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Entre os terapeutas portugueses, a par de uma leitura homofóbica da homossexualidade, registam-se também perspectivas afirmativas da homossexualidade, sublinhando ora a identidade, ora o comportamento. Uma representação plástica do comportamento sexual em geral pode também ser encontrada. Nesta última perspectiva, qualquer comportamento sexual é visto como um comportamento opcional e possível, que “qualquer pessoa, em qualquer circunstância pode, se lhe der jeito ou se quiser, ter”446.

da América do Norte e do Reino Unido447. Também é de referir, que a maior parte dos estudos se refere a gays e lésbicas, não sendo estudada, tão frequentemente, a bissexualidade (esta quando é estudada é associada à homossexualidade), e ainda menos no que se respeito aos estudos sobre transgenderismo e transexualidade.

Como veremos, o direito à saúde física e mental está em conflito com práticas e políticas de saúde discriminatórias, como são por exemplo, a homofobia de alguns médicos e outros profissionais de saúde, a falta de treino adequado do pessoal de saúde no tratamento de questões relativas à orientação sexual e às perturbações da identidade de género, ou ainda à falsa assumpção de que todos os utentes são heterossexuais.

4.3.1 A Discriminação pelo Serviço Nacional de Saúde Português

Neste sub-capítulo, vamos analisar algumas áreas em que o actual SERVIÇO

NACIONAL DE SAÚDE português exerce algum tipo de discriminação para com as pessoas LGBT. Assim, e por esta ordem, vamos analisar a política do INSTITUTO

PORTUGUÊS DE SANGUE (IPS) ao longo dos últimos anos, a questão da transexualidade, e por último, o tema da procriação medicamente assistida.

Recentemente veio a público a notícia de que os homossexuais poderiam dar sangue, depois de anos de discriminação448. Após mais de uma década de vários protestos e de acusações de discriminação sem fundamento científico, o IPS decidiu acabar com a exclusão dos homossexuais masculinos na dádiva de sangue.

Nas palavras do próprio presidente do IPS, ALMEIDA GONÇALVES, podemos constatá-lo: “A tendência actual é de igualdade de critérios para todas as orientações sexuais, há uma recapitulação em termos internacionais nesta matéria”, e também

447 Vid., na matéria, por exemplo, MACKERETH, P. A. (1995), “HIV and Homophobia:

Nurses As Advocates”, in Journal of Advanced Nursing, vol. 22, n.º 4, pp. 670-676;RÖNDAHL, G.; INNALA S.; CARLSSON, M.(2003), “Nursing Staff and Nursing Students' Attitudes Towards HIV-infected and Homosexual HIV-infected Patients in Sweden and the Wish to Refrain From Nursing”, in Journal of Advanced Nursing, vol. 41, n.º 5, pp. 454-461; VERMETTE, L. e GODIN, G. (1996), “Nurses Intentions to Provide Home Care: The Impact of AIDS and Homosexuality”, in AIDS Care, vol. 8, n.º 4, pp. 479-488, e ainda, TAYLOR, Bridget (2001), “HIV, Stigma and Health: Integration of Theoretical Concepts and the Lived Experiences of Individuals”, in Journal of Advanced Nursing, vol. 35, n.º 5, pp. 792-798.

448 Vid., na matéria, CÂNCIO, Fernanda (2006c), “Homossexuais Masculinos Já Podem Dar Sangue em Portugal”, in Diário de Notícias de 25 de Março de 2006, p. 21. Ver ainda,

“Homossexuais Já Podem Dar Sangue”, in Correio da Manhã de 23 de Maio de 2006, disponível em http://www.correiomanha.pt/noticiaImprimir.asp?idCanal=21&id=196150.

sublinha ter sido já retirado, da página de internet do IPS, o critério de exclusão

“homens que têm sexo com homens”449.

A presidir ao IPS há mais de uma década, ALMEIDA GONÇALVES foi várias vezes questionado sobre a interdição agora levantada, e confrontado com o facto de não haver nenhum comportamento sexual “exclusivo” dos “homens que têm sexo com homens”.

As suas justificações variaram entre a obediência a critérios internacionais, nomeadamente os americanos, e explicações baseadas, por exemplo, numa alegada

“tendência” dos homossexuais masculinos “para uma maior infidelidade nas relações”.

Hoje, admite que se tratou de uma estigmatização sem fundamento científico:

“Penso que isso se deveu ao facto de o problema da SIDA ter começado na comunidade gay americana”. E lembrou ainda que “Hoje, em Portugal e em quase todo o mundo, a principal via de infecção do HIV é heterossexual (…)”450. Apesar de já no decorrer deste trabalho, o IPS ter acabado com a sua política homofóbica, relativamente ao facto de os homossexuais não poderem serem dadores, devido ao facto de serem unicamente homossexuais, e não por outros motivos de maior, importa-nos mesmo assim apresentar uma breve resenha de todo este caso que teve reflexos na sociedade portuguesa.

449 Na informação para os potenciais dadores podíamos ler no item “Não deve dar sangue”: “Para a segurança do doente, não dê sangue se: sendo homem, teve contactos sexuais com homens”, passou a constar: “Para segurança do doente não dê sangue se: sendo homem ou mulher, teve contactos sexuais com múltiplos(as) parceiros(as)”. Vid., na matéria, INSTITUTO PORTUGUÊS DE SANGUE (2007), Pode Dar Sangue?, disponível na web em http://www.ipsangue.org/maxcontent-documento-60.html. Mais recentemente, em Julho de 2007, foi aprovado o Decreto-Lei n.º 267/2007 de 24 de Julho, que estabelece o regime jurídico da qualidade e segurança do sangue humano e dos componentes sanguíneos, respectivas exigências técnicas, requisitos de rastreabilidade e notificação de reacções e incidentes adversos graves e as normas e especificações relativas ao sistema de qualidade dos serviços de sangue, com vista a assegurar um elevado nível de protecção da saúde pública, transpondo para a ordem jurídica nacional as seguintes directivas: Directivas n.º 2002/98/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de Janeiro de 2004, Directiva n.º 2004/33/CE da Comissão, de 22 de Março, 2005/61/CE da Comissão de 30 de Setembro, e a Directiva n.º 2005/62/CE da Comissão, de 30 de Setembro. Assim, no capítulo VI, intitulado “Disposições relativas à qualidade e segurança do sangue”, e mais propriamente no ponto 1 do art. 19.º “Elegibilidade dos dadores” do referido Decreto-Lei, podemos ler que “Os serviços de sangue devem assegurar que são aplicados a todos os dadores os procedimentos de avaliação constantes do anexo VII.”. E também remetendo-nos para o anexo intitulado “Critérios mínimos de elegibilidade de dadores de sangue total e de componentes sanguíneos”, podemos ler no seu ponto 2.1, relativo aos critérios de suspensão definitiva de dadores de dádivas homólogas: e mais concretamente à questão do comportamento sexual que “Indivíduos cujo comportamento sexual os coloque em grande risco de contrair doenças infecciosas graves susceptíveis de serem transmitidas pelo sangue.”. Vid, na matéria, Decreto-Lei n.º 267/2007 de 24 de Julho, publicado no Diário da República, 1.ª série – n.º 141, de 24 de Julho de 2007, pp. 4696-4717, mais concretamente as pp. 4699 e 4708.

450 Vid., na matéria, CÂNCIO, Fernanda (2006d), “Homossexuais Masculinos Já Podem Dar Sangue em Portugal”, in Diário de Notícias de 25 de Março de 2006, p. 21.

Assim, o INSTITUTO PORTUGUÊS DE SANGUE (IPS), organismo público dependente do MINISTÉRIO DA SAÚDE, insistiu durante anos, apesar da argumentação em contrário das associações LGBT451, na política discriminatóriae isenta de critério médico que consistiu em interditar aos homossexuaismasculinos, a possibilidade de doação de sangue. De facto, as normas estipuladas pelo IPS iam nesse sentido, levando a que Centros de Recolha de Sangue e hospitais apresentassem aos dadores formulários que incluiam entre as interdições: “Práticas sexuais com pessoas do mesmo sexo (dador masculino).”.

Não se pode esquecer que ao contrário de outros critérios presentes, como

“práticas sexuais com múltiplos parceiros nos últimos 12 meses”, a homossexualidade não podia ser considerada em si, como uma prática de risco. A existência de tal restrição transmitia erradamente uma valorização discriminatória das práticas homossexuais masculinas – bem patente em declarações de 1999 do então presidente do IPS, JOSÉ

ANTÓNIO D´ALMEIDA GONÇALVES. Segundo o próprio: “Dizem que o homossexual masculino é muito instável (…), pelo menos 50% dos homossexuais são promíscuos” – e promovia assim, a ideia falsa de que as mesmas práticas sexuais de risco podiam ser menos arriscadas se praticadas por casais heterossexuais452.

451 Ver, por exemplo, Comunicado de Imprensa da Associação PANTERAS ROSA FRENTE DE COMBATE À LESBIGAYTRANSFOBIA (2004), Gota a Gota Perdemos Vidas, distribuído durante a Acção Zap de 28 de Junho de 2004. Foi nesse dia, que é considerado o dia mundial de luta pelos direitos LGBT, que as PANTERAS ROSA foram ao Parque da Saúde de Lisboa – complexo que reúne um centro de saúde, um hospital, uma escola de enfermagem e o Instituto Português de Sangue – para insistir na entrega simbólica, a este último, do sangue que, nas próprias palavras da associação “poderíamos ter doado e que milhares de cidadãos homossexuais poderiam doar aos hospitais portugueses, onde ele faz, como sabemos, toda a falta.”. Informação disponível na web em http://www.panterasrosa.com/accaoips.html. Ver ainda, ILGA-PORTUGAL (1999b), “Carta Aberta Sobre Dádivas de Sangue”, Comunicado de Imprensa de 18 de Abril de 1999, disponível na web em http://www.ilga-portugal.oninet.pt/glbt/gip/pdfgip/sangue/FaxIPSAbr99.pdf.

452 Vid., na matéria, Jornal Público de 20 de Abril de 1999. O IPS vai retirar a palavra

“homossexual” das causas da exclusão definitiva de dadores de sangue mas vai-a substituir pela expressão “homens que têm práticas sexuais com outros homens”. A Associação Ilga-Portugal e o Grupo de Trabalho Homossexual acusaram a 20 de Abril, a falta de base científica e de rigor nos critérios de exclusão de dadores de sangue e respectiva aplicação. Também a 23 de Junho encenam uma “performance” na Praça Duque de Saldanha para averiguar a aplicação de critérios de exclusão na doação de sangue. Em Janeiro de 2003, um utente homossexual é impedido de dar sangue no Hospital Garcia da Orta. O Ministério da Saúde não dá a devida resposta, prevista por lei, à reclamação n.º 17, de 6 de Janeiro de 2003, por parte do reclamante José Carlos Tavares Teixeira da Silva. A folha de esclarecimento consentido para dádiva de sangue, de preenchimento obrigatório para dadores no Serviço de Imunoterapia do Hospital Garcia da Horta em Almada, considerava como critério de exclusão de doação as “práticas sexuais com pessoa do mesmo sexo (dador masculino)”. Embora as práticas sejam variáveis de acordo com a instituição hospitalar, em Fevereiro de 2003, SIMÃO MATEUS, coordenador do

Também na página da internet do próprio IPS podia-se constatar os critérios para se ser ou não dador de sangue, critérios que orientavam os questionários feitos aos dadores, bem como os critérios para os médicos aceitarem ou não certa pessoa como dador. Incompreensivelmente um dos critérios para não se dar sangue era que “sendo homem, teve contactos sexuais com homens ou contactos bissexuais”. A questão é que o IPS entendia expressamente que a homossexualidade masculina (porque pelos vistos a feminina não constituia para este Instituto um problema) era em si um comportamento de risco, e devia por isso, qualquer homossexual ser rotulado como um “agente de risco para efeitos de doação de sangue”453.

GRUPO OESTE GAY, denunciou a recusa de dadores de sangue de orientação não heterossexual no Hospital de São José em Lisboa. Vid., na matéria, SANTOS (2004), p. 164, e ainda, SANTOS

(2005), p. 142. Também um utente homossexual é impedido de dar sangue no Hospital de São Marcos em Braga. Na sequência destes casos a Associação ILGA-PORTUGAL, e subscrita por outras associações LGBT, escreve uma Carta ao Ministro da Saúde a 11 de Março de 2003, onde solicita alguns esclarecimentos. A 1 de Julho de 2003, o Ministério responde às cinco questões colocadas pela AssociaçãoILGA-PORTUGAL. Vid., na matéria,ILGA-PORTUGAL (2003b),Carta ao Ministro da Saúde de 11 de Março de 2003, disponível na web em http://www.ilga-portugal.oninet.pt/glbt/gip/pdfgip/sangue/cartaministro.pdf, e ainda, ILGA-PORTUGAL (2003C), Resposta do Ministro da Saúde a 11 de Julho de 2003, disponível na em http://www.ilga-portugal.oninet.pt/glbt/gip/pdfgip/sangue/respostaministro.pdf.

453 Casos semelhantes aconteceram noutras partes do mundo. Daremos aqui apenas dois exemplos ocorridos a nível europeu. Assim, na Holanda, o Parlamento Holandês homologou uma decisão que exclui a dádiva de sangue e de esperma aos hospitais por homossexuais masculinos. Outro exemplo de atitudes homofóbicas vem de Itália, onde em Setembro de 2005, um cidadão italiano dirigiu-se ao Hospital Policlínico de Milão para doar sangue. Ao informar a enfermeira que era gay ficou impossibilitado de doar sangue. Apesar da enfermeira se ter recusado a realizar a colheita, o cidadão envolvido lembrou à enfermeira em causa, que a lei italiana não discriminava. Mais tarde, foi informado que a tal decisão foi baseada numa “política interna” do hospital, que não aceitava dadores homossexuais masculinos. Depois do cidadão discriminado ter comunicado o facto à comunicação social, o Ministro da Saúde Italiano, FRANCESCO STORACE, ordenou a realização de um inquérito ao referido hospital. Acabando por ordenar ao hospital, a adaptar-se rapidamente à lei italiana, mudando rapidamente as suas regulações no que respeita aos critérios de doadores de sangue, eliminando todas as referências da homossexualidade como factor discriminatório. O grupo italiano para os direitos gays - o ARCIGAY - louvou a atitude de STORACE, mas também considerou ser necessário levantarem-se responsabilidades para a prática ilegal em causa. Também nos Estados Unidos, Canadá, Austrália e noutros países, correntemente a CRUZ VERMELHA recusa gays que se propõem a doar sangue. Vid., na matéria, “Decisão do Parlamento Holandês – Homossexuais Masculinos Não Podem Dar Sangue”, in Jornal Público de 18 de Dezembro de 1998, p. 23, e ainda, THOMBERRY, Malcolm (2005), Italy Orders Hospital To Accept Gay Blood Donors, disponível na web em http://www.365gay.com/newscon05/09/092205italyBlood.htm. Ao contrário dos dois casos citados atrás, o Ministério da Saúde francês acabou formalmente, em Fevereiro de 2007, com a discriminação existente na doação de sangue por homens gays, ao retirar do questionário aplicado em todos os hospitais e centros de recolha, a pergunta “Teve relações homossexuais?”. A pergunta, cuja resposta positiva impedia a doação, foi substituída por “Teve relações sexuais de risco?”. Não foi definida ainda a noção de práticas de risco, mas a nova formulação da pergunta deverá cessar com a discriminação, ainda praticada na maior parte dos países, inclusivamente em Portugal. Um ano depois de ter sido alterada a lei que impedia os