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Disciplina negocial da constituição de superfície por sobrelevação

4.3 Negócio jurídico de sobrelevação

4.3.2 Disciplina negocial da constituição de superfície por sobrelevação

Após ultrapassar o estudo gradual que se iniciou na disciplina geral dos negócios caracterizados como constitutivos de direitos reais, passando obrigatoriamente pela definição de estrutura mínima existencial do negócio jurídico de direito de superfície, deságua o estudo nas cláusulas pertinentes à composição de negócio jurídico apto a conceder o espaço aéreo sobre edificação para fins de sobreelevação em direito de superfície.

Para se caracterizar um negócio jurídico de sobrelevação, é necessário que conste como objeto da declaração de vontade a concessão do espaço aéreo sobre edifício em direito de superfície, de dimensões especificadas, com a finalidade de se realizar edificação. A delimitação do objeto é o marco zero do negócio específico; a ele se moldarão as cláusulas cuja disposição legal exige ao negócio bem como as criadas pela vontade negocial.

A cláusula que delimita o objeto poderá determinar, em relação aos tributos, como será realizado o rateio dos encargos. Entretanto, nos termos dos arts. 31 e 34 do CTN, existe solidariedade passiva tributária entre proprietário e possuidor, ou titular do domínio útil, podendo o tributo ser cobrado de um ou de ambos.

Tal ocorre porque apesar de haver disposição expressa no Código Civil e no Estatuto da Cidade sobre a divisão dos encargos de natureza tributária, nenhum dos dois diplomas tem natureza de norma complementar, isto é, não podem alterar o disposto no supracitado art. 34 do Código Tributário Nacional.

Caso haja acordo entre as partes quanto à responsabilidade tributária, aquele que realizar o pagamento, poderá entrar com ação de regresso para reaver o valor que não era de sua responsabilidade contratual, uma vez que esta não pode ser oposta à Fazenda Pública nos termos do art. 123 do Código Tributário Nacional344.

A determinação da finalidade da edificação é de suma importância para que o negócio possa produzir efeitos, mas também para determinar as hipóteses em que haverá o seu desvio; tanto Código Civil como Estatuto da Cidade o elencam como justo motivo para dar ao direito de superfície constituído um termo anterior ao disposto no negócio.

Não obstante, o negócio pode conter cláusulas de responsabilidade vinculadas ao desvio de finalidade com consequências patrimoniais que ultrapassem a extinção da concessão, como a constituição daquele como fato gerador de reparação monetária ou de obrigação de fazer, podendo, inclusive, se determinar a demolição do parcialmente edificado.

Iniciando a composição do conteúdo da concessão para fins de sobrelevação pelos elementos determinados em lei, tem-se a determinação do prazo de duração da concessão. O caput do art. 21 do Estatuto da Cidade dispõe à parte negocial que se faça opção pela determinação ou indeterminação do prazo. Entende-se que, na hipótese de se optar pela determinação do prazo, este deverá restar estipulado.

O elemento seguinte, cuja disciplina é semelhante em ambos os diplomas, Código Civil e Estatuto da Cidade, a natureza da concessão, que deverá ser gratuita ou onerosa deve igualmente se fazer constar; sendo onerosa, deve haver especificação quanto ao meio de pagamento que poderá ser realizado à vista ou em parcelas.

344 REZENDE, op.cit. p. 93.

A contraprestação da concessão, quando determinada a ocorrer em parcelas, permite deliberações ainda mais específicas e moldadas à finalidade da obra. Na hipótese da finalidade da edificação sobrelevada ser a exploração econômica da mesma, não há objeção à disposição negocial que determine que a contraprestação devida pelo superficiário será quitada por meio de participação nos lucros por período igual ou inferior ao prazo determinado para a duração da concessão.

Em relação à extinção da concessão, a regra estabelecida pela norma é que a reincorporação da parcela concedida em direito de superfície não gera para o superficiário o direito de ser indenizado. Podem as partes, entretanto, estipular o contrário conforme ambos os diplomas. Pode, a título de exemplo, o proprietário eximir o superficiário de uma concessão onerosa para, ao final, incorporar o implante sem o pagamento de indenização pelo imóvel.

Ou, em hipótese contrária, o proprietário receber participação nos lucros de concessão onerosa cuja edificação sobrelevada tenha sido objeto de exploração econômica e, ao fim, indenizar o superficiário pela sobrelevação com valor indexado à porcentagem de valorização do imóvel por ocasião da construção realizada sobre o espaço aéreo do edifício.

Todo disposto nos parágrafos anteriores, à exceção das cláusulas de responsabilidade vinculadas ao desvio de finalidade, compõem o núcleo estrutural do negócio superficiário ao lado dos elementos inderrogáveis do tipo. A entrada dos elementos predispostos elementos no mundo jurídico, a princípio, tornará possível o exercício de um direito real muito mais maleável do que os demais tipificados.

Fora do âmbito dos elementos nucleares do negócio jurídico de sobrelevação em direito de superfície, poderão ser elaboradas cláusulas que guardem relação direta com a disciplina legal, como previamente citada a possibilidade da cláusula de responsabilidade por desvio de finalidade, ou estipulação de prazo para que se dê início à finalidade da concessão que é edificar sobrelevado ou cláusulas relacionadas à concessão de modo geral, mas que a ela não são inerentes.

Estas últimas tem o condão de inaugurar nova vinculação entre concedente e superficiário como conferir a este último o dever de guarda do edifício cuja laje utilizará. Isto é, impõe-se ao titular do direito de sobrelevar sobre edifício, o dever de zelar pela sua integridade através da instalação de câmeras de segurança e sua operação, a construção de um muro ou até a instalação de grades ou cerca elétrica.

O exercício do direito não guarda qualquer dependência com o dever exemplificado. Entretanto, a sua criação e disposição em cláusula de negócio real o eleva a uma categoria diversa da tradicional obrigação de fazer; a relação obrigacional se sedimenta nas posições jurídicas ocupadas pelos declarantes, isto é, não importa quem seja o titular do direito; aquele que é ou vir a ser o superficiário, deverá arcar com o ônus desta obrigação conforme disposto na declaração de vontade.

Às relações obrigacionais criadas em função da posição jurídica ocupada pelo proprietário e pelo superficiário como titulares de uma relação jurídica real, confere-se a qualidade de propter rem. Significa dizer, que a relação obrigacional constituída deriva de relação jurídica real e a ela é acessória; não se encontram obrigados os titulares dos direitos pessoalmente; são as suas posições jurídicas que se encontram vinculadas.

Vale chamar atenção para o fato de que a qualidade de obrigação propter rem só se obtém quando do registro do negócio no Cartório de Imóveis do negócio constitutivo de direito real, com a sua publicização, uma vez que qualquer outro tipo de obrigação constituída posteriormente terá natureza de crédito meramente obrigacional.

Após a delimitação do conteúdo do negócio jurídico de sobrelevação e sua entrada no plano da existência através do registro, considerando-se presentes todos os elementos essenciais do tipo, o negócio jurídico superficiário passará pelo crivo dos requisitos de validade, isto é, verificar-se-á se elementos propostos pelo negócio atendem aos critérios impostos pelo ordenamento jurídico.

O exame da validade inicia-se pelos aspectos extrínsecos do negócio; a declaração de vontade deverá ser resultado de manifestação de vontade, elaborada com consciência e sem má fé para passar pelo crivo do plano da validade. Não se admite a validade, nestes termos, de negócio simulado.

Ainda sobre a declaração de vontade, importa para o plano da validade que o agente que manifesta a vontade negocial possua capacidade para tanto. O negócio jurídico de sobrelevação, para atender aos requisitos de validade, deve ser realizado por agente que não possua restrições à sua capacidade de direito, ainda que este possua legitimidade para tanto.

A legitimidade do agente que emite a declaração de vontade no sentido de constituir negócio jurídico de sobrelevação também é de suma importância para que este seja considerado válido. Na hipótese de o agente concedente não ser identificado com o titular do direito de

propriedade, como na concessão do imóvel por cônjuge do proprietário cujo regime matrimonial seja o da separação total de bens, o negócio não ingressará no plano da validade.

A capacidade do agente também é requisito de validade do negócio jurídico, bem como a legitimidade. Isto é, ainda que uma pessoa realize negócio de transmissão de direito do qual não seja titular, este não estará apto a entrar no plano da validade por ausência de legitimidade. Não será diferente com o negócio celebrado por parte com restrição de capacidade por interdição.

A forma escolhida para a concretização do negócio jurídico de sobrelevação, para que o negócio seja válido, deve ser o da escritura pública, conforme prescrição legal que determina tal forma para a constituição dos direitos reais como regra. Caso contrário, este negócio estará fadado a não ultrapassar o plano da validade.

O objeto do negócio comporta três requisitos principais, estabelecidos por lei, para que seja válido: deve ser lícito, possível e determinado ou determinável. Em relação à licitude, o negócio de sobrelevação não deve contrariar a norma jurídica, só podendo tomar como objeto o espaço aéreo para fins de edificação sobreposta, sendo contra legem utilizar tal concessão para a implementação de horta hidropônica; tal conduta conduziria à invalidade da concessão.

A possibilidade do objeto do negócio de sobrelevação está diretamente ligada aos critérios estabelecidos pela norma urbanística municipal. Com a política de zoneamento e controle do planejamento sobre a verticalização de cada zona urbana, o objeto da concessão, qual seja, o espaço aéreo sobre edifício, não estará obrigatoriamente disponível para que se edifique novo implante sobreposto.

A título de exemplo, se o coeficiente do potencial construtivo da zona onde se localize o imóvel concedente for muito baixo, o espaço volumétrico remanescente sobre o edifício cuja laje se pretenda utilizar como base da nova edificação, não comporte o disposto na declaração de vontade. Desta forma, o negócio será invalidado pela impossibilidade do objeto.

O requisito de validade que exige que o objeto do negócio de sobrelevação seja determinado ou pelo menos determinável guarda relação com a própria especificidade deste negócio; é necessário que se faça constar na declaração de vontade que a concessão se destina à utilização do espaço aéreo sobre edifício e, a depender do coeficiente do potencial construtivo, caso este seja amplo, qual a proporção do espaço volumétrico será utilizada pelo superficiário.

Entretanto, a definição desta proporção, nos termos do negócio, poderá ser feita não apenas com a especificação do volume, mas também com a definição do número de andares ou a sua equivalência em metros, de forma a tornar o objeto da concessão o mais determinado quanto possível, ainda que se trate de coluna de ar sobre edifício.

Avançando o exame de validade ao conteúdo do negócio jurídico de sobrelevação, requer-se do negócio, que seja feita opção pelo regime de duração da concessão. O negócio que opte pelo prazo determinado, não atingirá sua validade se não especificar a duração exata da concessão. Desta forma, se a concessão do espaço aéreo tiver sido acordada pelo prazo de cinquenta anos, tal estipulação deverá se fazer constar sob pena de invalidar o negócio.

Em relação à onerosidade do negócio, quando optada pela declaração de vontade, deve fazer constar a forma de pagamento escolhida: à vista ou por parcelas. Assim como na determinação do prazo, a determinação da forma em que a contraprestação será realizada pode acarretar a invalidade do negócio na sua totalidade.

Existem outras cláusulas, entretanto, que são passíveis de serem nulificadas por desconformidade com a norma jurídica que estipula alguns elementos que obrigatoriamente fazem parte da esfera de disposição do superficiário, sem penalizar o negócio na sua integralidade.

Não será apta a ingressar no plano da validade cláusula do negócio jurídico de sobrelevação que determine a extinção da concessão por ocasião da morte do superficiário, vedando a transmissão hereditária da posição jurídica real do titular do direito constituído. Desta forma, ainda que o negócio chegue à instância final de produzir seus efeitos, cláusula estipulada neste sentido já haverá sido qualificada como nula no plano da validade.

Outro exemplo também pertinente à transmissão do direito de superfície constituído sobre o espaço aéreo é a disposição de cláusula que proíba os superficiário de transmitir a titularidade da posição jurídica ocupada à terceiro sem anuência do proprietário. É vedada à autonomia negocial a restrição aos poderes conferidos pela norma jurídica ao superficiário.

Tanto o Código Civil como o Estatuto da Cidade fazem menção expressa ao exercício do direito de transmissão do direito de superfície por transferência de titularidade propriamente dita ou por mortis causa de modo que, ainda que se façam constar cláusulas que coloquem à disposição da vontade negocial poderes conferidos pelo ordenamento, estas serão anuladas de imediato pelo exame da validade.

Em resumo, o negócio, caso preencha todos os requisitos de validade da declaração de vontade, entrará no plano da validade a despeito de cláusulas que possam sofrer anulação por desconformidade com o ordenamento, sem que prejudique a integridade do negócio validado. Resta, à análise do negócio jurídico constitutivo de sobrelevação, o exame no plano da eficácia. A eficácia do negócio jurídico de sobrelevação no plano real depende do ato do registro no Cartório de Imóveis. É através deste que a constituição do direito adquire a denominada oponibilidade, que é elemento fundamental à caracterização dos direitos reais. A eficácia decorrente desta última gera consequências para o regulamento dos bens e para a organização do sistema como um todo345.

Após o momento em que o negócio constitutivo de superfície por sobrelevação adquire a eficácia real, as demais disposições presentes na declaração de vontade, ao menos em tese, dispõem da possibilidade de produzir seus efeitos no plano do direito das coisas.

A primeira consequência da eficácia real do negócio constitutivo em comento, é a restrição do poder de dispor do proprietário do edifício cujo espaço aéreo foi concedido; bem como, torna-se eficaz a disposição que permite ao concessionário que edifique sobre o edifício nas condições estabelecidas no ato.

Em relação às próprias condições, na hipótese de se haver determinado prazo para que o superficiário inicie a sobrelevação no espaço aéreo e este não o faça por razão irrelevante, será eficaz a cláusula que faça menção à extinção da concessão ou o estabelecimento de multa como meio de impelir o superficiário a cumprir o que foi acordado.

Não obstante, outras cláusulas que prevejam obrigações acessórias propter rem também tornam-se aptas a produzir efeitos entre os titulares dos direitos reais, como o supracitado exemplo do dever de cuidado pelo edifício cujo espaço aéreo foi concedido, com a instalação de circuito interno de TV a ser realizada pelo superficiário. Na hipótese de haver descumprimento, poderá produzir seus efeitos a cláusula que imponha penalidades a este último.

Saindo da esfera dos efeitos produzidos pelas cláusulas dispostas pela autonomia negocial, a eficácia real conferida à constituição da sobrelevação sobre edifício permite que o titular deste direito tenha legitimidade para negociar a concessão de licenças perante a prefeitura

345 GONDINHO, op.cit. p.42.

municipal, que é um efeito decorrente da realidade do negócio constituído, dentre outras hipóteses.

Desta forma, é possível identificar os efeitos inerentes aos próprios elementos essenciais do tipo, dos efeitos decorrentes da complementação do conteúdo pela autonomia negocial, e, ainda, dos efeitos derivados dos pactos acessórios propter rem.

CONCLUSÃO

A investigação acerca do negócio jurídico constitutivo de sobrelevação em direito de superfície se mostra mais eficiente quando o estudo se inicia pela própria teoria do instituto superficiário, cujo exame de conteúdo apresenta-se indispensável para a compreensão do que se pode denominar como “núcleo duro” do direito, isto é, dos elementos que lhe constituem e que lhe são inerentes.

O estudo do direito de superfície, ultrapassando a barreira do tempo e dos ordenamentos históricos, chega ao ponto crítico da sua introdução no ordenamento jurídico brasileiro, cujo delineamento e interpretação sistemática dos dispositivos legais que lhe foram destinados no Código Civil e no Estatuto da Cidade auxiliaram na composição de um perfil do direito de superfície constituído sobre propriedade urbana.

Desta forma, compreende-se que a concessão urbana constitui um direito de superfície que admite a constituição por tempo indeterminado, a despeito das acertadas críticas à descaracterização da natureza da concessão que é a temporariedade, a concessão de parcelas destacadas da propriedade ou de edifícios preexistentes (cisão), bem como a instituição de gravames como a hipoteca, e a transmissão inter vivos ou causa mortis.

A interpretação sistemática da normativa superficiária com outros conceitos sedimentados na norma civilística, como a tridimensionalidade da propriedade, contribuíram diretamente para que se aviltasse a sobrelevação como modalidade de concessão superficiária no âmbito urbano.

De fato, várias circunstâncias compuseram a interpretação da sobrelevação como plenamente possível no direito brasileiro; a supracitada interpretação sistemát ica, já consequência da abordagem multidisciplinar e conflitante do direito de superfície – uma norma

geral e de caráter privado e outra especial e de matéria de ordem pública – bem como a própria técnica legislativa que conferiu abertura ímpar à caracterização de um direito real.

Diversas foram as implicações práticas discutidas acerca da constituição do direito de superfície por meio de sobrelevação; a sua relação próxima com o regime da propriedade horizontal demonstrou a sua dependência residual deste regramento, sem o qual não seria possível a harmonização entre propriedade plena e propriedade superficiária sobrelevada.

Outro aspecto abordado foi a não rara confusão da sobrelevação com a subsuperfície, onde restou diagnosticado que a origem da comparação estaria no instituto da subenfiteuse, que de modo algum se assemelha à sobrelevação, uma vez que esta última constitui direito novo sobre propriedade plena; não consiste na subdivisão de superfície preexistente. Ademais, a constituição de superfície, no direito brasileiro, é faculdade exclusiva do proprietário, não havendo permissão legal para a constituição daquele direito por superficiário.

Tratou-se de diferenciar, inclusive, a sobrelevação do direito de servidão, cujo objeto pode vir a ser o mesmo, qual seja, o espaço aéreo sobre edifício. Utilizando como caso de exemplo um parecer do professor Ricardo Pereira Lira, elaborado nos primórdios da entrada do direito de superfície no ordenamento pátrio, foi construída argumentação no sentido de ser a concessão do espaço aéreo em direito de superfície para fins de sobrelevação, essencialmente de caráter ad aedificandum, enquanto que a servidão exigiria conduta oposta, a de não edificar. Compreende-se, desta forma, que o grau de especificidade da modalidade da concessão de sobrelevação exige o estudo aprofundado das suas circunstâncias negociais particulares, de onde se partiu da análise dos elementos gerais do negócio jurídico, passando-se então para os aspectos do negócio jurídico real e o estudo da tipicidade antes de analisar os elementos pertinentes à constituição da sobrelevação.

O exame da tipicidade deixou claro que o ordenamento brasileiro, apesar de ter adotado o sistema do numerus clausus, possui uma tipologia aberta dos direitos reais; o direito de superfície propõe à autonomia negocial um amplo espaço de determinação do conteúdo da