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1.10 Ciclo da atividade de fomento

1.10.1 Planejamento

O planejamento estatal nada mais é do que a pilotagem do processo de desenvolvimento nacional, e, portanto, ele extrapola o setor meramente econômico e desdobra o processo de desenvolvimento em três grandes dimensões: a dimensão econômica, a dimensão social, ou seja, a luta contra a desigualdade de condição social e a luta contra esta oposição cultural entre país atrasado e país moderno, e, finalmente, a dimensão política, que nada mais é do que a democracia. (COMPARATO, 2001).

Como salientado no excerto supratranscrito, o planejamento encontra-se, nos dias que correm, alçado à condição de indispensável ao desenvolvimento do Estado e da sociedade em geral.

Não podemos admitir uma atuação administrativa dissociada da organização consistente, da conciliação e compatibilização entre os diversos objetivos a serem perseguidos e os interesses públicos a serem contabilizados — sob pena de naufrágio da organização social e risco de comprometimento dos direitos fundamentais.

Tanto é assim que o autor suprainvocado defende mesmo o reconhecimento — ou estruturação — de um poder estatal de planejamento.106

106 “[...] A segunda proposta de superação dessa dicotomia Estado/sociedade civil é recriar um poder planejador, mas um poder planejador com participação popular. Em nenhuma Constituição atual existe a previsão do poder de planejamento, e, no entanto, até o advento do neoliberalismo isso já foi amplamente praticado, no Estado japonês por exemplo. É preciso criar um poder planejador que não seja apenas burocrático, e que conte com a participação do povo. Nesse sentido, a nossa modestíssima Constituição de 88 já dá algumas diretrizes, que obviamente até agora não foram implementadas, mas são importantes. O plano

Seria, nas palavras de Moreira Neto, “uma nova visão acerca do devido processo constitucional de formulação de políticas públicas, integrado, além do planejamento, pela programação e orçamentação” (MOREIRA NETO, 2008, p. 123-126).

Conforme salienta, a formulação de políticas públicas traduz-se em um “complexo de processos juspolíticos destinado à efetivação dos direitos fundamentais” (MOREIRA NETO, 2008, p. 124), o qual é composto pelos seguintes momentos: a) fixação de objetivos e elaboração de planejamento; b) etapa financeiro-orçamentária; c) processo administrativo de execução.

Trata-se de etapa “prévia ao ato de dispensa da ajuda [...]. Trata-se, a rigor, de uma atividade de natureza normativa que condicionará a ulterior decisão de outorga. Serve de marco à relação subvencional a entabular-se, mas está claro que quem a desenvolve não toma parte da relação subvencional singular” (DE LA RIVA, 2004, p. 145, traduzimos).

Referida organização prévia da atuação administrativa não constitui, atualmente, mera faculdade, ou vetor ético a ser perseguido pelos governantes:

A racionalização das atividades dos governos não mais deve se considerar apenas como mera aspiração ético-política das sociedades contemporâneas, uma vez que já se a tem constitucionalmente erigida como um direito difuso — e, por isso, exigível por toda cidadania, em todos os níveis políticos e, de modo especial, ainda que não exclusivo, posto sob vigilância do Ministério Público, entre os elevados cometimentos que lhe são outorgados pelos artigos 127, caput, e 129, da Constituição (MOREIRA NETO, 2008, p. 132-133).

E a esfera de atuação em que alcança o ápice da proximidade com a sociedade civil é justamente no fomento.

Isso porque implica ele uma descentralização da atuação administrativa,107 em um “convite” e incentivo a que a sociedade civil assuma responsabilidades pelo atingimento e satisfação dos interesses coletivos.

nacional de educação e o plano nacional de saúde deveriam contar com a participação dos setores do povo que têm ligação direta com essas atividades e com a organização de políticas públicas. É muito pouco, reconheço, mas é apenas uma indicação do rumo que deveríamos seguir.” (COMPARATO, 2001).

107 “Numa visão moderna das estruturas de fomento, é possível afirmar que a gestão de fundos públicos de fomento pode ser descentralizada a particulares. [...] Dentre as técnicas de descentralização para particulares, a que mais simplesmente se aperfeiçoa é a celebração de convênio com entidade civil [...].” (SOUTO, 2007, p. 37). Note-se, porém, e conforme pertinente advertência de Maria Sylvia Zanella Di Pietro, que a referência à descentralização em questão não se confunde com a noção técnica de transferência de serviços públicos a entidades privadas, em que se verifica a modalidade da denominada descentralização por cooperação: “É importante lembrar que nem todas as formas de parceria implicam descentralização de serviço público. É o caso, por exemplo, dos termos d parceria com as organizações da sociedade civil de interesse público, que prestam atividade privada e, exatamente por atuarem no campo dos serviços sociais não exclusivos do Estado, recebem ajuda do poder público, dentro de sua atividade de fomento. Na mesma categoria entram os

Essa atuação necessariamente se desenrolará nos moldes previamente planejados — de cuja discussão deverão participar os responsáveis pela implementação das medidas: em última análise, os representantes da coletividade.108

Não se pode cogitar de uma atividade incentivadora da Administração que, por desorganização, finde por ofender os desideratos constitucionais da eficiência, economicidade, moralidade.

Nesse sentido, reafirmamos a imprescindibilidade da interação constante e efetiva entre órgãos públicos e sociedade civil, com a criação de um fluxo ininterrupto de informações e diagnóstico de demandas.

É, na expressão utilizada por Schimidt-Assmann (2003, p. 288), a “sociedade da informação”, na sua vertente relacionada com a própria conquista e garantia da responsividade, do estabelecimento de íntima relação de causa e consequência, de demanda e respostas entre as necessidades coletivas e a forma de atuar/incentivos disponibilizados.109

Nas palavras de Moreira Neto:

[...] o mundo vai se encolhendo e os indivíduos, os grupos, as sociedade e os Estado ficando cada vez mais próximos e interagentes, integrados pelo desenvolvimento científico e tecnológico que, notadamente os últimos cem anos, disseminou ecumenicamente o conhecimento e possibilitou a eclosão dessa nova etapa civilizatória de que desfrutamos, por isso denominada pelo brilhante sociólogo espanhol Manuel Castells: a Era da informação. Os desdobramentos sociais deste fenômeno explodem, complexos e vertiginosos: as populações passam, sucessivamente, a ter

convênios com entidades do terceiro setor (a declaradas de utilidade pública, as filantrópicas e outras), que prestam atividade privada de interesse público e também tem parceria como o poder público para fins de fomento. [...] é essencial ao conceito de descentralização a idéia de transferência da gestão de serviço público, o que não ocorre na atividade de fomento à atividade privada, ainda que este seja de interesse público. Nem toda atividade de interesse público constitui serviço público de titularidade do Estado.” (DI PIETRO, 2011, p. 47). Mantemo-nos, portanto, na esfera do fomento, absolutamente distinta daquela reservada aos serviços públicos e ao poder de polícia.

108

Daí a lição de Luciano Fedozzi: “Devido ao caráter nuclear que ocupa na gestão sócio-estatal, a discussão dos orçamentos públicos com os atores da sociedade civil (em especial, com os segmentos excluídos do desenvolvimento social) adquire importância capital para o avanço da democracia e da inclusão social como uma de suas fontes de legitimação.” (FEDOZZI, 2005, p. 145).

109

“O Direito Administrativo não pode prescindir do papel central que joga a informação como objeto de prestação ou procura estatal. [...] O Direito administrativo tem que garantir tanto o controle como a eficácia da ação administrativa. [...] uma ordenação da informação tem transcendência em sua totalidade para a formação dos sistemas jurídico-administrativos desde duas perspectivas: de um lado, a informação e a comunicação são elementos e processos que são pressuposto dos dogmas básicos do Direito administrativo e, consequentemente devem ser tomados em consideração na configuração da relação cidadão-Estado e na fixação do marco da organização. Ao construir o sistema, não se deve partir unicamente das decisões que adota o executivo em fases procedimentais avançadas, senão também, e antes, dos processos de obtenção e uso da informação. A outra perspectiva se refere à elaboração das exigências específicas de proteção e de eficácia que derivam das novas técnicas de informação.” (SCHIMIDT-ASSMANN, 2003, p. 289-290, traduzimos).

amplo acesso ao conhecimento, e, porque o conhecimento as muda irreversivelmente, a tomar consciência de seus interesse, a reivindicar participação e, como decorrência, a se organizar cada vez mais e a exigir, no final desta cadeia causal, eficiência dos governos no atendimento de suas necessidades. (MOREIRA NETO, 2008, p. 100).

Temos, pois, que o planejamento já não resulta unicamente da vontade do legislador ou do administrador, sendo fundamental a participação e consideração da sociedade civil como atores da mesma forma protagônicos nesse processo.110

Ganham destaque as ditas “arenas de participação”, ou “arenas públicas”,111 a partir das quais o planejamento é efetivamente levado a cabo, e sem cuja consulta a programação estará sujeita a sérias ameaças de inefetividade, insuficiência e ineficácia.

Como assinala Gimeno Feliu, a efetiva consecução dos objetivos socioeconômicos é condicionada pela coordenação entre as diversas medidas de fomento (entre a própria Administração, ou entre Administrações), voltadas a evitar duplicidades e distorções indesejáveis (GIMENO FELIU, 1995, p. 160).

Villar Ezcurra desenvolve raciocínio que, não obstante originariamente voltado à intervenção do Estado no domínio econômico, se aplica à perfeição à sua interferência e orientação na seara social:

O planejamento econômico (como meio para canalizar medidas de fomento) implica, pois, um reconhecimento prévio por parte dos particulares das condições sob as quais a Administração se compromete a atuar sobre um determinado setor da economia. Este conhecimento prévio permite ao particular sopesar as vantagens e inconvenientes que possa sofrer ao submeter-se ao planejamento, já que, como indicado, as medidas de fomento geralmente vêm acompanhadas de outras típicas de polícia. [...] o planejamento não é, portanto, uma técnica (nem de fomento nem de polícia) senão um sistema de ordenação de técnicas de muitas diversas procedências cuja finalidade — isso sim — consiste em dirigir ou controlar um determinado setor econômico. Com isso resta claramente

110 Como se dá, a título de exemplo, com as audiências públicas, o orçamento participativo e os conselhos de participação popular, de que mais adiante se tratará.

111 “Deu-se ao novo paradigma (talvez seja melhor dizer aos novos paradigmas) o nome provisório de ‘arena pública’. Essa expressão é utilizada em um sentido genérico, advindo da ciência política anglo-saxã, segundo a qual ‘arena pública’ é o espaço em que se desenvolvem atividade pública e o intercambio entre Estado e sociedade. Por outro lado, trata-se de uma expressão muito próxima à de esfera pública, de origem habermasiana, que indica o espaço social onde se desenvolvem diálogos e conflitos e que serve para transferir a demanda social para o corpo político. ‘Arena pública’, no sentido de ‘espaço’, não prejudica as posições dos sujeitos que nela atuam — segundo o paradigma tradicional, o Estado no alto, os cidadãos embaixo —, não estabelece definitivamente as relações que ali se estabelecem — de oposição, segundo o paradigma tradicional —, não vincula a ação dos sujeitos a um tipo — como o da discricionariedade, válido para a administração pública, e o da liberdade, aplicável ao sujeito privado, segundo o paradigma tradicional. Permite, ao contrário, intercambialidade dos papeis, modificação das relações, comércio das regras e dos princípios ordenatórios.” (CASSESE, 2010, p. 90).

manifesta o móvel que subjaz a toda atividade de fomento, já que, em verdade, os poderes públicos não perseguem com isso simplesmente ajudar ou estimular uma determinada atividade dos particulares (se assim fosse resultaria injustificada a repercussão nos gastos e ingressos públicos) se não controlá-la devido ao interesse geral ou utilidade social que esta atividade pode reportar (VILLAR EZCURRA, 1999, p. 116, traduzimos).

Nesse sentido, imprescindível que as medidas de fomento estejam incluídas na esfera de prioridades e de alguma forma guardem consonância com as leis orçamentárias112 e o plano de metas do governo.

Assinala Villela Souto que a intervenção é função administrativa e, como tal, deve ser orientada pelo princípio da legalidade; o planejamento, a seu turno, deve ser elaborado conforme as diretrizes legais e definir os limites e objetivos daquela, de forma a se constituir um conjunto de ações interligadas, sistematizadas e coordenadas pelo planejamento, o qual influirá não somente em questões orçamentárias ou tributárias, mas na própria composição da Administração (SOUTO, 2003, p. 16).

A escala de fundamento, de legitimidade, seria, pois, a seguinte: os atos interventivos deverão tomar por base o planejamento, o qual deve ser reflexo fidedigno da vontade popular sufragada nas eleições a partir do plano de governo (arts. 14, § 3º, V, c/c 84, VI e XI, da CF) que lhe dará origem. “O planejamento visa, pois, a dar organicidade à intervenção, tomada esta atividade vinculada” (SOUTO, 2003, p. 16).

O plano de governo apresenta a natureza de ato jurídico criador de vinculações para o Administrador, conforme esclarece o mesmo autor:

No Brasil, tendo em vista que o plano estabelece obrigações para o setor público, tendo caráter imperativo, e, se aceita a orientação pelo setor privado, a promessa feita vale como direito [...], forçoso é reconhecer ao plano uma eficácia jurídica, como conseqüência lógica do princípio da legalidade que rege a Administração Pública (CF, art. 37), traduzido no seu poder-dever de agir na ocorrência do interesse público (consubstanciado no plano identificador dessas áreas de interesse). Ora, se o Presidente deve remeter mensagem e plano de governo ao Congresso Nacional, expondo a situação do país e solicitando as providências necessárias (CF, art. 84, XI), não parece razoável que, aprovado o plano (CF, art. 48, IV) e contabilizadas as ações nas leis orçamentárias (CF, art. 165, § 4º), não decorra daí nenhum direito em ver atendidos os anseios da sociedade; tanto mais que, materializadas as diretrizes do plano em uma

112 Como salienta Furtado, “uma das missões primordiais da Lei Complementar 101/00 (LRF) é banir do País a idéia de que o orçamento público não passe de uma peça de ficção ou documento de faz de conta. Para tanto, várias providências foram tomadas no sentido de dar maior rigidez ao orçamento, de modo a forçar o seu cumprimento, impondo o planejamento na elaboração das peças orçamentárias.” (FURTADO, 2009, p. 130).

lei (CF, art. 174), o seu descumprimento caracteriza crime de responsabilidade (CF, art. 85, VII). (SOUTO, 2003, p. 29-30).

Caberá ao administrador, assim, lançar mão da medida que julgar mais conveniente para alcançar as finalidades orçamentariamente consagradas, em uma análise marcadamente discricionária — trata-se de momento do ciclo de fomento em que as competências discricionárias despontam com mais intensidade, em que as margens de “liberdade” para decidir são mais distendidas.113, 114

Hipóteses há, porém, em que essa discricionariedade quanto à adoção de técnicas de fomento, serviço público ou polícia é afastada em razão de uma destinação específica a ser outorgada a determinada receita, a qual se vincula, por disposição normativa, diretamente à atividade de fomento.

É o que se dá com os ingressos no Fundo Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente a partir da destinação de imposto de renda, conforme veremos adiante.

1.10.2 Incidência propriamente dita: a efetivação da relação de fomento com o