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A atividade de fomento foi, historicamente, marcada pelo alto grau de liberdade do Administrador.99

Villar Palasí afirmou que “uma vez afirmada a potestade administrativa nessa matéria, tal atribuição se qualifica de potestade discricionária, sendo, portanto, indiscutível jurisdicionalmente as disposições e resoluções administrativas sobre o tema” (VILLAR PALASÍ, 1954, p. 13, traduzimos).

99 “Estudando-se a evolução da Administração Pública a partir do Estado de polícia, verifica-se a partir da idéia de discricionariedade ampla — sinônimo de arbítrio próprio das monarquias absolutas, em que os atos de Administração não eram subordinados à lei nem passíveis de apreciação pelo Poder Judiciário — para passar-se a uma fase, já no Estado do Direito, em que a discricionariedade, assim entendida, fica reduzida a certos tipos de atos; e chega-se a uma terceira fase em que praticamente desapareceu essa idéia de discricionariedade e esta surgiu como poder jurídico, ou seja, limitado pela lei.” (DI PIETRO, 2012, p. 2).

Chegou ao extremo de lançar mão da expressão “faculdades libérrimas y discrecionales” (VILLAR PALASÍ, 1954, p. 82.), ao se referir à natureza da outorga de subvenções.

De la Riva lembra que “[...] O certo é que a atividade subvencional foi desde sempre esquiva às exigências derivadas do princípio da reserva de lei, e isso também provavelmente se devia ao caráter, em princípio, não restritivo dessa atividade.” (DE LA RIVA, 2004, p. 91, traduzimos).

Referida noção, com os seus inerentes desdobramentos, já não se mostra compatível com a atual concepção de Estado, de sociedade — e a correlação entre ambos.

Conforme salienta Juarez de Freitas, “o Estado Constitucional, numa de suas mais expressivas dimensões, pode ser traduzido como o Estado das escolhas administrativas legítimas” (2007, p. 7), motivo pelo que já não se vislumbra espaço para o reconhecimento de competências exclusivamente discricionárias, concedentes de plena liberdade ao Administrador.100

Um dos aspectos determinantes desse novo cenário é o reconhecimento da subordinação da discricionariedade administrativa aos direitos fundamentais em geral e, em especial, ao direito fundamental à boa Administração, incompatível com decisões tomadas ao talante de uma pessoa — ou grupo de pessoas — sem o escopo de garantir e promover o bem geral:

A discricionariedade administrativa, no Estado Democrático, encontra-se vinculada ao direito fundamental à boa administração pública, sob pena de serem solapados os limites indispensáveis à liberdade de conformação. Toda discricionariedade administrativa precisa guardar referência ao sistema: a liberdade é dada para facultar a melhor conformação possível, não para obstá-la. Nesse sentido, não se admite a mera faculdade. A liberdade, se e quando exercida como negação dos princípios fundamentais, torna-se viciada por excesso ou por deficiência — e, como tal, negadora da discricionariedade legítima. Em outras palavras, faz-se arbitrária e não-universalizável racionalmente. É que o estado da discricionariedade legítima, na perspectiva adotada, consagra e concretiza o direito fundamental à boa administração púbica, que pode ser assim compreendido: trata-se do direito fundamental à administração pública eficiente e eficaz, proporcional cumpridora de seus deveres, com transparência motivação, imparcialidade e respeito à moralidade, à participação social e à plena responsabilidade por suas condutas omissivas e comissivas. A tal direito corresponde o dever de a

100 “Ora, bem examinados de perto tais e outros casos de discricionariedade administrativa, verificar-se-á que, à diferença do que supõem os menos avisados, a autoridade jamais desfruta, legitimamente, de liberdade pura para escolher (ou deixar de escolher), ainda que a atuação guarde, aqui e acolá, menor subordinação à legalidade estrita que na concretização dos atos vinculados.” (FREITAS, 2007, p. 32).

Administração pública observar, nas relações administrativas, a cogência da totalidade dos princípios constitucionais que a regem. (FREITAS, 2007, p. 125)

Tratar-se-á, portanto, mais que de mera análise de legalidade, de uma apreciação quanto à legitimidade,101 a partir da qual se poderá chegar não a várias soluções cabíveis e igualmente aceitáveis, mas a uma mais apropriada, mais bem preparada à eficiente e eficaz conquista do interesse público. “Com efeito, existe somente a melhor escolha administrativa (não ‘a’ única resposta correta)” (FREITAS, 2007, p. 38).

O âmbito de incidência das competências discricionárias, assim, não apenas se reduziu consideravelmente como também passou a contar com novos parâmetros — e limitadores.

No que toca especificamente à atividade de fomento, notamos, primeiramente, sua estreita relação com o protagonismo social, vez que somente alcançarão a legitimidade, e portanto a juridicidade, as decisões discricionárias consentâneas com os anseios e demandas sociais.

A responsividade102 é, pois, alçada, e ainda com mais força na seara discricionária, à condição de validade, de sustentabilidade e prevalência das decisões — o que torna cada vez mais exigível que o Estado mobilize, incentive e promova a atuação da sociedade civil.103

Registremos, ainda, que durante o processo, ou o ciclo do fomento, a liberdade para decidir não incide de maneira homogênea e invariável: muda consideravelmente, tanto no que toca à sua abrangência quanto à intensidade.104

101 Conforme salienta Moreira Neto, “ainda que o Estado Democrático de Direito tenha resolvido tão bem a antinomia entre legitimidade e legalidade, esses dois padrões continuam a existir, com funções muito claras, no novo continuum jus-político: o interesse público, antes ou depois de legislado, é sempre padrão de legitimidade, mas só o interesse público legislado alça-se a padrão de legalidade.” (MOREIRA NETO, 1991, p. 8).

102

Conforme bem define Gustavo Justino de Oliveira, “cumpre aprioristicamente à organização administrativa estatal conferir respostas à demandas sociais. A principal função do aparato administrativo estatal é a de receber os influxos e estímulos da sociedade, rapidamente decodificá-los e prontamente oferecer respostas à satisfação das necessidades que se apresentam no cenário social.” (OLIVEIRA, 2010, p. 160).

103 “O Estado da discricionariedade legítima requer (ao mesmo tempo, suscita) o protagonismo da sociedade amadurecida e do agente público que defende a dignidade de todos. É o Estado da continuidade planejada dos serviços essenciais, do intangível equilíbrio econômico-financeiro dos ajustes e da superação da lógica antagonizadora, precária e adversarial nas relações da administração.” (FREITAS, 2007, p. 19).

104 “[...] a intensidade da regra em questão não pode ser a mesma na primeira fase do exercício da atividade subvencional, é dizer, quando se cria a medida de fomento e se limitam seus potenciais destinatários — e, ao fazê-lo, se exclui a outros setores —, que no momento da adjudicação da ajuda a um determinado sujeito, que é quando o princípio da igualdade adquire seu máximo rigor. Esta distinção [...] tem muito a ver com a desigual margem de discricionariedade de que goza a Administração (ou, em seu caso, o legislador) em uma ou outra etapa.” (DE LA RIVA, 2004, p. 203-204, traduzimos).

Assim, o planejamento das medidas de estímulo não é marcado por igual discricionariedade que as decisões de outorga de subvenções, por exemplo.

Em outras palavras, a análise do grau de vinculação do agente público deve ser feita a partir consideração da específica do momento da atividade fomentadora que se leve em conta, tomado, sempre, o seu ciclo dinâmico de implementação.

O cenário descrito gera, ou pode gerar, certa insegurança, vez que o ciclo em questão se desenvolve sobre bases pouco definidas, preceitos pouco delineados.

Daí defendermos a importância da edição de uma lei geral de fomento, capaz de parametrizar, orientar e criar rotinas seguras públicas e prévias a orientar o exercício dessa atividade.

A nossa Lei federal n. 4.320/64, pretensamente reguladora das subvenções em geral, já não se mostra suficiente nem compatível com as demandas e expectativas atuais, nem com o próprio agir do Estado — e da Administração — nesse início de século.

Conforme ponderado anteriormente, ela não se presta sequer a abarcar todas as possíveis modalidades de subvenções, e já não se mostra consentânea com diretrizes de grande destaque no nosso ordenamento, como são a subsidiariedade da atuação estatal e a eficiência.

Nesse particular, e tomado mais uma vez o exemplo espanhol,105 defendemos a necessidade de edição de um diploma que transcenda a noção de subvenção, que trate, ainda que em linhas gerais, da ação de fomento lato sensu, com seus princípios orientadores, as suas nuances específicas e o reconhecimento da indispensável mobilização responsável e responsiva da sociedade civil como um todo.

Assim se conquistará maior segurança jurídica, com a potencial maior adesão dos destinatários das normas de estímulos — que serão atraídos então para terreno seguro, previamente disciplinado e regulamentado.

Não mais se esperará a adesão a relações pouco disciplinadas, pouco conhecidas, e de consequências quiçá não pretendidas ou imaginadas.