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CAPÍTULO II – AS IMAGENS DA ARTE NA REINTERPRETAÇÃO DO CORPO

2.3. O saber inscrito no corpo do artista

2.3.1 A visão dos gestos: o que é ver?

O olhar continuamente logrou um estatuto privilegiado na História da Arte e na Filosofia, notadamente na França, desde a modernidade cartesiana até os estudos contemporâneos da psicanálise. O interesse no olhar marca a relevância histórica do corpo, “na medida em que dos abismos do olhar se passa sempre ao ser do corpo [e] chega a desempenhar um papel tátil, [onde] o paradigma da pintura encontra sua confirmação” (HUCHET, 1998, p. 13). Foi essa perspectiva que orientou as análises de Merleau-Ponty na busca por dissolver os embaraços dos postulados cartesianos que compreendia o campo visual exclusivamente segundo os princípios da física ótica e da geometria euclidiana. Para o filósofo, a tese fundamental da pintura (a visão) que nunca está imóvel, que nasce do movimento dos olhos e do corpo inteiro, concede à visão e à pintura uma significação ontológica usualmente reservada ao pensamento (LACOSTE, 2011). Merleau-Ponty demonstrou essa significação ontológica da pintura por meio da descrição de uma filmagem, em câmera lenta, do trabalho de Matisse:

Esse mesmo pincel que, visto a olho nu, saltava de um ato para outro, podia-se vê-lo meditar, num tempo dilatado e solene, numa iminência de começo do mundo, tentar dez movimentos possíveis, dançar diante da tela, roçá-la várias vezes, e por fim abater-se como um raio sobre o único traçado necessário [...]. Não considerou, com o olhar da mente, todos os gestos possíveis, e não precisou eliminá-los todos, exceto um,

justificando-lhes a escolha. É a câmara lenta que enumera os possíveis. Matisse, instalado num tempo e numa visão de homem, olhou o conjunto aberto de sua tela começada e levou o pincel para o traçado que o chamava, para que o quadro fosse afinal o que estava em vias de se tornar [...]. Tudo se passou no mundo humano da percepção e do gesto (MERLEAU-PONTY, 1991, p. 46).

Com o aprofundamento de suas análises em torno de uma ontologia, notadamente em O olho e o espírito, Merleau-Ponty buscou a última fase da produção de Cézanne, marcada por seu afastamento do impressionismo, que supõe uma volta não ao objeto, não à paisagem, mas um retorno às coisas mesmas que figuram no campo da visão. Nesse momento, Cézanne retratava as coisas em sua mais profunda integridade, em sua solidez, em suas cores, em sua carne e em todos os índices que as tornavam presenças visíveis. Agora, interior e exterior estão envolvidos em uma única camada: a textura do visível(FALABRETTI, 2012). De acordo com Merleau-Ponty:

Essa extraordinária imbricação, sobre a qual não se pensa suficiente, proíbe conceber a visão como uma operação de pensamento que ergueria diante do espírito um quadro ou uma representação do mundo, um mundo da imanência e da idealidade. Imerso no visível por seu corpo, ele próprio visível, o vidente não se apropria do que vê; apenas se aproxima dele pelo olhar, se abre ao mundo. E esse mundo, do qual ele faz parte, não é, por seu lado, em si ou matéria. Meu movimento não é uma decisão do espírito, um fazer absoluto, que decretaria, do fundo do retiro subjetivo, uma mudança de lugar milagrosamente executada pela extensão. Ele é a sequência natural e o amadurecimento de uma visão (MERLEAU-PONTY, 2003c, p. 19). Nessa fase final, em que o filósofo francês também elaborou o seu último manuscrito - O visível e o invisível -, as suas reflexões se dirigiram especificamente para as questões da “visão” e do “Ser”. Desse modo, o sujeito da percepção não era mais o corpo “próprio”, o corpo de cada um como o vive e o percebe, mas a carne, essa carne que escapa à filosofia da subjetividade e, mesmo àquela do sujeito corporificado, estabelece com a carne do mundo uma relação ainda mais estrita. As mudanças terminológicas percorrem o mesmo reordenamento da filosofia de Merleau-Ponty. Da consciência e da percepção para uma ontologia, assim, os termos “visão” e “Ser” tornaram-se eixos principais em seu último pensamento: “a visão é o encontro, como uma encruzilhada, de todos os aspectos do ser” (MERLEAU-PONTY 2013c, p. 53). Portanto, o entrelaçamento do corpo com o mundo aconteceria na visão, como sentenciou o filósofo: “A visão do pintor não é mais o olhar posto sobre um fora, relação meramente ‘físico-óptica’ com o mundo. O mundo não está diante dele por representação: é antes o pintor que nasce nas coisas como por concentração e vinda a si do visível.” (Ibid., p. 44). Nesse sentido, para Merleau-Ponty, a pintura expressava o ato

que patenteia a comunhão corpo/mundo, contudo, essa operação não é da ordem da coisa-objeto, mas das modulações sensíveis que conferem visibilidade ao invisível e, por conseguinte, o quadro “só se relaciona com o que quer que seja entre as coisas empíricas sob a condição de ser primeiramente ‘autofigurativo’, ele só é espetáculo de alguma coisa sendo ‘espetáculo de nada’, arrebentando a ‘pele das coisas’, para mostrar como as coisas se fazem coisas e o mundo, mundo.” (Ibid., p. 44-45). Os elementos da pintura, como qualidade, cor, luz, forma, linha, profundidade, contorno e fisionomia, entre outros, apresentam-se como “ramificações do ser” (Ibid., p. 54). Todos esses índices da visibilidade não estão no sujeito, não nascem da consciência, não são uma ilusão de ótica, não estão presos às coisas ou limitados pelo “corpo próprio”; esses emblemas da visibilidade se comunicam com o corpo que os acolhe e, também, se faz visível por meio deles. O equivalente interno e a meditação carnal se colocam como uma dupla presença. “A visão, portanto, é movimento de encontro entre o visível e o invisível. No emprego do olho e da mão, o pintor nunca se apropria da natureza, no máximo, realiza uma reintegração entre aquele que vê e aquele que é visto.” (FALABRETTI, 2012, p. 220).

Nesse sentido, a pintura é a meditação mais efetiva da nossa experiência sensível, originária. Ela amplia a potência da visibilidade, favorece a manifestação do sentido bruto das coisas. O quadro depõe sobre uma linguagem muda capaz de revelar a nossa iniciação ao mundo. A partir da potência criadora da visão, ele a expressa em gestos (ato). É nesse fazer e refazer produzido pela experiência da pintura, nessa dupla ação que significa e ressignifica as coisas no mundo, que se encontra a expressão de um conhecimento singular, próprio de cada vidente, que olha e é convocado a ser olhado na apreciação criadora de novos sentidos. É nesse jogo de visível e invisível, provocado por meio dos sentidos – o sensível do corpo – que o conhecimento se faz experiência, em constante nascimento. “Ora, essa filosofia por fazer é a que anima o pintor, não quando exprime opiniões sobre o mundo, mas no instante em que sua visão se faz gesto, quando, dirá Cézanne, ele ‘pensa por meio da pintura’.” (MERLEAU-PONTY, 2013c, p. 40). Essa é, portanto, a ciência secreta do pintor, ela não fala por palavras (e muito menos por números), mas por obras que existem no visível à maneira das coisas naturais, e que, no entanto, se comunicam por elas com todas as gerações. “Essa ciência silenciosa, que, dirá Rilke a propósito de Rodin, faz passar à obra as formas das coisas ‘não deslacradas’, vem do olho e se dirige ao olho.” (Ibid.).

As análises de Merleau-Ponty acerca do olho na arte moderna podem ser compreendidas como a refutação das proposições em torno do sujeito substancial

cartesiano (cogito, ergo sum), uma vez que, diferentemente da tradição do cogito, a arte nos apresenta um saber difícil, cheio de reservas e restrições, uma representação do mundo que não exclui fissuras nem lacunas, uma ação que duvida de si mesma e, em todo o caso, não se vangloria de obter o assentimento de todos os homens (MERLEAU- PONTY, 2004, p. 68). Sobre esse saber investido na filosofia de Merleau-Ponty, Tania Rivera (2008, p. 222) assegura:

É a arte moderna que permite ao filósofo entrever este mundo, feito de lacunas e fissuras, onde não podemos mais nos situar como em nossa própria casa, o espaço desta ação que nos escapa e duvida de si mesma, ao mesmo tempo que se afirma como ato descentrado, incapaz de garantir uma comunidade, mas instalando um verdadeiro mal-estar na civilização.

Nessa perspectiva, a visão percorre uma multiplicidade espacial, não linear, a do espaço no qual estamos situados, que é heterogêneo64 e que estabelece afinidades com a nossa constituição corporal, nossos desejos e nossas memórias. Por conseguinte, Merleau-Ponty quis captar o espaço na acepção da arte moderna por representar o labirinto, o desvio e a transgressão de uma razão sem equívocos. Talvez, depois, tenha percebido melhor todo o alcance desta pequena palavra: ver. A visão não é um certo modo de pensamento ou presença de si, é o meio que me é dado de estar ausente de mim mesmo, de assistir por dentro a fissão do ser (MERLEAU-PONTY, 2013c). A expressão “fissão do ser” pode ser entendida como aquilo que torna visível o invisível (TASSINARI, 2013).

Foi nesse espaço lacunar e fissurado que Merleau-Ponty buscou investir a sua filosofia, um não lugar de onde emerge o arrebatamento criador, uma circunstância em que não haja um sentido único e último para a palavra. A ilusão da razão é a clareza, por esse motivo, o filósofo francês encontrou, notadamente na arte e na psicanálise, outros domínios do saber cuja expressão se inscreve no corpo, considerando que “o inconsciente desaloja a razão, retira do consciente qualquer garantia e faz dele não mais que um ‘lugar’ precário e provisório” (RIVERA, 20108, p. 220).

64 Michel Foucault desenvolveu, em uma linha diversa da filosofia merleau-pontyana, o termo

heterotopias enquanto espaços diferentes, contraespaços que refutam os locais validados na nossa cultura. Nas conferências radiofônicas proferidas por Foucault no ano de 1966, posteriormente publicadas na obra

O corpo utópico, as heterotopias (Cf. 2013, p. 20), esses espaços foram simultaneamente representados,

contestados e invertidos. Destaca-se que esta tese, apesar de não se deter nas análises de Michel Foucault, reconhece a relevância das suas reflexões para o trabalho do (com o) corpo na contemporaneidade, que representam um horizonte que excede às teses de Merleau-Ponty, devido aos quadros epistemológicos distintos e pela própria exigência sociocultural de um tempo histórico não vivido e, portanto, não tematizado por Merleau-Ponty.

O saber deslocado para esse espaço descontínuo, vacilante, experimental e inaugural demonstra um caráter extremamente poderoso, criador, transformador e disruptivo. O saber que emerge do entrelaçado entre visão e movimento pode encontrar referências no que nos apresenta Jacques Rancière no livro O inconsciente estético65,

em que elabora uma investigação arguta, a partir das figuras literárias e artísticas analisadas por Freud, para explorar as relações que facultam um sentido para o que parece não ter, revelam algo de enigmático no que parece evidente e situam uma carga de pensamento no que parece ser um detalhe anódino (RANCIÈRE, 2009). A propósito da noção de estética, esse filósofo declarou que o termo só alcança o seu sentido mais efetivo no contexto do romantismo e do idealismo pós-kantiano, momento em que passa a operar uma identificação entre o pensamento da arte, efetuado pelas obras de arte, e certa noção de “conhecimento confuso”. A ideia de “conhecimento confuso” é descrita nas palavras de Rancière (2009, p. 13) como:

Uma ideia nova e paradoxal, já que, ao fazer da arte o território de um pensamento presente fora de si mesmo, idêntico ao não-pensamento, ela reúne os contraditórios: o sensível como ideia confusa de Baungarten e o sensível heterogêneo à ideia de Kant. Isto é, ela faz do conhecimento confuso não mais um conhecimento menor, mas propriamente um pensamento daquilo que não pensa.

Nessa perspectiva, em que o regime estético supõe uma identidade entre o saber e o não saber, ao passo que é propriamente da ordem do “inconsciente que não é nem ser nem não-ser, mas é algo de não-realizado” (LACAN, 1998, p. 34), a questão que se coloca é: como é possível a experiência da verdade? Merleau-Ponty (2011a, p. 19) confiou à arte essa tarefa, já que “a filosofia não é o reflexo de uma verdade prévia, mas, assim como a arte, é a realização de uma verdade”.

Foi justamente pela via da arte que as reflexões de Merleau-Ponty chegaram ao Brasil, como apresentado na última seção deste capítulo.

2.4. O Movimento Neoconcreto e a recepção do pensamento de Merleau-Ponty no