud Liedke, 2006).

Se no capitalismo as relações de trabalho configuram-se como relações de assalariamento em que o capitalista explora o trabalhador objetivando a extração do sobretrabalho e conseqüente acumulação de capital (Marx, 1988), no caso em questão as circunstâncias são mais complexas. De um lado há o dono do negócio, que procura utilizar o máximo do tempo de trabalho do vendedor investindo o mínimo que puder para atingir o maior lucro possível. Na outra ponta há o trabalhador, assalariado sem vínculo e sem direitos, que renuncia a condições melhores pelo imperativo que se coloca o trabalhar. Por certo a divisão não se coloca sempre tão clara. Há desde donos de negócio que são a um só tempo patrão e força de trabalho até os que são proprietários de diversos empreendimentos, passando pelos que têm o auxílio de trabalhadores familiares não-remunerados e um ou dois ajudantes remunerados. Entre os trabalhadores encontrou-se desde o vendedor que trabalha 60 horas por semana sem nenhuma proteção social em troca do salário mínimo até o que trabalha menos de 40 horas recebendo em média R$ 1.000 por mês. No entanto, este segundo caso não é regra. A maior parte dos vendedores entrevistados apresenta cansativas jornadas de trabalho e baixos rendimentos, além da insegurança que une a todos.

As relações que se estabelece no trabalho têm um peso importante na satisfação profissional. Como os vendedores e feirantes têm uma jornada extensa, boa parte de seus dias se passam no trabalho, o que torna este ambiente fundamental para contornar ou aprofundar os aspectos negativos da informalidade. Quando afirmam que se acomodaram na feira, três entrevistadas indicam que apesar de não estarem satisfeitas como vendedoras (principalmente pela falta de direitos), o fato de terem estabelecido laços de amizade no trabalho levou-as a permanecer na feira por mais tempo do que acreditam que deveriam. É o que revela Diana: “Você acaba acomodando por achar que faz muitas amizades aqui... é o meu caso, eu acomodei. Mas agora eu acordei e vi que aqui o que tinha que dar pra mim já deu”.

Uma das entrevistadas mais insatisfeitas com as condições de trabalho é Cecília, que tem resistido há sete anos na feira pelos vínculos criados com os colegas de trabalho que considera como uma “família”. Por estarem sempre juntos, convivendo no mesmo espaço e passando por situações semelhantes, ajudam-se mutuamente, seja olhando a banca quando o outro precisa dar uma saidinha, seja apoiando-se em momentos de dificuldade:

“Com os vizinhos eu acho que todos são legais (...) Não, aqui na feira é todo mundo... é uma família, todo dia nós estamos juntos assim, né? É uma família, no trabalho a gente brinca, conversa, assim. São amigos.” (Cecília, vendedora da Feira de Planaltina)

Mas nem todos têm a mesma opinião de Cecília. Se a maioria dos entrevistados expressou que as relações com os colegas são ótimas ou ao menos satisfatórias, alguns têm uma opinião menos positiva. Entre as questões mencionadas em referência aos colegas de trabalho, entrevistados citaram o individualismo e a falta de solidariedade (é “cada qual por si”), problemas de discussão, fofocas e inveja.

Eduardo, vendedor da Feira de Planaltina, considera bastante positivo o contato com os clientes, mas a avaliação não se repete para os feirantes com quem convive. Sua justificativa é singular: acredita que pelo fato de terem baixa escolaridade (Eduardo completou o nível médio), a maioria dos feirantes são “pessoas mais xucras” e que por isso é preciso ser cauteloso, para não causar atrito.

“Às vezes é meio restrita... dependendo da pessoa, é meio restrita, né? Devido a... o ambiente ser um... local que a maioria tem baixa escolaridade e... e... e o pessoal assim, acaba trabalhando... né? Tem... o pessoal acaba trabalhando por um preço... um salário muito baixo... então assim, fica meio restrito, tem que tomar cuidado. Então, tem que ser meio cauteloso com as amizades, com o convívio entre um e outro aqui porque... para não dar atrito, né? ( ) pessoas mais... xucras, vamos dizer assim, né? Ham::... tem que tomar cuidado.” (Eduardo, vendedor da Feira de Planaltina)

É interessante notar que o mesmo entrevistado se julga uma espécie de sócio do primo que o contratou para trabalhar como vendedor na feira, apesar de ser apenas um funcionário. O fato é que ele não se identifica com os demais colegas de trabalho, considerando-se como pertencente a uma categoria acima deles.

No entanto, a resposta mais impressionante foi a de Felipe. O vendedor, com larga experiência e muitos familiares trabalhando em feiras, revela que não confia em feirante. Apesar de manter boas relações com os colegas que trabalham na mesma banca (“Aí cada um ajuda cada um. Ninguém... se mete em venda de outro, ninguém toma venda de outro.”), a história muda quando se refere aos demais. Segundo Felipe, o ambiente é de inveja, dissimulação e competição, cada um quer derrubar o outro para crescer:

“É um::... um pessoal que você não deve confiar nunca... é o tal do feirante. Ele ri pra você aqui, na sua frente... e, por trás, pra ele você não presta... entendeu? Eu/... tem o quê? Eu tenho uns vinte anos que eu mexo com feira... e eu sei como é que é feirante. Ele derruba você pra crescer na vida... não te a/... ele... não te ajuda, ele derruba você, mas não ajuda você. Pode te ajudar aqui, mas, lá na frente, você pode ter certeza que um tombo você leva... de um jeito ou de outro. Então é isso aí. Feirante, eu não confio em nenhum. (...) porque... é igual eu te falei... eu só falo o necessário, bom dia, boa tarde e boa noite, só. (...) Eu sei que é olho grande demais. Você é cercado de inimigo ali.” (Felipe, vendedor da Feira do Guará)

Há uma distância muito grande entre a representação concebida de colegas como membros da família ou como inimigos. Além das experiências individuais dos entrevistados, há que se levar em conta que Felipe trabalha na Feira do Guará, uma das maiores e mais conhecidas feiras do Distrito Federal. A maior parte dos sujeitos de pesquisa, por outro lado, trabalha na Feira de Planaltina, bem menor e menos visitada. É provável que este seja um dos fatores que condicionem o ambiente mais competitivo de um (Guará) e o mais familiar de outro (Planaltina).

Quanto às relações com o patrão, as falas também divergem. No primeiro momento, há uma tendência a construir uma imagem de relações idealizadas, com a figura de um chefe como uma “pessoa muito boa”. Contudo, ao se recusar a formalizar o contrato dos funcionários, esta mesma pessoa é responsável pela situação precária em que muitos entrevistados se encontram. Essa contradição fica evidente no discurso de Cecília, que começa, de forma pouco convincente, com elogios, mas logo depois se corrige:

“Ah... O patrão... eu gosto... Ele é legal... É bom entre aspas, né, porque ele não cumpre os direitos dele, que é dar férias... É, assinar logo a carteira, né?” (Cecília, vendedora da Feira de Planaltina)

Logo fica claro que suas relações com o patrão não são tão boas assim. De um reticente “legal” para um efusivo “bom entre aspas” por não “cumprir os direitos” a representação do dono da banca em que Cecília trabalha passa de uma ponta a outra em poucos segundos. Nem todos fazem caminho tão rápido de desidealização. Alguns têm dificuldade de ligar a pessoa às relações de trabalho, de insegurança e alto desgaste físico e psicológico. Em um momento apontam para um ótimo ambiente de trabalho e em outro, transparece a insatisfação.

Entre os pontos positivos destacados, enumera-se: “ela é uma pessoa muito boa para mim”, “não tenho o que reclamar deles”, “ele me trata super bem”, “entendem o lado do funcionário”. Outros apontam que o patrão reclama e está sempre controlando as vendas e discute muito: “Com o patrão também aqui, acolá, tem mais é... discussão... funcionário com o patrão e... é igual mulher e marido, né?”. Porém quase nenhum dos entrevistados faz uma conexão direta entre o patrão e a falta de vínculos e alta carga de trabalho.

Embora aspectos considerados positivos da relação pessoal com o patrão por vezes sejam separados das relações de trabalho propriamente ditas, a insatisfação e o conflito reproduzem-se de forma latente no ambiente de trabalho. O caráter conflituoso das relações de trabalho não deixa de existir por não ser manifestado de forma aberta pelos trabalhadores, seja nas entrevistas, seja em atitudes de resistência. Se estas relações se constroem de forma assimétrica, entre dominação e subordinação (Liedke, 2006), o controle se dá, muitas vezes, pelo entendimento de que sem este trabalho, suas condições podem sofrer maior retrocesso.