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CAPÍTULO 4 – TRAJETÓRIAS DE TRABALHADORES EM TEMPOS DE

4.1. Dos caminhos e procedimentos da pesquisa qualitativa

Para que uma pesquisa faça sentido e adquira legitimidade, é necessário explicitar as etapas e circunstâncias em que o trabalho de campo foi efetuado. Isto é ainda mais importante no caso da pesquisa qualitativa que não corresponde aos mesmos critérios de rigor e validade dos métodos quantitativos. Uma descrição dos caminhos percorridos desde os primeiros momentos poderá facilitar a interpretação dos dados e dos procedimentos utilizados para chegar às conclusões do estudo (Becker, 1994). Assim, cumpre-se o objetivo de melhorar a compreensão dos resultados da pesquisa, além de possibilitar uma análise crítica de sua qualidade.

Em artigo que analisa a questão da avaliação da qualidade em pesquisa qualitativa, Rolfe (2006) aponta que esta não deve seguir os critérios de validade do método quantitativo, nem procurar estabelecer um conjunto de critérios específicos. Para o autor, como não há um padrão unificado do que seja pesquisa qualitativa50, também não

pode haver um conjunto pré-determinado de critérios genéricos para julgar a qualidade de tais estudos. Sustenta, assim, a necessidade de avaliar a qualidade de cada estudo individualmente. Para isto é preciso que o pesquisador deixe uma trilha que permita aos leitores remontar cada passo dado na investigação, desde as razões que sustentam decisões tomadas no campo até os reais caminhos pelos quais seguiu no processo de pesquisa. A sugestão é que todo pesquisador deixe esta trilha em suas publicações por meio de um diário de campo escrito em um exercício de reflexividade, com uma contínua auto-análise

50 “Nem a diferença entre os paradigmas qualitativo e quantitativo, nem a coerência e unidade das metodologias do paradigma qualitativo são tão claras quanto fomos levados a acreditar. Em vez de discutir qual abordagem sobre validade devemos usar nos estudos de pesquisa qualitativa, devemos, portanto, reconhecer que faz pouco sentido falar de pesquisa ‘qualitativa’ como completamente distinta e separada da pesquisa ‘quantitativa’ ou como um termo inclusivo para algo que não passa de um conjunto díspar de metodologias quase não relacionadas. Parece que a própria idéia de pesquisa qualitativa como paradigma epistemológica ou ontologicamente coerente está sob disputa.” (Rolfe, 2006, p. 308, tradução própria). E mais à frente conclui que: “O termo qualitativo deve se restringir à descrição de metodologias de coleta de dados em lugar de ser usado para se referir a uma filosofia ou paradigma de pesquisa. Não há um único paradigma que possa incluir todas as chamadas metodologias qualitativas e cada estudo deve ser justificado por seus próprios méritos”. (Rolfe, 2006, p. 309, tradução própria).

e autocrítica (Rolfe, 2006). É esta a proposta ao iniciar o presente capítulo. Explicar os caminhos escolhidos e percorridos ao longo do trabalho de campo.

A pesquisa de campo versou sobre a trajetória ocupacional de trabalhadores representativos da presente configuração do mercado de trabalho. Para tanto, julgou-se importante elaborar uma análise tanto dos clássicos trabalhadores informais – vendedores em feiras - como dos personagens que simbolizam a modernidade da sociedade do conhecimento – profissionais das áreas de comunicação e informática. Estas profissões foram escolhidas por serem consideradas representativas da fase atual do capitalismo. São profissões da área de serviços, inseridas no paradigma tecnológico-informacional, que apresentam, por outro lado, um grande número de pessoas trabalhando sem vínculos formais, com contratos flexibilizados (Krein, 2007; Salatti, 2005; Antcliff, 2005; Storey et al., 2005; Fenaj, 2004; Baumann, 2002).

Como critério geral para a escolha dos sujeitos investigados optou-se por indivíduos maiores de 21 anos, que estivessem trabalhando sem vínculo empregatício e que fossem os principais responsáveis pelo próprio sustento. Outro fator importante na definição dos entrevistados foi o de observar uma proporção semelhante entre mulheres e homens. Mais especificamente, no caso dos feirantes, que tivessem até o ensino médio completo e no caso dos profissionais de comunicação e informática, que tivessem o nível superior completo.

A pesquisa foi realizada em etapas, começando no final de 2004 e sendo concluída em 2006. A preparação do trabalho de campo ocorreu com um período de observação do trabalho de vendedores de feiras do Distrito Federal, especificamente a Feira de Planaltina e a Feira do Guará. A observação do funcionamento das feiras e da interação dos diversos indivíduos que circulam nos locais em questão foi importante como primeiro passo para penetrar em um mundo diferente, conhecer suas práticas e dinâmicas de relacionamentos.

Em seguida, iniciaram-se os contatos com os feirantes para verificar a possibilidade de colaboração com a pesquisa. Neste momento percebeu-se uma grande desconfiança e receio em falar com uma pessoa desconhecida, sobretudo a respeito de um trabalho que, em sua maioria, encontra-se em situação irregular pela legislação. Foi

necessária, portanto, a intermediação de uma pessoa conhecida para ter acesso aos entrevistados.

Pelo fato de o pesquisador ser um indivíduo exterior ao grupo estudado, muitas vezes há uma dificuldade em ser aceito ou mesmo de conseguir acessar possíveis entrevistados. Uma pessoa conhecida ou do próprio meio geralmente tem melhores condições de contribuir com informações sobre esse meio e intermediar o contato entre pesquisador e pesquisado. Assim, optou-se pela técnica de rede social na qual um informante inicial próximo ao grupo estudado indica pessoas a serem entrevistadas. Estas vão sugerindo outras pessoas, sucessivamente, numa amostragem tipo “bola de neve” (Becker, 1994).

Apesar da disponibilidade e mesmo da declarada preferência da pesquisadora por conduzir as entrevistas na casa do entrevistado ou outro ambiente mais tranqüilo, a grande maioria escolheu permanecer no local de trabalho, ou seja, a feira. Para tentar minimizar o problema de se realizar entrevistas na feira, escolheram-se dias e horários de menor movimento. Ainda assim, algumas das entrevistas foram interrompidas por clientes interessados em algum produto da banca, o que muitas vezes mostrou-se um ponto positivo para o trabalho de pesquisa, ao permitir uma observação direta do entrevistado em seu momento de trabalho. Por outro lado, em um dos casos a entrevista não pôde ser muito aprofundada, pois a dona da banca estava perto do local em que sua funcionária deveria falar sobre suas condições de trabalho. Assim, apesar da afirmação da vendedora de que sua relação com a patroa era muito boa, ficou evidente um clima de constrangimento e a pesquisadora optou por não estender as perguntas para evitar a possibilidade de prejudicar a trabalhadora. Nos outros casos, de modo geral, os donos das bancas não estavam próximos ao local da entrevista, sendo que muitas vezes eles nem permanecem na feira, indo apenas algumas vezes por semana para gerenciar as vendas.

Ao todo foram realizadas vinte entrevistas com trabalhadores sem vínculo empregatício com até o ensino médio de escolaridade. Destas, optou-se por trabalhar com as mais expressivas, que permitiam um exame mais aprofundado das várias categorias. Assim, foram catorze as trajetórias de trabalhadores de baixa escolaridade utilizadas na análise das entrevistas.

O outro foco da pesquisa está nos trabalhadores de alta escolaridade sem vínculo empregatício, mais especificamente, profissionais de tecnologia da informação e de comunicação. Neste caso realizaram-se dez entrevistas, sendo que o contato inicial foi feito por meio de uma pessoa conhecida e a partir daí os entrevistados foram indicando outros nomes. Assim, foram entrevistados os indivíduos indicados que cumprissem com os critérios de seleção para a pesquisa e concordassem em colaborar.

Enquanto no caso dos feirantes muitos dos indicados simplesmente se negaram a dar a entrevista, entre os profissionais de nível superior muitos concordaram em participar, mas acabaram desistindo quando descobriram a necessidade de uma entrevista face a face mais aprofundada. O tempo parece ser um fator importante aqui, já que muitos tinham escasso tempo livre para relatar sua trajetória de vida numa entrevista. Alguns sugeriram uma entrevista por telefone ou por meio virtual, o que não pode ser concretizado por não satisfazer os critérios de uma entrevista mais aberta, em que há a necessidade de um contato pessoal com sujeito da pesquisa. Assim, é preciso levar em consideração uma primeira seleção dos pesquisados entre os que aceitaram participar possivelmente como indivíduos mais dispostos a contribuir para uma pesquisa e a elaborar sobre suas trajetórias, além de terem tempo suficiente para tal.

A maior parte das entrevistas entre os profissionais de nível superior ocorreu na casa dos pesquisados e duas foram na casa da pesquisadora (por escolha dos entrevistados). O local mais tranqüilo e reservado contribuiu para um maior aprofundamento dos relatos e diminuiu a necessidade de buscar mais entrevistas depois que os argumentos dos sujeitos de pesquisa começaram a se repetir. Provavelmente também colaborou para isto o fato de os entrevistados terem escolaridade e posição social mais próximas à da pesquisadora e tenham se sentido mais confiantes para analisar suas trajetórias e condições de trabalho.

Como uma pesquisa de metodologia qualitativa, a quantidade de sujeitos a serem entrevistados teve como base a profundidade e qualidade das informações obtidas nos relatos, além da saturação dos dados. Isto ocorre quando os dados começam a se repetir, ou seja, quando:

já é possível identificar padrões simbólicos, práticas, sistemas classificatórios, categorias de análise da realidade e visões de mundo do universo em questão, e as recorrências atingem o que se convencionou chamar de “ponto de saturação”, dá-se por finalizado o trabalho de

campo, sabendo que se pode (e deve) voltar para esclarecimentos (Duarte, 2002, p.144).

A partir de tais critérios, é preciso reforçar que a amostra de entrevistados para esta pesquisa não pretende se submeter aos critérios quantitativos de validade e relevância estatística, mas tem como objetivo prestar-se a um enfoque em profundidade das condições de trabalho e da subjetividade dos sujeitos pesquisados.

A entrevista foi escolhida como técnica de pesquisa por reunir as condições necessárias tanto para a caracterização dos sujeitos analisados a partir da apreensão de dados objetivos importantes como também - e principalmente - por permitir o acesso a conteúdos mais profundos da história de vida desses trabalhadores. Foi utilizada, para tanto, a entrevista semi-estruturada, com um grupo de questões mais objetivas como idade, escolaridade, ocupação, renda e estado civil e um momento de discurso livre sobre a trajetória ocupacional do entrevistado desde o primeiro emprego até o trabalho atual e as projeções para o futuro. É na narrativa da sua trajetória que podem aflorar as disposições subjetivas do entrevistado, possibilitando acesso ao seu universo simbólico, seus valores, percepções e representações do social.

Ao discutir uma série de questões teóricas e metodológicas para a pesquisa de campo, Narita (2006) afirma a importância do relato oral na pesquisa qualitativa e descreve a situação de entrevista como: “um momento de encontro entre dois sujeitos, no qual as memórias são revividas e reconstruídas no momento em que são narradas, reelaboradas, sofridas. (...) é a raiz do indivíduo que aparece por meio tanto dos conteúdos vividos como pela forma de representá-los” (Narita, 2006, p.27).

Entretanto, a entrevista é uma situação social artificialmente construída e muitas vezes estes dois sujeitos não ocupam posições equivalentes, não têm a mesma compreensão e expectativa do que significa este encontro. Como lembra Bourdieu (1997), a relação de pesquisa não deixa de ser uma interação social que ocorre sob pressão de estruturas sociais. É preciso que o pesquisador use da reflexividade numa tentativa de controlar os efeitos da estrutura social na pesquisa. Além da dissimetria entre entrevistado e entrevistador na própria pesquisa, já que é o segundo que “estabelece as regras do jogo”, há ainda a dissimetria social quando “o pesquisador ocupa uma posição superior ao

pesquisado na hierarquia das diferentes espécies de capital, especialmente do capital cultural” (Bourdieu, 1997, p. 695).

Bourdieu (1997) indica que cabe ao entrevistador evitar a violência simbólica originada das diferenças de posição através de uma “comunicação não violenta” que trate o entrevistado efetivamente com sujeito histórico. Ademais, o pesquisador deve estabelecer uma “escuta ativa e metódica”, além de tentar colocar-se no lugar do entrevistado por meio do domínio de suas condições de existência51. Em outras palavras, é preciso compreender

para explicar.

Em alguns casos, quando a situação de comunicação se mostra propícia, por meio de uma escuta atenta e livre de constrangimentos, o momento da entrevista pode levar os pesquisados a uma espécie de auto-análise provocada e acompanhada. Um momento não só para se fazer ouvir, mas como observa Bourdieu:

uma ocasião também de se explicar, no sentido mais completo do termo, isto é, de construir seu próprio ponto de vista sobre eles mesmos e sobre o mundo, e manifestar o ponto, no interior desse mundo, a partir do qual eles vêem a si mesmos e o mundo, e se tornam compreensíveis, justificados, e para eles mesmos em primeiro lugar. (Bourdieu, 1997, p. 704)

Na pesquisa sobre as várias formas de misérias contemporâneas que deu origem ao livro “A Miséria do Mundo” o sociólogo francês coordenou uma equipe de pesquisadores que escolhiam os entrevistados entre pessoas conhecidas, numa tentativa de reduzir os efeitos das dissimetrias que redundam em violência simbólica. No caso da presente pesquisa, utilizou-se de pessoas conhecidas para estabelecer um primeiro contato com os entrevistados, o que foi fundamental para quebrar algumas das barreiras iniciais.

Outra forma de intervenção na relação de pesquisa pode ser dada quando os entrevistados, conscientemente ou não, se protegem e resistem à objetivação ao tentar atribuir sua definição a uma situação que pode colocar em xeque a imagem que têm deles mesmos. É neste sentido que:

51 Mais especificamente, Bourdieu afirma que esta compreensão do pesquisado deve ser “fundada no domínio (teórico ou prático) das condições sociais das quais ele é o produto: domínio das condições de existência e dos mecanismos sociais cujos efeitos são exercidos sobre o conjunto da categoria da qual eles fazem parte (as dos estudantes, dos operários, dos magistrados, etc.) e domínio dos condicionamentos inseparavelmente psíquicos e sociais associados à sua posição e à sua trajetória particulares no espaço social”. (Bourdieu, 1997, p. 700).

Discursos podem ser ditos a fim de “agradar” o entrevistador, ao mesmo tempo que o indivíduo fala, também atendendo as suas próprias necessidades. É importante, portanto, estar atento ao fato de que, ao longo da entrevista, há trechos de “discurso adequado socialmente”, utilizados como forma de proteger-se de pessoas estranhas para não correr o risco de ser prejudicado de alguma forma. (...) Assim, o discurso manifesto pode ser aquele socialmente aceitável e o latente, o indizível, o impróprio socialmente e que pode causar problemas, por isso, não é expresso. Daí a importância de termos ciência dos limites da entrevista, de um lado; e de outro, sabermos ouvir não apenas o que é dito, mas também os silêncios, que tanto podem significar desconhecimento quanto constrangimento, ou mesmo crítica. (Narita, 2006, p. 27)

É por isso que o pesquisador não deve se limitar aos fatos narrados, mas interpretar as falas como representações ou construções sociais, considerando que resultam de certas relações sociais (dentro e fora da situação de entrevista). Decorre daí, novamente, a importância do cuidado metodológico e da reflexividade do pesquisador na condução e análise das entrevistas.

A análise do pesquisador será sempre uma interpretação ou reconstrução da realidade. Ou como assinala Bourdieu, um ponto de vista sobre um ponto de vista. De acordo com o sociólogo, o sentido dado nos relatos dos sujeitos pesquisados tende a considerar as ações sociais como atos de indivíduos ou grupos em vez de situá-las como relações objetivas. Assim, estas relações devem ser construídas pelo pesquisador ao objetivar as disposições e posições sociais do entrevistado, transformando o conhecimento prático dos entrevistados em conhecimento sociológico (Hamel, 1997).

Todas as entrevistas realizadas foram gravadas e transcritas com a permissão dos entrevistados sob a garantia de que as informações apresentadas seriam mantidas em sigilo e somente utilizadas para fins acadêmicos. Desta forma, recorre-se a nomes fictícios na análise das entrevistas para preservar a identidade dos sujeitos pesquisados.