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2. O CONSELHO DOS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE DO

2.6 Titularidade dos mandatos

A questão da titularidade dos mandatos, se considerada estritamente sob a ótica da legislação constitucional e federal, torna-se de tranquila aferição — a disciplina do assunto é bastante direta e expressa, como adiante será exposto.

Alguns Conselhos estaduais e municipais, porém — inclusive o do município de São Paulo, foco do nosso estudo — vêm trazendo certa polêmica para esse campo.

As interpretações nebulosas e hesitantes decorrem, no caso do CMDCA/SP, da própria redação dos dispositivos regulamentadores da matéria.

Tomemos, primeiramente, o artigo 9º, caput e § 2º, do Decreto municipal n. 31.319/92:

Art. 9º. Os representantes da sociedade civil serão eleitos em Assembleia Geral, convocada pelo Executivo para essa finalidade, constituída por munícipes e representantes de entidades e movimentos que tenham entre seus objetivos aqueles referidos nas alíneas “a” e “e” do inciso II do “caput” do artigo 6º, dentre outros.

[...]

§ 2º. Para fins de participação de seus representantes na Assembleia Geral, na condição de candidatos às vagas de Conselheiros, as entidades e movimentos serão credenciados pelo Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, devendo o credenciamento ser referendado pela Comissão Eleitoral.

O texto supratranscrito cria certa confusão, deixando entrever, em algumas passagens, que os candidatos em questão seriam as pessoas físicas, não as entidades e movimentos. Tanto que foi essa a interpretação levada ao Regimento Interno do CMDCA/SP, cujo artigo 4º, § 2º, rege: “Art. 2º. O edital de convocação da eleição dos membros da sociedade civil deverá conter o local, a data, o horário de abertura e encerramento, os segmentos e nomes dos candidatos, seguidos da entidade ou movimento que representam, já credenciados e referendados pela comissão eleitoral.” (grifamos)

Outros dispositivos há, porém, e no mesmo Decreto n. 31.319/92, que conduzem o raciocínio para um desfecho diverso:

Art. 10. Para fins de participação dos seus representantes nas Assembléias Setoriais, as entidades e movimentos serão credenciados pelas Secretarias Municipais ligadas à sua área de atuação, devendo o credenciamento ser referenciado pela Comissão Eleitoral.

§ 2º. O credenciamento será deferido às entidades e movimentos que atendam as seguintes condições. [...]

Art. 6º. O Conselho é constituído por 16 (dezesseis) membros, na seguinte conformidade:

[...] §3º. Na ausência de candidaturas dos movimentos e entidades

referidos no inciso II do caput deste artigo, as vagas serão preenchidas pelos representantes das organizações ou movimentos que obtiverem o maior número de votos e não forem contemplados com as vagas reservadas à categoria à qual pertençam. (destacamos).

A discussão colocada não se traduz em estéril exercício dialético, vez que a adoção de uma interpretação ou outra trará efeitos absolutamente importantes e distintos.

Tomemos, por exemplo, a hipótese de vacância da função de Conselheiro em razão de morte.

Dispõe o artigo 26 do Decreto municipal n. 31.319/92 que “Art. 26. Na hipótese de substituição e vacância, os suplentes assumirão as vagas dos membros efetivos, ficando como seus respectivos suplentes os candidatos que constarem com número imediatamente inferior de votos, sucessivamente, na lista de eleitos, sempre respeitada a distribuição de vagas prevista no artigo 6º deste Decreto.”

Quem deverá assumir o assento deixado, o suplente, ou um outro representante, vez que a vaga seria da entidade ou movimento, os quais gozam da prerrogativa de nomear um substituto para falar e agir em seu nome?

O fato de os eleitores haverem votado, por ocasião das eleições, em nomes específicos dos candidatos das entidades/movimentos tem o condão de arrastar para o cenário colocado um nível de pessoalidade tal que, uma vez desaparecido o representante eleito, um segundo colocado faria jus à nomeação?

Nesse sentido, inclusive, consulta endereçada pelo CMDCA/SP à Assessoria Jurídica da Secretaria Municipal de Participação e Parceria, em agosto de 2007, por meio do Memorando n. 135/2007/CMDCA.

Desse documento constava questionamento segundo o qual se relatava o afastamento do conselheiro da entidade a que estava vinculado quando da eleição, com a indagação de quem deveria assumir seu lugar.

Defendemos, para a solução do impasse, o raciocínio a seguir desenvolvido. Consideremos, primeiramente, o artigo 8º da Resolução n. 115 do Conanda, bastante claro ao articular que:

Art. 8º. A representação da sociedade civil garantirá a participação da população por meio de organizações representativas.

[...]

§ 4º. O mandato no Conselho dos Direitos da Criança e do Adolescente pertencerá à organização da sociedade civil eleita, que indicará um de seus membros para atuar como seu representante;

Ainda que defendamos — e defendemos — que as resoluções internas de órgãos federais não são dotadas de abstração e generalidade indispensáveis à vinculação de

quaisquer outras esferas ou entes que lhes sejam alheios,227 trata-se, indubitavelmente, de orientação resultante de refletido amadurecimento e consideração do assunto e que, portanto, não deve ser desprezada, como norte, sem qualquer poder de vinculação.

Não fosse o conteúdo dessa norma, há outra, de hierarquia efetivamente superior, veiculada pela própria Constituição Federal, em seu artigo 204, também incidente, como visto, sobre as políticas afetas à infância e juventude.

Tal dispositivo é expresso ao fixar como uma das diretrizes da atuação governamental nessa seara a “participação da população, por meio de organizações respectivas, na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis”.

No mesmo sentido o artigo 88, II, da Lei n. 8.069/90:

Art. 88. São diretrizes da política de atendimento:

II - criação de conselhos municipais, estaduais e nacional dos direitos da criança e do adolescente, órgãos deliberativos e controladores das ações em todos os níveis, assegurada a participação popular paritária por meio de organizações representativas, segundo leis federal, estaduais e municipais.

Ainda que não fossem tão diretos esses dispositivos, não temos por razoável admitir que a exigência do ordenamento jurídico fosse que o candidato pessoa física lograsse êxito em se aproximar de uma entidade/movimento com a qual não tivesse qualquer ligação, tão somente para conseguir uma indicação condicionante da sua candidatura pessoal.

Circunstâncias como essa esvaziariam a atuação das entidades e movimentos que desempenhariam função unicamente figurativa, adstrita ao aval da candidatura de determinado candidato.

Nesse caso, não haveria porque se exigir referido aval; uma vez não desempenhando as entidades/movimentos qualquer papel relevante, a candidatura deveria ser tida como aberta a todos os cidadãos capazes e no gozo dos seus direitos políticos, e a obrigatoriedade de relação com eles se tornaria completamente ilógica e inexplicável.

Há, ainda, um outro aspecto: retomada a questão anunciada no item 2.1 supra, relativa à vedação de mais de uma recondução dos representantes da sociedade civil estabelecida no artigo 7º, § 4º, da Lei municipal n. 1.123/91.

Defendemos, nesse particular, e observado o até aqui exposto, que referida limitação estaria direcionada às entidades/movimentos, verdadeiros titulares dos assentos no Conselho, detentores dos respectivos mandatos.

Inócua, portanto, qualquer pretensão de substituição apenas dos representantes: uma vez se mantendo a representada, o rodízio determinado pela Lei228 não restaria observado com a mera substituição do representante.

No que toca à referida sistemática de “rodízio”, posicionamo-nos contrariamente, entendendo que não se coaduna com o princípio constitucional da soberania popular e a com própria noção de participação democrática — a qual se estabelece, a nosso ver, e para além de um princípio229 e de um direito fundamental,230 na condição de cláusula pétrea do Texto Maior.

Referido princípio, originariamente tido como implícito e decorrente dos desideratos democrático e do Estado de Direito (se bem que já da redação de 1988 constavam diversas indicações específicas expressas quanto à sua incidência231), foram explícita e genericamente introduzidos por meio da Emenda Constitucional n. 19/1998:

A norma democrática está radicada em todo o texto da Carta de 1988, configurando-se como um princípio geral constitucional concretizado ou explicitado diretamente através do art. 1º (por meio da definição da República Federativa do Brasil como um Estado Democrático e de Direito) e indiretamente através de outros princípios (como da igualdade, do sufrágio universal, entre outros) ou de regras específicas (como a da periodicidade das eleições para Executivo e o Legislativo, ou a da liberdade da criação de partidos políticos). [...] Tanto o princípio democrático como o princípio do Estado de Direito, uma vez inseridos na Constituição, assumem uma caracterização relativamente complexa, pois passam a nortear a conduta do Estado e da sociedade por parâmetros contemporaneamente aceitos. Melhor dizendo, extrai-se do princípio democrático não somente a obrigação do Estado de respeitar as mais elementares normas da democracia representativa (eleições periódicas, separação de poderes, liberdade partidária), mas também, como salienta

228 Art. 7º, § 4º, da Lei municipal n. 11.123/91.

229 “[...] da soma de todas as referências expressas que a Constituição Federal brasileira faz à participação popular na Administração e de sua conjugação com os princípios democráticos do Estado de Direito e da eficiência extrai-se que a participação administrativa, em termos constitucionais, representa bem mais que um emaranhado de regras esparsas autorizantes da adoção de institutos participativos em situações específicas. Trata-se, a participação administrativa, de um autêntico princípio constitucional.” (PEREZ, 1999, p. 62).

230 “O direito de constituir organizações da sociedade civil é um dos direitos humanos fundamentais que pertence aos indivíduos e não é concedido pelo governo. Decorre dos direitos basilares da liberdade de expressão e associação, que devem ser consagrados na lei fundamental dos países. Enquanto tal, esse direito não pode ser condicionado à concessão de autoridade pública nem limitado por restrições indevidas, como as relativas ao condicionamento dos pedidos de inserção como membros.” (SALAMON, 2005).

231 Como, exemplificativamente, os artigos 10; 194, VII; 29, X; 187; 198, III; 204, II; 205; 206, VI; 216, § 1º; 225; 227, § 1º.

Canotilho, que ele “implica a estruturação de processos que ofereçam aos cidadãos efetivar possibilidades de aprender a democracia, participar nos processos de decisão, exercer o controle crítico na divergência de opiniões, produzir inputs políticos democráticos”, importando, por isso, numa “forma de organização” do Estado e, ao que no interessa, da Administração Pública. Daí concluirmos, desde logo, que tanto o princípio democrático, quanto o do Estado de Direito se expressam no ordenamento jurídico brasileiro como “princípios de organização”, ou seja, impõem, para além de uma acepção meramente axiológica, uma forma de organização das funções do Estado que seja voltada a plena realização da democracia participativa e dos direitos fundamentais. [...] Se assim é, ainda que não contasse com nenhuma referência expressa no Texto Constitucional de 1988 (ao avesso do que verdadeiramente ocorre [...], deduziríamos a presença implícita de norma constitucional autorizante da criação de institutos de participação popular na Administração Pública, através dos princípios democrático e do Estado de Direito, princípios básicos de organização do Estado Brasileiro, conforme definido pelo art. 1º da Constituição Federal. [...] De certa forma, a Emenda Constitucional 19 [...] deu maior ênfase e destaque à participação popular na Administração Pública, afinal, muito embora fossem bastante constantes as referências da Constituição à participação popular, enquanto instrumento de organização de diversos serviços públicos, carecia dessa participação de uma diretiva inserida no âmbito das disposições gerais da Administração pública, no art. 37. (PEREZ, 1999, p. 54-55-59).

Não pode uma lei municipal vir a restringir consideravelmente o alcance de direito fundamental, qualquer que seja ele, de forma, inclusive, a neutralizar a sua previsão, inviabilizando o seu exercício, após a observância de determinadas condições: seria admitir que alguns direitos basilares do nosso ordenamento, uma vez exercidos — ou “utilizados” — expirassem, ficando a sua existência condicionada ao número de vezes que seus titulares deles tivessem lançado mão.

Posicionamo-nos, assim, contrariamente à limitação de vezes de ocupação de assentos no Conselho por parte da sociedade civil, ao menos da forma definitiva e inafastável, como determina a norma vigente.

Vislumbramos a possibilidade de o legislador local vedar a permanência indefinida de determinados conselheiros, em mandatos consecutivos — observada a “quarentena” legalmente fixada, porém, de se admitir a nova candidatura — e eleição — de entidades da sociedade civil e movimentos com pretensão de ocupar um lugar junto ao CMDCA.