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ALMEIDA, que são bem ilustrativas do que se passa actualmente em Portugal no que respeita aos direitos humanos das minorias sexuais: “Os acontecimentos homófobos em Viseu apelam a uma reflexão sobre como a sociedade portuguesa, neste início de ciclo político socialista, deve lidar com a discriminação e a desigualdade com base na orientação sexual”. E acrescentava ainda que “Em Viseu ocorreu uma manifestação mais violenta e publicitada daquilo que é o quotidiano de muitos gays e lésbicas, alvos sistemáticos de insulto, silenciamento, invisibilização, hipocrisia, exclusão familiar, chantagem laboral, medicalização, perseguição religiosa e menorização social e política em geral.”156.

O Estado português, enquanto membro da União Europeia, do Conselho da Europa e da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa, está ética e politicamente comprometido com a construção de uma sociedade inclusiva, livre de violações de direitos por motivos de orientação sexual ou identidade de género.

Contudo, tem surgido na sociedade portuguesa, nomeadamente através de movimentos sociais, a exigência de leis que assegurem o respeito pelos direitos fundamentais destas minorias.

O estudo da socióloga ANA CRISTINA SANTOS demonstra que, no caso da população LGBT portuguesa, os seus direitos são violados nas variadas instâncias públicas e privadas157. É neste jogo entre local e global, por um lado, e político e social, por outro, que se constrói publicamente o chamado movimento civil LGBT português158.

156 Vid, na matéria, VALE DE ALMEIDA, MIGUEL (2005), “A Síndrome de Viseu”, in Jornal Público, de 14/05/2005, disponível na web em http://valedealmeida.no.sapo.pt.

157 Vid, na matéria, SANTOS, Ana Cristina (2005a), pp. 107 e ss. A socióloga ANA

CRISTINA SANTOS é vice-presidente, e uma das fundadoras da associação NÃO TE PRIVES GRUPO DE DEFESA DOS DIREITOS SEXUAIS, sediada na cidade de Coimbra. Podemos ler no Manifesto desta associação que se trata de “um grupo heterogéneo composto por mulheres e homens muito diferentes entre si. Une-nos a mesma vontade: combater a discriminação baseada na sexualidade e no género.”. Para mais informações sobre esta associação consultar página web http://naoteprives.org. Ver ainda, SANTOS, Ana Cristina (2005b),

“Heteronormatividades: Formas de Violência Simbólica e Factual Com Base na Orientação Sexual e na Identidade de Género”, in Revista Portuguesa de História, n.º 37, pp. 281-298, e ainda, o relatório sobre homofobia e discriminação com base na orientação sexual em Portugal

Podemos dizer que a homossexualidade e a bissexualidade continuam a revelar-se áreas problemáticas para a maioria da população portuguesa, utilizadas muitas vezes como forma de agressão verbal ou de inferiorização do outro, como bem o demonstrou VALE DE ALMEIDA159.

Esta rejeição da “não heterossexualidade” já se revelou de forma violenta num passado recente, configurando situações cujos contornos se enquadram no conceito de violação dos direitos humanos. O primeiro ataque conhecido deu-se em 1996 à porta da discoteca lisboeta Kings and Queens, onde após provocações por parte de um grupo de indivíduos que circulava na zona, dois homossexuais acabaram por ser esfaqueados.

Fora de Lisboa ocorreram outros dois casos de agressão física, um em Braga e outro em Évora, onde grupos de indivíduos se dedicavam a perseguir e a espancar homossexuais masculinos160.

Mais recentemente, como já foi citado anteriormente, registaram-se episódios graves de violência homófoba na cidade de Viseu, onde em Março de 2005 uma manifestação organizada por catorze associações de defesa dos direitos dos homossexuais, foi marcada por confrontos verbais bastante violentos, entre os manifestantes e elementos da população local161.

Recuando um pouco no tempo, em Janeiro do ano de 2002, surgiram informações sobre o suicídio de um recluso na cadeia do Linhó, supostamente após uma sucessão de agressões e ameaças por parte dos guardas prisionais tendo por base a de PINHEIRO, Alexandre Sousa; FREITAS, Dinamene de e MARINHO, Inês (2008), Thematic Legal Study on Homophobia and Discrimination on Grounds of Sexual Orientation – Portugal, Viena: Edição da Agência Europeia para os Direitos Fundamentais (FRA).

158 Para ANTÓNIO FERNANDO CASCAIS “não existe movimento Lésbico, Gay, Bissexual e Transgénero organizado em Portugal antes do advento do regime democrático em 1974, nem sequer em embrião. As pessoas que eventualmente se envolvem na oposição ao regime nunca o fazem em nome de uma luta homossexual assumida, embora se faça sentir a repressão policial e até política, além do esmagamento social e cultural omnipresente.”. Vid., na matéria, CASCAIS, António Fernando (s. d.), O Movimento GLBT e a Esquerda, disponível na web em http://www.bloco.org/pdf/0%20movimento%20glbt%20e%20esquerda.pdf. Para aprofundar a história do Movimento Civil LGBT português, ver ALBUQUERQUE, Afonso de (2006), pp. 31-34;

CASCAIS, António Fernando (2006), pp. 109-126; e ainda, SANTOS (2005a), pp. 108-151.

159 Para VALE DE ALMEIDA (1995) a orientação homossexual do outro é também utilizada como mecanismo de inferiorização, para quem uma das características principais da masculinidade hegemónica, para além da inferioridade feminina, é a homofobia que “exorciza o perigo homossexual da homossociabilidade”.Vid, na matéria, ALMEIDA, Miguel Vale de (1995), pp. 68-69.

160 Vid., na matéria, ILGA-PORTUGAL (1996), Revista Trivia, Edição de Outubro/Novembro de 1996, Lisboa:Ilga-Portugal.

161 Vid., na matéria, CÂNCIO, Fernanda e CARDOSO ALMEIDA, Paula (2005b), “Os Paneleiros Hádem Morrer Todos”, in Diário de Notícias de 26 de Março, disponível em http://dn.sapo.pt/2005/03/26/sociedade/os_paneleiros_hadem_morrer_todos.html.

orientação sexual do recluso162. Também no final de Maio desse ano, a POLÍCIA

JUDICIÁRIA DO PORTO prendeu um trio de assaltantes que raptava e roubava homossexuais na cidade de Guimarães163.

Um novo caso de violência registou-se em Agosto de 2002, onde duas mulheres foram encaminhadas à esquadra da POLÍCIA DE SEGURANÇA PÚBLICA DE CASCAIS, na sequência de um acidente rodoviário. Na esquadra estas duas mulheres lésbicas, foram alegadamente maltratadas e insultadas em razão da sua orientação sexual. Este incidente consta do Relatório da AMNISTIA INTERNACIONAL referente ao ano de 2003, colocando Portugal na lista de países onde os direitos LGBT não são respeitados164.

162 Vid., na matéria, Jornal Diário de Notícias de 29/01/2002. Mais recentemente, e no âmbito das prisões, é de referir o caso de duas reclusas do presídio de Tires, que queixaram-me junto da Direcção-geral dos Serviços Prisionais, de serem castigadas com isolamento, depois de assumirem a sua relação lésbica dentro do Estabelecimento Prisional de Tires, em Cascais. Os serviços prisionais alegam que a punição se deveu a um acto de indisciplina de uma das detidas.

Vid., na matéria, ROPIO, Nuno Miguel (2008), “Casal de Reclusas Lésbicas Punidas Com Isolamento”, in Jornal de Notícias, de 8 de Outubro de 2008, disponível na web em http://jn.sapo.pt/Common/print.aspx?content_id=1023797.

163 Vid., na matéria, Jornal 24 Horas de 28/05/2002, p. 4.

164 Vid., na matéria, Jornal Público de 21/08/2002, e ainda, AMNISTIA INTERNACIONAL

(2003), Relatório da Amnistia Internacional 2003, Londres: Publicações da Amnistia Internacional, disponível na web em http://web.amnesty.org/report2003/Prt-summary-eng. A propósito dos vários incidentes mencionados neste trabalho envolvendo cidadãos LGBT e forças de segurança, recomenda-se a leitura de ILGA-PORTUGAL (2007d), Proposta de Boas Práticas para o Relacionamento Entre as Forças e Serviços de Segurança Portugueses e as Cidadãs e os Cidadãos LGBT, Lisboa: Edição da ILGA-PORTUGAL, disponível na web em http://www.ilga-portugal.oninet.pt/pdfs/BoasPraticas.pdf. Na página 11 deste documento podemos ler que “A Associação ILGA-Portugal há muito vem alertando para o peso do preconceito em sectores-chave para o funcionamento da democracia. Esta proposta tem por objectivo apresentar um conjunto de medidas que pensamos serem fundamentais para a melhoria do relacionamento entre as forças e serviços de segurança e a comunidade LGBT, avançando-se desta forma na luta contra a discriminação e contra os crimes de ódio motivados por homofobia.”. Acrecenta-se ainda que “As medidas propostas pela Associação ILGA-PORTUGAL sustentam-se nas queixas e denúncias que nos chegam e nas melhores práticas existentes noutros países da Europa.”.

Recorde-se que ainda recentemente, registou-se novo caso de homofobia envolvendo vários polícias da 13.ª Esquadra da Polícia de Segurança Pública da cidade do Porto, onde um casal homossexual de férias no Porto foi vítima de insultos e ameaças de agressão. Vid., na matéria,

“Homossexuais Dizem Ter Sido Ameaçados por Agentes – Casal Gay Queixa-se da Polícia do Porto”, in Correio da Manhã de 08/04/2007, disponível em http://www.correiodamanha.pt/

noticia.asp?id=237702&idselect=10&idCanal=10&p=0. Importa ainda referir que a luta conjunta contra a opressão que discrimina em função do sexo, da etnia ou da orientação sexual é apenas um dos factores que aproxima as associações LGBT nacionais de outras organizações a nível internacional. O trabalho desenvolvido colectivamente por associações LGBT portuguesas e ONG´s internacionais verifica-se, por exemplo, no caso da AMNISTIA INTERNACIONAL. Para além desta ONG ter participado na Marcha do Orgulho Homossexual de 2001, foi criado em Julho desse mesmo ano, um Grupo de Trabalho/Núcleo LGBT na Secção Portuguesa da AMNISTIA INTERNACIONAL, à semelhança do que se sucede noutros países.

Muitos outros exemplos de violência homofóbica poderiam ser enumerados aqui, mas importa agora insurgimo-nos sobre o papel influenciador da IGREJA CATÓLICA

no perpetuar da homofobia no seio da sociedade portuguesa, passando depois a desenvolvermos a homofobia a nível institucional.

Herdeiro de décadas de influência da IGREJA CATÓLICA165, o Estado Português parece não ter assumido ainda uma atitude livre de juízos morais e religiosos, o que faz com que apesar dos avanços jurídicos alcançados, continuem a verificar-se situações de manifesta homofobia por parte de organismos estatais. Apontaremos de seguida, alguns factos relacionados com a moral católica, bem como também alguns aspectos legais que contribuem para uma visão negativa da homossexualidade no nosso país.

Em vários registos se constatam expressões reveladoras da censura moral da homossexualidade por parte da IGREJA CATÓLICA166, designadamente em diversos documentos que recorrem a expressões como “graves depravações” ou actos

“intrinsecamente desordenados”167, “tendência dirigida para um mal moral intrínseco” ou “desordem objectiva”168. A IGREJA alerta para “o perigo de uma

165 Vid, na matéria, resenha de artigos sobre esta matéria, publicados no Jornal COURRIER INTERNACIONAL (2007), A Igreja Católica e o Sexo, n.º 126, pp. 8-14.

166 Um dado curioso vai para um estudo efectuado por RODRÍGUEZ (1995), que apresenta estimativas que situam as práticas homossexuais, no seio da classe clerical sexualmente activa, entre os 20 a 50%, dos quais uns 12% serão homossexuais “exclusivos”, uma percentagem bastante superior ao estimado na população geral. Vid, na matéria, RODRÍGUEZ, Pepe (1995), A Vida Sexual do Clero, Lisboa: Publicações Dom Quixote, pp. 48-49.

167 Cf. o n.º 8 da Declaração Persona Humana, emitida em 29/12/1975 pela CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ, onde podemos ler que “Na acção pastoral, esses homossexuais devem ser aceites com compreensão e apoiados na esperança de superar as suas dificuldades pessoais e o seu desajuste social. A sua culpa deverá ser julgada com prudência, mas não pode ser usado nenhum método pastoral que, considerando estes actos conformes com as condições daquelas pessoas, lhes atribua uma justificativa moral. Segundo a ordem moral objectiva, as relações homossexuais são actos desprovidos da sua regra essencial e indispensável. São condenadas na Sagrada Escritura como depravações e até apresentadas como a consequência directa da rejeição de Deus.”. Vid, na matéria, CONGREGAÇÃO PARA A

DOUTRINA DA FÉ (1982), “Declaração Persona Humana: Algumas Questões de Ética Sexual”, emitida em 29/12/1975, in Enchiridion Vaticanum, n.º 5 (1974-1975), Bolonha: Edições Dehoniane, pp. 1126-1157.

168 Cf. o n.º 3 da Carta aos Bispos da Igreja Católica Sobre o Cuidado Pastoral Com Pessoas Homossexuais, emitida em 01/10/1986, pela CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ, onde se afirma que “É preciso, ao contrário, esclarecer que a particular inclinação da pessoa homossexual, ainda que não seja em si pecado, constitui, todavia, uma tendência, mais ou menos forte, para um comportamento intrinsecamente mau do ponto de vista moral. Por esse motivo a própria inclinação deve ser considerada como objectivamente desordenada.”. Vid, na matéria, CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ (1989), “Carta aos Bispos da Igreja Católica Sobre o Cuidado Pastoral Com Pessoas Homossexuais”, emitida em 01/10/1986, in Enchiridion Vaticanum, n.º 10 (1986-1987), Bolonha: Edições Dehoniane, pp. 666-693.

legislação que faça da homossexualidade uma base para garantir direitos, poder vir de facto a encorajar uma pessoa com tendências homossexuais a declarar a sua homossexualidade ou mesmo a procurar um parceiro para tirar proveito das disposições da lei.”169. Mais recentemente, voltou a qualificar a homossexualidade como um “comportamento errado”170.

Esta posição da IGREJA, expressa em diversos documentos emitidos durante o pontificado de JOÃO PAULO II171, teve acolhimento no NovoCatecismo, segundo o qual os actos homossexuais “são contrários à lei natural, fecham o acto sexual ao dom da vida, não procedem duma verdadeira complementaridade afectiva sexual, não podem, em caso algum, ser aprovados.” (§ 2357)172. O Catecismo da IGREJA CATÓLICA

recomenda que os que possuam tendências homossexuais profundamente radicadas

“devem ser acolhidos com respeito, compaixão e delicadeza” (§ 2358), mas, do mesmo

169 Cf. o n.º 14 do documento da CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ (1992), Algumas Considerações Sobre a Resposta a Propostas de Lei em Matéria de Não Discriminação das Pessoas Homossexuais, emitido em 24/07/1992, disponível na web em http://www.vatican.va/romancuria/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith doc 2003 0731_homosexual-unions_po.html.

170 Cf. o n.º 11 do documento da CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ (2003), Considerações Sobre os Projectos de Reconhecimento Legal das Uniões entre Pessoas Homossexuais, emitido em 03/06/2003, p. 5, onde podemos ler que “A Igreja ensina que o respeito para com as pessoas homossexuais não pode levar, de modo nenhum, à aprovação do comportamento homossexual ou ao reconhecimento legal das uniões homossexuais. O bem comum exige que as leis reconheçam, favoreçam e protejam a união matrimonial como base da família, célula primária da sociedade. Reconhecer legalmente as uniões homossexuais ou equipará-las ao matrimónio, significaria, não só aprovar um comportamento errado, com a consequência de convertê-lo num modelo para a sociedade actual, mas também ofuscar valores fundamentais que fazem parte do património comum da humanidade. A Igreja não pode abdicar de defender tais valores, para o bem dos homens e de toda a sociedade.”.

171 Cf. com os seguintes documentos: Alocuções por Ocasião da Recitação do Angelus de 20/02/1994 e de 19/06/1994; Discurso aos Participantes na Assembleia Plenária do Conselho Pontíficio para a Família de 24/03/1999; Carta aos Presidentes das Conferências Episcopais da Europa sobre a Resolução do Parlamento Europeu em Matéria de Uniões Homossexuais de 25/03/1994 do Conselho Pontíficio para a Família, e ainda, o documento Família, Matrimónio e “Uniões de facto” de 26/07/2000. Sobre a condenação da sodomia e da homossexualidade, e numa perspectiva crítica, cf. com o texto “Homossexualidade e Religião”, disponível na web em http://portugalgay.com/religiao/index.asp. Ver ainda obra mais abrangente de MCNEILL, John J. (1997), Os Excluídos da Igreja, Lisboa: Temas e Debates.

Também uma resenha de algumas posições homófobas de representantes da Igreja Católica portuguesa, pode ser encontrada em AMARAL e MOITA (2004), p. 106, nota 13. Para o desenvolvimento da questão da sexualidade humana durante o Magistério de JOÃO PAULO II, aconselhamos a consulta de uma excelente tese elaborada por BAPTISTA, I. M. A. (2004), Fenomenologia e Sentido da Sexualidade Humana no Magistério de João Paulo II, Dissertação de Mestrado em Filosofia, Área de Especialização em Fenomenologia e Filosofia da Religião, Braga: Universidade do Minho – Instituto de Letras e Ciências Humanas (Marta Mendonça, Orientadora).

172 Vid, na matéria, CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA (1999), 2.ª edição, Coimbra:

Gráfica de Coimbra, pp. 573-574, disponível na web em http://www.ecclesia.pt/catecismo/.

passo, apela à castidade das pessoas homossexuais que “pelas virtudes do autodomínio, educadoras da liberdade interior, e, às vezes, pelo apoio duma amizade desinteressada, pela oração e pela graça sacramental, podem e devem aproximar-se, gradual e resolutamente, da perfeição cristã” (§ 2359). O § 2396 do Catecismo é, no entanto, mais concludente: “entre os pecados gravemente contrários à castidade, devem citar-se: a masturbação, a fornicação, a pornografia e as práticas homossexuais.”173.

Um facto que verificamos é que as ingerências religiosas em matéria legal nem sempre são assumidas ou directas. Basta dizer que a propósito da celebração do 50.º aniversário da Declaração Universal dos Direitos do Homem, por exemplo, a carta da CONFERÊNCIA EPISCOPAL PORTUGUESA (CEP) recorre a expressões cujo rigor e significado podem ser questionados, tais como “famílias moralmente degradadas”,

“ataques organizados à instituição familiar” e “relações familiares normais”174. Insurgindo-se desde sempre contra a homossexualidade, a IGREJA CATÓLICA

portuguesa tem vindo a adaptar o seu discurso às transformações sociais, ainda que lentamente, concedendo perdão e recomendando abstinência sexual. Quando, a 13 de Junho de 1994, o Jornal Expresso colocou em primeira página o artigo “JS quer legalizar uniões entre homossexuais”, o país confrontou-se pela primeira vez com a dureza das afirmações do clero católico relativamente à orientação sexual175. No referido artigo, D.EURICO DIAS NOGUEIRA, Arcebispo de Braga, afirmava o seguinte:

“A hipótese é mais aberrante ainda do que limitar o articulado à união normal. (…) O Estado será em breve a primeira vítima, porque um Estado que não assenta nas famílias bem constituídas é um Estado frágil. (…) O que fez cair o Império Romano não foram as lanças dos povos bárbaros, mas a desagregação familiar.”.

173 Vid, na matéria, CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA (1999), p. 582. Uma perspectiva bastante contrária à dos líderes religiosos da Igreja Católica, vem por parte do líder espiritual tibetano, o DALAI LAMA, que recentemente demonstrou preocupação e a sua oposição contra a violência e discriminação contra gays, lésbicas, bissexuais e transgéneros. Assim, na abertura da Conferência da ILGA-EUROPE em Genebra na Suiça, no dia 30 de Março de 2006, o Enviado de SUA SANTIDADE O DALAI-LAMA KELSANG GYALTSEN referiu que “Sua Santidade regozija-se com a especial atenção dada nesta conferência à tolerância religiosa e respeito pela diversidade. Sua Santidade está muito preocupado com os relatos de violência e discriminação contra gays, lésbicas, bissexuais e pessoas transgender. Sua Santidade é contra a violência e discriminação baseada na orientação sexual e identidade de género e pede respeito, tolerância, e reconhecimento total dos direitos humanos para todos.”. Vid, na matéria, ILGA-EUROPE

(2006a), His Holiness the Dalai Lama Issues Statement in Suport of Human Rights of Lesbian, Gay, Bisexual and Transgender People, disponível em http://www.ilga.org/news_results.asp?

LanguageID=1&FileCategoryID=1&FileID=782&ZoneID=7.

174 Vid, na matéria, CONFERÊNCIA EPISCOPAL PORTUGUESA (1998), No 50º Aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, Lisboa: Secretariado Geral do Episcopado.

175 Vid, na matéria, Jornal Expresso de 13/06/1994.

Algum tempo depois, o mesmo Arcebispo voltou a afirmar, no mesmo órgão de imprensa, a sua oposição à legalização das uniões de facto entre homossexuais, afirmando que “classificar como família uma união homossexual é um abuso, é um disparate. Não ponho em causa a existência das pessoas que enveredam por esses caminhos e os seus direitos. O problema é que querem chamar família àquilo que não pode ser família de modo nenhum.”. Novamente em 1997, o mesmo Arcebispo de Braga, volta a manifestar-se, referindo-se numa homilía, aos homossexuais como sendo

“aberrações da natureza”, ligando-os à decadência da família tradicional176.

Mais recentemente, numa carta pastoral intitulada “A Igreja na Sociedade Democrática” publicada em 2000, a CEP manifestou o seu repúdio pela recomendação de 16 de Março 2000, do Parlamento Europeu aos Estados-Membros da União Europeia, no sentido de garantir às famílias monoparentais e às uniões de facto, direitos idênticos ao casamento177. Rejeitando uma equiparação entre os conceitos de “união de facto” e “família”, a CEP colocou-se ao lado do CONSELHO PONTIFÍCIO PARA A FAMÍLIA

que no documento “Família, Matrimónio e Uniões de Facto”, datado de Novembro de 2000, afirmava que as uniões de facto entre homossexuais “constituem uma deplorável distorção do que deveria ser a comunhão de amor e vida entre um homem e uma mulher, que se empenham ao dom recíproco de si e se abrem à geração da vida.”178.

Também a 26 de Abril de 2001, a CEP tornou público um documento intitulado

“Crise de Sociedade – Crise de Civilização”, em que analisava o reconhecimento legislativo por parte do Parlamento português relativamente às uniões de facto para pessoas do mesmo sexo do mês anterior, acusando o legislador de lesar a “dignidade da família”179. Na opinião dos bispos portugueses, a aprovação da lei das uniões defacto revela “intenções de alguns grupos de provocar rupturas estruturantes, em relação à

176 Vid, na matéria, Jornal Expresso de 20/07/1994, e ainda, Jornal A Capital de 09/12/1997.

177 Vid, na matéria, CONFERÊNCIA EPISCOPAL PORTUGUESA (2000), Carta Pastoral - A Igreja na Sociedade Democrática, disponível na web em http://www.agencia.ecclesia.pt /.

178 Vid, na matéria, CONSELHO PONTIFÍCIO PARA A FAMÍLIA (2000), Família, Matrimónio e Uniões de Facto, de 26/07/2000, disponível na web em http://www.vatican.va/roman_curia/ pontifical_ councils/family/documents/rc_pc_family.

179 Cf. com o ponto n.º 7 da Nota Pastoral da CONFERÊNCIA EPISCOPAL PORTUGUESA

(2001), Crise de Sociedade, Crise de Civilização, onde se podemos ler na página 4: “Quere-se regulamentar os direitos cívicos de uniões de facto, mesmo entre pessoas do mesmo sexo, e consideram-se famílias alternativas, atingindo a dignidade da família, que no seu fundamento antropológico e afectivo, assente numa responsabilidade e compromisso duradouros, selados pelo contrato matrimonial, é a base sólida da estabilidade da sociedade. As nossas famílias mereciam mais apreço e reconhecimento da sua dignidade.”.

tradicional cultura portuguesa, ou mesmo em relação à influência da doutrina da Igreja na sociedade”, sendo tal alteração cultural prenúncio de uma crise civilizacional180. Contestada por determinados sectores político-sociais e louvada por outros, esta posição pública da Igreja veio reafirmar o poder de contestação e intervenção de que ainda dispõe em matéria de regulação da moral sexual.

Transpondo esta visão clerical para as crenças e atitudes dos portugueses, verificamos uma grande rejeição da homossexualidade masculina e feminina entre os católicos praticantes. Se entre os não crentes, a taxa de aceitação das relações sexuais entre gays e entre lésbicas, se situa nos 22,6% e 24,1% respectivamente, esta percentagem desce para os cerca de 17% entre os católicos não praticantes, e para os 5,5% entre os católicos praticantes e crentes de outras religiões181. Ora, se considerarmos que 72% dos portugueses se identificam como religiosos, e que de entre estes, 97% são católicos182, torna-se evidente a influência categórica da moral católica dominante nas decisões políticas que afectam directamente os cidadãos LGBT, bem como no processo de emergência e consolidação do movimento civil LGBT em Portugal.

Podemos dizer que práticas como a homossexualidade e a bissexualidade continuam a revelar-se áreas problemáticas para a maioria da população portuguesa183,

180 Cf. com o ponto n.º 2 da Nota Pastoral da CONFERÊNCIA EPISCOPAL PORTUGUESA

(2001), Crise de Sociedade, Crise de Civilização, onde podemos ler na página 1 que “Na nossa sociedade sente-se cada vez mais que as regras inspiradoras dos comportamentos, as próprias leis e o sentido global da vida individual e comunitária, deixaram de se inspirar em padrões éticos de valores, num quadro cultural que defina um projecto e um ideal, na linha da nossa tradição cultural, e decorrem ao sabor de critérios imediatistas e pragmáticos, onde não se escondem intenções de alguns grupos de provocar rupturas fracturantes, em relação à tradicional cultura portuguesa, ou mesmo em relação à influência da doutrina da Igreja na sociedade.”.

181 Vid, na matéria, PAIS, José Machado (Coord.) (1998), Gerações e Valores na Sociedade Portuguesa Contemporânea, Lisboa, Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e Secretaria de Estado da Juventude, p. 442.

182 Vid, na matéria, FRANÇA, Luís (1993), Portugal, Valores Europeus, Identidade Cultural, Lisboa: Instituto de Estudos para o Desenvolvimento, p. 114.

183 Tal como revela um estudo realizado em 12 países europeus entre 1989 e 1993 pelo Instituto Nacional dos Estudos Demográficos francês, a homossexualidade continua a ser bastante problemática para quem a vive, sendo que cerca de 10% dos homossexuais são ainda rejeitados pelos pais, constituindo esta prática um motivo frequente de acelerada partida do lar, e de migração para os grandes centros urbanos. Estudos mais recentes apontam nesse mesmo sentido. Numa escala que oscila entre o nunca justificável (=1) e o sempre justificável (=10), a homossexualidade obtem a média de 3.19 em Portugal, em contraste com a média da União Europeia que é de 5.36. É pertinente referir que dados recentes do Eurobarómetro, divulgados em Janeiro de 2007, referem que em Portugal a discriminação em razão da orientação sexual é a mais referida: dois terços dos portugueses (67 por cento) entendem que está generalizada, e 45 por cento dizem mesmo que a situação se agravou de há cinco anos a esta parte. A nível europeu, a percentagem da população a ter a mesma percepção, reduz-se para 31 por cento. É de