• Nenhum resultado encontrado

A Superfície no direito luso-brasileiro

O direito português teve sua estrutura definida no século XII, período em que ocorreu a reconquista da Península Ibérica. Seguindo a tendência de toda Europa, Portugal incorpora o

68 LIMA, loc.cit.

69 LIMA, op. cit. p.51. 70 Ibid., p.51.

71 Ibid., p.53. 72 Ibid.. p.54.

direito romano justinianeu, baseando seu ordenamento em uma compilação do direito romano, leis esparsas, normas consuetudinárias73.

As Ordenações Afonsinas foram a primeira codificação portuguesa e primeira da Europa após a Idade Média, publicadas entre 1446 e 1447 e vigentes até 1521. Teve como fontes as Leis das Partidas de Castela, os direitos romano, germano e canônico, bem como costumes nacionais, dentre estes os das cidades e das vilas.74

Apesar do movimento da codificação já representar uma transição do direito plural local para o monista, eram utilizadas as glosas de Acúrsio e Bártolo quando havia necessidade de preencher as lacunas do direito privado. De acordo com Pontes de Miranda, “a noção e os direitos de soberania, que eram precisos, foram auto enxertados do direito romano”.75

Neste ordenamento, o direito de superfície vem absorvido pelos institutos do arrendamento e da enfiteuse, desprovido de autonomia, podendo-se responsabilizar o direito difundido pelos glosadores, provenientes de Roma.76

As Ordenações Manuelinas, vigentes de 1521 a 1603, não trouxeram muitas modificações em relação às Afonsinas. Basicamente, a codificação adequou-se às leis posteriores, eliminou a dissimetria social, dentre outras providências.77 Não trouxe, entretanto, qualquer inovação em matéria de direito de superfície78.

Em 1603, entram em vigor as Ordenações Filipinas. Tal codificação também utilizou subsidiariamente os direitos romano e canônico, bem como as opiniões de Acúrsio e Bártolo79.

Sua vigência se estendeu até o início da vigência do Código Civil Brasileiro em 1916, no que diz respeito ao direito das coisas80.

Significa dizer, que o direito de superfície não foi mencionado ou previsto em qualquer dessas Ordenações. O regime de sesmarias81, por sua vez, era utilizado desde o princípio da colonização no Brasil, uma vez que a propriedade das terras pertencia à Coroa Portuguesa.

73 ANDRADE, Marcus.,op.cit.. p. 45.

74 MIRANDA, Pontes de. Fontes e evolução do direito civil brasileiro. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2. ed., 1981.

p. 38.

75 Ibid.p.39.

76 LIMA, op.cit. p.58. 77 MIRANDA, op. cit. p. 40. 78 MAZZEI, op. cit., p. 103. 79 MIRANDA, op.cit. p. 41.

80 ANDRADE, Marcus., op. cit., p. 47.

81 Em relação ao regime das sesmarias no Brasil vide VARELA, Laura Beck. Das Sesmarias à propriedade

O Direito português foi, sem dúvida, de suma importância para o desenvolvimento do direito brasileiro. As leis portuguesas, no período compreendido entre 1500 e 1822, eram aplicadas no Brasil praticamente da mesma maneira que em Portugal.

Em 9 de julho de 1773, o Marquês de Pombal edita lei que, em virtude da submissão do ordenamento brasileiro ao português, passa a vigorar também no Brasil e, de acordo com Mazzei, a doutrina considera contemplada por esta o direito de superfície, ainda que incipiente e sem denominação específica82.

Para o autor, tal norma foi apta a coibir o comportamento abusivo de proprietários, em relação aos enfiteutas ou superficiários que exploravam suas terras, em especial no que dizia respeito à alta cobrança, e equilibrar a relação existente entre concedente e concessionário83.

Importante frisar que, mesmo com a independência política em 1822, a legislação portuguesa continuou vigente, uma vez ratificada de forma integral. A lei de 20 de outubro de 1823 determinou que as Ordenações Filipinas, leis e decretos promulgados pelos reis, continuariam vigentes no Brasil até que fosse elaborado um novo Código Civil.84 Curiosamente, as Ordenações Filipinas continuaram aqui vigentes, mesmo após Portugal ter seu próprio Código Civil.

Ocorreu que, diante do impasse da ausência de Codificação necessária ao desenvolvimento do direito brasileiro sem as amarras do direito lusitano e perante uma gama de leis esparsas, optou-se pela Consolidação, preliminarmente ao processo de Codificação. Restou Teixeira de Freitas incumbido da tarefa, que elaborou a Consolidação das Leis Civis85.

A Consolidação das Leis Civis, de 1857, em seu art. 52, §2º tratava dos bens de domínio do Estado de madeira reservada. Neste dispositivo havia indicação da aplicação do direito de superfície. Significa dizer que o Estado detinha o direito real de superfície para exploração do pau-brasil, bem como de outros tipos de madeiras, em qualquer imóvel que estivesse destinado à sua extração. Isso porque, independente das árvores estarem em terrenos particulares, faziam parte do domínio estatal, titular do monopólio86.

82 MAZZEI, 2013. p. 107-108. 83 Ibid., p. 108.

84 MIRANDA, 1981. op.cit., p.66 85 Ibid. p. 80.

Porém, em 1864, a lei 1.237 veio reformar a legislação hipotecária e estabelecer as bases das sociedades de crédito real. O direito de superfície foi tacitamente revogado por não constar no rol de direitos reais definido nesta norma87.

Após a ruptura do vínculo político entre Brasil e Portugal, ambos traçaram caminhos diversos em relação ao direito de superfície, tendo o ordenamento brasileiro banido o instituto enquanto a antiga metrópole adotou-o como instrumento para resolver os problemas habitacionais através da introdução do artigo 2.028 no Código Civil de 1867 e em um segundo momento pela lei n. 2.030 de 22 de junho de 1948.

Ainda segundo o distanciamento dos dois ordenamentos no que tange o direito de superfície, comenta Mazzei que, uma vez aceito o direito de superfície em Portugal através de interpretação ampla do artigo 2.038 do Código de Seabra, “o direito de superfície se moldou para ser peça útil de fomento à construção para habitação urbana, destino diferenciado em nossa nação”88.

Em 1900, Clóvis Beviláqua apresentou o seu Projeto do Código Civil, não tendo sido relacionado nele, o direito de superfície como direito real. A comissão Revisora, apesar disso, resolveu incluí-lo no rol89. Mesmo com a iniciativa de tentar reestabelecer o instituto no ordenamento brasileiro, esta acabou sendo em vão. Durante a tramitação do Projeto no Congresso Nacional, a Comissão Especial da Câmara dos Deputados não viu necessidade em restaurá-lo, eliminando-o do projeto que se tornou o Código Civil de 191690.

Mazzei se posiciona no sentido de que o Projeto Revisto era muito mais rico que o atual Código Civil no tocante ao direito de superfície:

Vale dizer que o Projeto Revisto se preocupara em regular algumas questões da relação superficiária que não foram abordadas no atual Código Civil [2002] e que, em nossa opinião, poderiam estar previstas na codificação vigente, em vista dos embaraços que o vácuo legislativo pode causar. Nesse sentido, no artigo 827, havia a limitação do prazo de cinquenta anos para a concessão (com renovação de igual prazo); e, nos artigos 830 e 831, fazia previsão quanto aos credores de hipoteca e aos efeitos da servidão.91

87 ANDRADE, Marcus. op.cit. p. 48. 88 MAZZEI, op.cit. p. 111.

89 ANDRADE, Marcus., 2009. p. 49. 90 MAZZEI, op.cit. p. 113.

Com o decorrer dos anos e após várias alterações no diploma, surgiu a necessidade de elaborar um novo Código Civil. A redação do projeto coube à Orlando Gomes e a sua coordenação a Caio Mário da Silva Pereira. O anteprojeto apresentado previa o direito de superfície elencado entre os direitos reais limitados, porém, acabou recusado pela Comissão Revisora e não foi levado adiante92.

Por sua vez, o Código Civil português de 1966, vigente, previu o direito de superfície com riqueza de detalhes. A disciplina do instituto está presente a partir do artigo 1.524 até o 1.541. O primeiro artigo define o direito de superfície como faculdade de construir ou manter construção ou plantação em terreno alheio e admite as concessões temporária e perpétua93.

Os artigos seguintes, ainda dentro das disposições gerais, preveem: a limitação da utilização do subsolo às obras que da superfície que lhe sejam inerentes (1.525, item 2), a aplicação das regras da propriedade horizontal quando da construção de edifício (1.526) e a concessão de superfície por pessoas públicas, que deve reger-se por legislação especial e subsidiariamente pelas regras do Código Civil (1.527)94.

No capítulo referente à constituição, tem-se que o direito de superfície pode ser constituído por meio de contrato, testamento, usucapião ou cisão de obras ou árvores preexistentes (1.528). Prevê o dispositivo seguinte a constituição de servidões necessárias ao exercício do direito de superfície, que deve ser acordada (1.529)95.

O terceiro capítulo trata dos direitos e deveres do superficiário e do proprietário concedente. Em relação ao pagamento, é permitido às partes convencionar a sua forma, que poderá ser prestação única, anual, perpétua ou temporária (1.530). Limita, porém, o pagamento a ser realizado somente em dinheiro e concede ao proprietário o direito de, no caso de haver mora, a exigência do triplo das prestações (1.531)96.

Prevê, ainda, que o uso e a fruição da superfície serão do proprietário enquanto não sejam iniciadas as obras ou plantação (1.532), bem como o uso e a fruição do subsolo, desde que não causa prejuízo ao superficiário, hipótese em que será responsabilizado (1.533).

92 ANDRADE, Marcus. op.cit. p. 50. 93 Codigo Civil português.

94 Código civil português. 95 Código Civil português 96 Código Civil português

Quanto à transmissibilidade do direito de superfície, o Código Civil português admite a transferência do direito por ato inter vivos ou por causa mortis (1.534). O direito de preferência é exercido pelo proprietário do solo, quando houver venda, porém, este ocupa o último lugar em relação aos titulares de outros direitos reais constituídos, a menos que o prédio seja enfitêutico, hipótese em que será o primeiro a exercer o direito de preferência (1535)97.

Por fim, o quarto capítulo disciplina a extinção do direito de superfície e apresenta como hipóteses a não conclusão da obra ou não realização da plantação no prazo estipulado ou, na ausência deste, no prazo de dez anos, se não for reconstruída ou renovada a plantação nos mesmos prazos quando houver destruição, pelo decurso de prazo, pela confusão dos titulares, pelo desaparecimento do solo ou expropriação (1.536).

O art. 1.537 prevê a inexigibilidade da obrigação do pagamento das parcelas anuais caso estas não ocorram pelo prazo de vinte anos, adquirindo o superficiário a propriedade apenas se houver usucapião ao seu favor. Na extinção por decurso de prazo, a regra é que o superficiário seja indenizado, podendo ser estipulado em contrário pelas partes (1.538).

A disposição acerca da extinção dos direitos reais constituídos sobre a superfície difere da maioria dos ordenamentos pesquisados pelo grau de especificação, porém, não deixa de ser uma solução bem elaborada que facilita o exercício do direito de superfície em sua totalidade. A extinção do direito de superfície no prazo estipulado extingue os direitos reais constituídos sobre ele. Havendo indenização a ser recebida pelo superficiário, os direitos transferem-se para ela (1.539)98.

Os direitos reais que estejam onerando o solo no momento em que o direito de superfície se extingue, se estenderá à construção ou árvores que estejam sobre ela (1.540). Na hipótese de extinção do direito de superfície perpétuo ou temporário antes do termo, os direitos reais constituídos continuarão gravando os direitos separadamente como se não tivesse se operado a extinção99 (1.541).

No ano de 1969, foi constituída a Comissão Elaboradora e Revisora do Código Civil, sob a coordenação de Miguel Reale100. O direito de superfície não constava no anteprojeto,

97 Código Civil português

98 Código civil português 99 Código Civil português

sendo incluído no rol de direitos reais de maneira oficial em 1975, quando houve a transformação em Projeto de Código Civil que deu origem ao Código Civil de 2002101.

O Estatuto da Cidade entra em cena primeiro que o Código Civil vigente, em 2001, trazendo a bojo o direito de superfície, logo em seguida disciplinado pelo Código Civil de 2002, que apesar das divergências com aquele diploma, consolida o retorno e a importância do instituto no Ordenamento Jurídico Brasileiro.