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Tipicidade e autonomia da vontade

Betti define a autonomia privada “como autoridade e como potestas, de auto- regulamentação dos próprios interesses e relações exercidas pelo próprio titular deles”307.

Segundo o autor, o negócio jurídico seria uma manifestação originária da autonomia da vontade a quem o direito vincula a criação e modificação de relações jurídicas.

Betti identifica, na autonomia, duas funções diversas: autonomia como parte integrante da própria ordem jurídica que a reconhece como fonte de direito subordinada e dependente, e autonomia como pressuposto e causa geradora de relações jurídicas já disciplinadas no ordenamento jurídico. Entretanto, apenas a segunda função é reconhecida no direito privado308. A amplitude do auto regramento varia em razão direta da indeterminação das normas. Havendo indeterminação, o suporte fático é até certo ponto livre, não necessitando ficarem as pessoas limitadas a tipos negociais preestabelecidos. O mesmo ocorre se não há prescrição do conteúdo eficacial da relação jurídica; ficará a cargo das partes309.

304 AZEVEDO, op.cit., p. 96. 305 Ibid., p. 94. 306 Ibid., p. 102. 307 BETTI, op.cit., p. 97. 308 Ibid., p. 98. 309 MELLO, op.cit., p. 149.

As hipóteses de indeterminação são reconhecidas no exame do campo do direito das obrigações, onde as formas negociais podem ser livres ou, ainda que reguladas, são por normas de caráter dispositivo, o que confere amplo espaço aos agentes para criação de negócios de modalidade não prevista pelo ordenamento como forma de adequar a declaração de vontade às necessidades específicas do negócio310.

No campo do direito das coisas, as normas jurídicas admitem apenas a escolha da categoria jurídica, preestabelecendo o conteúdo das relações. A lei delimita o conteúdo mínimo do negócio, não sendo da competência das partes a restrição artificial do conteúdo do negócio, despindo-o daquilo que lhe é típico.

Segundo Marcos Bernardes de Mello, “havendo um tipo negocial definido em seu conteúdo, cogentemente, não é possível aos figurantes modifica-lo para furtar-se à incidência legal, sob pena de nulidade”311. A afirmação de Mello é correta quando se trata do negócio jurídico em perspectivas gerais.

Entretanto, entrando na seara do negócio jurídico real, em virtude do princípio da tipicidade, a modificação do conteúdo especificado em lei para o direito real que se pretende constituir incorre na inexistência do negócio, não em nulidade. A autonomia privada ou ato regramento da vontade encontra, no âmbito do direito das coisas, limitações312 pela tipicidade e pelo numerus clausus.

Numerus clausus significa a proibição, pelo ordenamento jurídico, de o particular criar através do negócio jurídico direito real não tipificados em lei313. Sistema oposto é o numerus

apertus, que permite à autonomia negocial a criação de novas situações jurídicas.

Tipicidade, por outro lado, impõe que a constituição dos direitos deve respeitar o conteúdo estrutural dos poderes conferidos pelo ordenamento. Tal necessidade de respeito decorre do conteúdo típico dos direitos reais previstos em lei314.

Para Vanzella, a identidade legal do numerus clausus no ordenamento pátrio vai além da enumeração literal dos direitos reais. O regime jurídico também impõe preceitos impositivos

310 MELLO, op.cit. p. 149. 311 Ibid.,, p. 172.

312 Em relação à autonomia da vontade, o papel da ordem jurídica é de limitador e disciplinador. BETTI, op.cit.,

p. 168.

313 VANZELLA, op.cit., p. 112. No mesmo sentido:

GONDINHO, André Pinto da Rocha Osório. Direitos reais e autonomia da vontade: o princípio da tipicidade dos direitos reais. Rio de Janeiro: Renovar, 2000., p. 16, ASCENSÃO, 1968. op.cit., p. 104

e proibitivos aos contratantes315. Segundo o autor, impõe aos contratantes que recorram a determinados tipos de negócio para que obtenham os efeitos desejados e proíbe o estabelecimento de certas regras negociais por meio da autonomia da vontade316.

Ocorre, entretanto, uma confusão entre as características do numerus clausus com a tipicidade. Elucida Gondinho: enquanto o princípio da tipicidade se refere ao conteúdo estrutural do direito real e, portanto, à modalidade do seu exercício, o princípio do numerus clausus diz respeito única e exclusivamente à fonte de direito real”317.

Desta forma, não se trata de expansão da figura do numerus clausus, mas da existência de um sistema que regula o conteúdo do direito real, tipificando condutas específicas que devem ser observadas quando da manifestação de vontade. Em resumo, o que caracteriza a tipificação é a previsão de características essenciais de determinada realidade jurídica na lei318.

Tanto é verdade, que a criação de novo direito real, pelo legislador, o único com legitimidade para tanto, pode não se configurar como tal se não for compatível com o princípio da tipicidade, que representa a escolha de situações relevantes para a vida social, dentre tantas outras possíveis, para tipificar319. Desta forma, a tipicidade dos direitos reais se apresenta como uma limitação à criação de novos direitos reais por parte do legislador.

No direito brasileiro, o exemplo mais recente de criação de direito real “novo” ocorreu através da promulgação da Medida Provisória 759, que tomou como objeto a presentemente estudada sobrelevação. Sob a nomenclatura de “direito de laje”, a modalidade de direito de superfície foi inserida como direito real no art. 1225 do Código Civil.

O problema da inserção da sobrelevação como direito real é que esta realidade já se encontra tipificada no ordenamento jurídico como direito de superfície, tendo sido, inclusive, objeto do Enunciado 568 da VI Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, o que de pronto já esvazia o dispositivo legal em relação à tipicidade.

O professor Roberto Paulino critica com veemência o conteúdo da medida provisória no que tange à disciplina da sobrelevação como novo direito real e afirma que “se o que se queria

315 VANZELLA. op.cit., p. 117. 316 VANZELLA, loc.cit. 317GONDINHO, op.cit., P. 16. 318 Ibid., p. 84. 319 Ibid., p. 86.

era ressaltar a possibilidade do direito de superfície por sobrelevação, bastava para tanto inserir um artigo no título V do livro do direito das coisas”320.

Desta forma, mesmo que um ordenamento jurídico adote o sistema do numerus clausus, é possível que a falta de conhecimento técnico do legislador acerca das figuras já tipificadas como direitos reais possa levar a situações em que uma mesma situação seja tipificada em duplicidade, trazendo instabilidade ao sistema.

Em outros ordenamentos jurídicos, entretanto, vigora o sistema do numerus apertus, onde a autonomia da vontade dispõe da possibilidade de criar novos direitos reais, sendo o espanhol um deles. A lei hipotecária espanhola admite a inscrição dos títulos constitutivos de quaisquer outros direitos reais321.

As críticas mais comuns ao sistema do numerus apertus dos direitos reais consistem na afirmação de que o sistema aberto dificultaria o funcionamento dos registros, além de possibilitar a constituição de situações jurídicas prejudicais à ordem econômico-social. Desta forma, a criação indiscriminada de direitos reais traria prejuízo para terceiros e para a segurança das relações jurídicas322.

Para Vanzella323,

O numerus clausus dos direitos reais é, destarte, um regime jurídico de tutela dos potenciais adquirentes: disciplina a capacidade jurídica, cuidando dos sujeitos de direito que querem exercer o seu poder de adquirir e não dos sujeitos de direito que querem lesar direitos subjetivos alheios

Em outras palavras, o numerus clausus seria o meio de disciplinar a multiplicação das posições jurídicas subjetivas passivas absolutas e da consequente reconfiguração do poder de adquirir dos futuros adquirentes; o autor ainda defende que, por essa razão, “existe um numerus clausus de tipos de titularidades que em outro não se resolve, senão no numerus clausus dos contratos de disposição”324.

320 ALBUQUERQUE JÚNIOR, http://www.conjur.com.br/2017-jan-02/direito-laje-nao-direito-real-direito- superficie. Acesso em 13/01/2017

321 GONDINHO, op.cit., p. 53. “La normativa española no es categórica a la hora de determinar el sistema de

derechos reales vigente, lo que trajo enormes disputas doctrinarias durante muchas décadas, aún no totalmente aquietadas. El Código Civil guarda silencio. La Ley Hipotecaria y su Reglamento son ambíguos”. MARISCAL, Leopoldo L. Peralta. Análisis crítico del sistema español de numerus apertus en matéria de derechos reales. Revista Crítica de Derecho Inmobiliario, n. 751, págs. 2665 a 2734. p. 2670.

322 GONDINHO, op. cit., p. 48. 323 VANZELLA, op.cit., p. 185. 324 VANZELLA, op.cit., p. 202.

Desta forma, no sistema do numerus apertus, não haveria mecanismo de controle suficiente para impedir a instabilidade nas relações jurídicas reais. Segundo o autor, o numerus clausus seria garantia institucional da propriedade no formato disposto pela norma325. Tal

raciocínio, entretanto, não se sustenta.

Primeiramente, não é viável um sistema de numerus clausus aos negócios de disposição, tendo em vista que a declaração de vontade se adequa ao tipo, de modo que se o tipo admite mais de uma modalidade de constituição, assim também será para o negócio constitutivo.

Gondinho, quando aborda a experiência espanhola com o numerus apertus, identifica que a jurisprudência espanhola se mostra favorável ao sistema, mas que há bastante rigor aplicado ao exame das inscrições de direitos reais solicitadas326. O princípio da autonomia da vontade, apesar de consagrado no ordenamento jurídico espanhol, conhece limitações e vedações nas mais variadas formas.

Diez-Picaso e Gullon extraíram dos julgados do Tribunal Supremo Espanhol requisitos para o registro de direito real novo, quais sejam, constituição de uma relação jurídica à semelhança das criadas por ocasião dos direitos reais preexistentes, conformidade com a ordem pública, cumprimento dos requisitos de forma exigidos para registro e causa relevante no aspecto econômico-social327.

Deve-se, portanto, reconhecer a dificuldade prática da criação de figuras totalmente novas no âmbito do direito das coisas ao invés de subtipos no ordenamento espanhol. A impressão do autor é que a autonomia da vontade na Espanha, na prática, só encontra espaço para a modificação dos protótipos reais já existentes e admitidos pela lei espanhola328.

Desta forma, algumas críticas em relação à ausência de controle sobre a constituição de novos direitos reais no sistema de numerus apertus não passam de infundados receios; de fato, o sistema de numerus clasus aliado à tipicidade confere maior segurança jurídica no tráfico patrimonial, entretanto, o sistema de numerus apertus não é falho e dispõe de outros

325 “Em síntese, o numerus clausus dos direitos reais nasce da consciência de que a regulação do poder de dipor –

especialmente o constitutivo – e, logo, do objeto e do modo do tráfico é arrebatada à autonomia contratual, é competência exclusiva de uma estrutura global de coordenação, que se concentra historicamente no estado- legislador; é, neste sentido, uma garantia institucional da propriedade tal qual definida em lei (...)”. VANZELLA, op.cit., p. 152

326 GONDINHO, op.cit., p. 74. 327 Ibid., p. 74-75.

mecanismos que não norma cogente para limitar a autonomia da vontade na criação de novos direitos que não tenham pertinência.

No numerus clausus, os contratos de disposição recorrem necessariamente a um tipo determinado imposto pelas normas, geralmente imperativas, que regulam o conteúdo legal do tipo escolhido329. Desta forma, os negócios jurídicos de disposição seriam de tipo fixo, onde a

norma cogente preenche praticamente todo o conteúdo do negócio, deixando pouco espaço à estipulação de cláusulas acidentais330.

Segundo Vanzella, os elementos naturais do negócio fazem parte deste por disposição legal. Quando cogentes, como no negócio jurídico real, não são passíveis de afastamento pela declaração de vontade negocial.

O negócio de disposição, portanto, se forma mediante elementos essenciais especiais, elementos naturais predominantemente cogentes e elementos acidentais excepcionalmente permitidos331. Pode-se utilizar como exemplo de elemento natural do tipo da superfície, a sua transmissão hereditária, cujo afastamento não é autorizado.

A admissão do numerus clausus e da tipicidade, entretanto, não impede modificações por meio de autonomia da vontade. Segundo Ascensão, “a tipicidade taxativa não implica um monopólio legal na qualificação de direitos reais. O intérprete pode incluir nesta categoria qualquer situação, desde que nela encontre os seus traços essenciais”332.

Desta forma, seria possível à autonomia da vontade atuar, na elaboração do conteúdo do direito real, desde que respeitados os elementos impostos pelo princípio da tipicidade. Ou seja, apesar de não ser possível variar a disposição legal do direito real, é lícito introduzir ao conteúdo novos elementos333.

Depreende-se que o direito brasileiro, apesar do sistema rígido à criação de novos direitos reais a partir da autonomia da vontade, ainda assim não se enquadra no tipo fechado, que é aquele cuja norma propõe todos os elementos juridicamente relevantes do ato negocial cujo objeto é o direito subjetivo previsto pelo tipo.

329 VANZELLA, op.cit., p.55. 330 VANZELLA, op.cit., p. 109. 331 VANZELLA, op.cit., 101. 332 ASCENSÃO, 1968, op.cit., p. 112. 333 ASCENSÃO, op.cit., p. 307.

Não seria equivocado dizer que o sistema brasileiro se adequa mais ao tipo aberto; o ordenamento tipifica tudo o que é fundamental à declaração de vontade constitutiva de direito real, mas não elimina a inserção de mais elementos considerados, pela autonomia da vontade, como relevantes à concretização da disposição334.

A interpretação extensiva é admissível no direito das coisas nomeadamente na interpretação das descrições legais dos direitos reais335. Ascensão admite a caracterização de subtipos como manifestação da tipicidade, fazendo alusão ao usufruto e à servidão como figuras gerais cujos tipos suportam inserção de novos elementos que criam novas modalidades do mesmo direito.

Em relação ao direito de superfície, de maior relevância para o estudo, é um direito extremamente compatível com a tipologia aberta. A própria normativa confere uma abertura à vontade negocial ao tipo que confere à autonomia da vontade implementar ao conteúdo do negócio constitutivo de superfície um grau de especificidade ímpar.

Ascensão classifica a superfície como direito complexo pois englobaria, na titularidade do superficiário o direito de implantar e direito de propriedade sobre a obra implantada, enquanto que o fundeiro tem a propriedade do solo, direito ao cânon superficiário se onerosa a concessão e expectativa de aquisição da obra ao término daquela336.

O direito de superfície não seria, entretanto, uma figura coletiva, abrangendo vários direitos reais autônomos; seria um composto abrangido pela tipologia taxativa, tendo em vista que os direitos que o compõem não têm autonomia caso sejam desvinculados337.

A tipologia aberta dos direitos reais traz como consequência a definição de espécies de direitos reais que não estão previstos em lei338. O próprio negócio jurídico de sobrelevação

denota a abertura da tipicidade em sede de direito das coisas por constituir um direito de superfície cuja inserção de novos elementos no conteúdo do tipo deu origem à uma concessão mais específica.

A negociação do espaço aéreo para fins de sobrelevação em direito de superfície decorre de interpretação extensiva do §1º do art. 21 do Estatuto da Cidade, quando este permite ao

334 ASCENSÃO, 1968, op.cit.,. 304 335 Ibid., p. 117. 336 Ibid., p. 196-197. 337 Ibid., p. 200. 338 GONDINHO, op.cit., p. 90.

agente negocial que determine na declaração de vontade constitutiva da superfície qual seria a abrangência da concessão, uma vez que o tipo considera que as três dimensões da propriedade estão inseridas no objeto.

Para Mazzei, essa premissa indica que o Código Civil adota a tipicidade com certa margem de flexibilidade339. Desta forma, a tipicidade que define o conteúdo dos direitos reais

no Brasil não seria taxativa; mas definiria o conteúdo mínimo existencial dos tipos consagrados pelo numerus clausus como translativos ou constitutivos de direito das coisas.

Se discute, ainda, o papel das situações propter rem na modelação do conteúdo do direito real a ser constituído. Ascensão fala em situações propter rem para abranger outras hipóteses que não apenas as obrigacionais.

Na obrigação propter rem, o sujeito ativo ou passivo desta modalidade de vínculo será determinado pela titularidade da relação jurídica de direito real; esta decorre do título constitutivo do direito real340. Desta forma, a obrigação propter rem seria uma situação em sentido restrito.

Entretanto, de acordo com Ascensão, tais situações em sentido restrito não interessam à tipologia dos direitos reais ou não são permitidas à autonomia da vontade sua disposição. Entretanto, as relações jurídicas reais são genericamente permitidas, o que, segundo o autor, é evidência de que os tipos de direitos reais são abertos341.

Quando há autorização legal para a constituição de relações propter rem, esta será apta a modelar conteúdo e exercício do direito real342. As situações integram-se no conteúdo dos

direitos a que são inerentes e serão responsáveis por projetar no plano da eficácia os efeitos intendidos pela declaração de vontade através do tipo real.

Nas palavras de Ascensão, “sem alterar o desenho essencial, se acrescentam ao tipo elementos juridicamente relevantes. No domínio dos direitos reais, isso realiza-se através da introdução de um conteúdo, acidental, que se concretizará pela substituição de regras supletivas343”. 339 MAZZEI, op.cit., p. 253 340 GONDINHO, op.cit., 120. 341 ASCENSÃO, op.cit., p. 310. 342 GONDINHO, op.cit., p. 125. 343 ASCENSÃO, op.cit., p. 325.