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Registrando e copiando para aprender: o que é higiene e saúde?

34 TEM./ ESCREVE O QUE TÁ AQUI./

9.3 Discutindo e questionando o texto

Passemos ao terceiro momento da interação da professora com os alunos em torno do texto sobre higiene e saúde. A Tabela 10, intitulada Quem é que faz isso aqui, gente? , mostra o momento em que a professora lê o texto no quadro e discute com os alunos. Nessa ação ocorreu uma discussão em torno do texto a respeito de atitudes a serem tomadas ao usar o banheiro. A Tabela 10 foi organizada da seguinte forma: na primeira coluna está a marcação das linhas; na segunda, os colaboradores; na terceira, as falas e as ações. Nessa transcrição podemos ver os seguintes aspectos: que os alunos tentam compreender o significado de palavras do texto e trazer para as discussões em aula suas experiências; que os textos trabalhados na sala de aula são escolhidos sem leitura prévia por parte da professora; que a leitura oral do texto não contempla os alunos; quais questões abordadas no texto são objeto de questionamento por parte dos alunos; quais relações de poder envolvem a interação dos participantes com a escrita.

Tabela 10 -Quem é que faz isso aqui, gente?

Linhas Colaboradores Falas e ações

1 Profa. (ss) /Hoje é atividade do quadro direto. (ss)

2 Leo, sem preguiça, tá? /

3 Uma semana inteirinha sem fazer nada./

4 Então agora tá na hora de você aproveitar o tempo e, o que não fez, fazer. /(ss)

5 Pronto, Felipe?

6 Felipe Não.

7 Cristiano Qual é aquela última palavra lá?

8 Messi Ver- mi- no (...)

9 Cristiano Não é verminose, não.

10 Ronaldinho Colera. Colera, burro!

11 Profa. Cólera. /Colera... olha o acento no "o" lá. /Có-le-ra. /É uma doença. (ss) /

12 Gente, todos no seu lugar./

13 Presta atenção! /((Começa a ler o texto))

14 Higie e e Saúde. N o adia ta u ali e to te g a de valo nutritivo se ele

tiver

15 dete-deteriorado ou contaminado. A falta de higiene com os alimentos pode

16 ausa doe ças o o dia eia, ve i oses ou at a le a . I te o pe e

17 comenta))

18 São doenças que a gente pode pegar/

19 além da hepatite/ que ocês lembram/

20 que um tempo aqui /

21 quase todo mundo pegou hepatite?/

22 Laura pegou/

23 os meninos de Carmem também pegou./

24 Leo Moura Eu.

25 Profa. Você pegou./

26 A hepatite além de tudo/

27 ela é uma doença que pega,/ não é?/

28 De um passa/ para o outro.

29 Alunos É.

30 Profa. Laura mesmo/ ficou muito ruim de hepatite. /

31 E isso é o que (ss) sujeira. ((Prossegue com a leitura))

32 Da es a fo a, o adia ta lava os ali e tos se as os de ue vai

comê- los estiver suja. Por isso, quando for preparar algo para comer,

33 lave sempre as mãos com água e sabão.

34 Não só água, tem que ter sabão também. Quando usar

35 o banheiro lembre-se: lave as mãos antes e depois de usá-lo . Olha do pa a

36 os alunos, pergunta))

37 Quem é que faz isso aqui, gente?

38 Alunos Eu.

39 Profa. Lava a mão quando vai ao banheiro? /Mas só depois, não é?

40 Alunos É.

41 Profa. Quem é que tem a mania de ir ao banheiro/

42 e lavar a mão primeiro antes de usar?

43 Alunos Eu não.

44 Profa. Ninguém, não é?/

45 Deve ter gente que faça isso./

46 Que eu mesma (...)agora que eu vi isso ali/que eu tava olhando./

47 Eu mesma não faço isso. /

48 Eu achava que era sempre depois./

49 Ocês estão vendo? É antes e depois de usar./

50 Porque a nossa higiene gente /

51 é muito importante pra nossa saúde. /(ss) [...]

52 Então, gente, é isso aí (inaudível)./

53 Porque na hora do recreio todo mundo/

54 quer ir ao banheiro lavar as mãos?/

55 Lá no banheiro tem sabão?

56 Ronaldinho Tem... não.

57 Profa. Tava um montinho de sabonete lá./

58 Agora eu não sei se tem,/ mas (...) /

59 não adianta lavar as mãos se não tiver sabão.

60 Ronaldinho No dos funcionários tem.

61 Profa. Se não tiver é porque acabou.(s) /

62 Porque as bactérias/

63 ficam grudadas nas mãos da gente./

64 E a gente vai .../

65 eu tô aqui, com minha mão encostada nessa parede/

66 daqui a pouco tô com a minha mão no rosto,/

67 na minha boca /

68 ou eu vou lá pego qualquer coisa /

69 e vou chupar aquilo ali,/

70 tá cheio de micróbios,/

71 cheio de bactérias /

73 e depois fico passando mal/

74 sem saber o que é.

Fonte: Trabalho de Campo, 2012.

As pala as do te to e i oses e le a p o o e a u a dis uss o e t e Cristiano e Ronaldinho. Cristiano perguntou: Qual a uela últi a palav a l ? Messi começou a soletrar: Ver-mi-no (...)", mas foi interrompido por Cristiano que alegou: Não é verminose, não , pois ele apo ta a pa a a pala a le a . Ro aldi ho e t o a gu e tou: Colera. Colera, burro! (linhas 7 a 10). A professora, observando a discussão interveio: C le a. /Cole a... olha o a e to o o l . /C -le-ra./ É uma doença li ha . Observa-se nesse momento Messi silabando a palavra có-le-ra, conforme vira a professora fazendo anteriormente. Outra vez a curiosidade por uma palavra nova que poderia ser utilizada para outras opções didáticas foi tratada considerando apenas a grafia. A resposta de repetição da conduta da professora correspondeu a realização da opção didática feita por ela.

Prosseguindo, ela pediu aos alunos para prestarem atenção e fez a leitura do texto (linhas 12 a 16). No momento da leitura, fez uma pausa para comentar o surto de hepatite55 que ocorreu na comunidade. Leo Moura disse: Eu , indicando que ele também havia adoecido na época (linha 24). A professora confirmou o posicionamento de Leo Moura Você pegou , e complementou dizendo que essa é uma doença que pode ser transmitida de uma pessoa para outra: A hepatite além de tudo/ela é uma doença que pega/ não é?/ De um passa/para o outro li has a .

Repetem-se a manifestação da apresentação de experiências das crianças e a escolha de focar o conteúdo planejado, descartando elementos que pudessem ampliar o estudo. O e e plo do estado da filha p io izado: Laura mesmo/ ficou muito ruim de hepatite li ha 30). O conteúdo foi tratado com ideias de perigo à continuidade da vida, perigo que já ocorreu na comunidade, forma de se evitar a doença, micróbios e bactérias como inimigos naturais. Não houve expecifi aç o de a a te ísti as do fi a ui ou de o se u ias da doe ça. A forma mais sucinta de encaminhar o estudo e o foco no medo que fragmenta os pensamentos a respeito do que é observado trazem a questão sobre como novas descobertas na área de saúde estão sendo exploradas por agentes de saúde e da educação. Hoje, discutem-se

55Tomei conhecimento do surto de hepatite que acometeu 22 crianças na comunidade quando conversava com

a professora Esmeralda, em outro momento anterior a essa aula. Em 2006, quando o fato ocorreu, a comunidade recebeu um projeto do Governo Federal para a construção de banheiros e muitas famílias foram atendidas por essa iniciativa governamental.

aspectos intrapsíquicos, sociais, culturais, políticos e econômicos do acometimento das doenças. Várias correntes da ciência verificam a importância de vírus e bactérias para manutenção da vida. Ainda que a televisão noticie descobertas, como verificamos a incorporação de novos conhecimentos ao nosso dia a dia e ao ambiente escolar?

De acordo com Manyak e Dantas (2010), a exploração do que as crianças têm a dizer sobre sua vivência em relação aos tópicos curriculares contemplados em sala de aula seria uma opção que estabeleceria permeabilidade entre o mundo dentro e fora da escola. Os comentários feitos pelas crianças poderiam ampliar as possibilidades de compreensão e significação do texto apresentado pela professora. Esta seria uma opção pedagógica que daria oportunidade aos alunos de serem reconhecidos como possuidores de vivências. Ainda que o conteúdo focalizasse informações sobre doenças provenientes da falta de saneamento básico, tratamento da água e higiene das mãos, uma outra condução no desenvolvimento dos trabalhos em sala de aula poderia fomentar a permeabilidade entre o mundo da comunidade e o espaço escolar, desenvolvendo pensamentos novos, conexões e atitude de pesquisa.

A professora prosseguiu com a leitura e a discussão do texto (linhas 31 a 36). Ao ler certa informação que constava no texto, declarou não ter feito a leitura anteriormente para a aula quando disse: [...] agora que eu vi isso ali/ que eu tava olhando./ Eu mesma não faço isso./ Eu achava que era sempre depois./ Ocês tão vendo? É antes e depois de usar , efe i do- se a um trecho do texto que afirmava ser necessário lavar as mãos antes e depois de usar o banheiro (linhas 45 a 54). Por um lado, verifica-se aí um destes momentos de aprendizagem, descoberta e surgimento de novos significados, pois a professora se surpreende com uma informação trazida pelo texto entregue aos alunos. Por outro lado, deve ser considerado que o preparo do material escrito a ser usado em sala de aula foi feito de forma apressada, talvez porque, muitas vezes, os professores praticam uma confiança excessiva nos textos de livros didáticos como se fossem aplicáveis a qualquer circunstância de ensino na sala de aula e que, se do o etos , não demandariam uma análise e preparo maior de sua parte.

Quando a professora reafirmou a importância de se lavar as mãos e exemplificou como deveria ser o comportamento das crianças com a higiene na hora do recreio, ela direcionou a seguinte pergunta aos alunos: L o a hei o te sa o? . Ronaldinho, que estava atento, foi logo respondendo: Te ... o . A professora afirmou que havia sim um montinho de sabonete lá. Ronaldinho, então, foi mais incisivo ao dizer: No dos funcionários tem . A

professora então justificou dizendo que Se não tiver é porque acabou (linhas 55 a 61). A fala de Ronaldinho indica a tensão entre o discurso da professora, autoridade naquele contexto, e a realidade dos fatos diante dos olhos do aluno que tem recursos para se posicionar, mas não tem acolhida sua participação. Nota-se aqui que os alunos podem observar, ao ter acesso à escrita na sala de aula, que o conteúdo de um texto não corresponde às atitudes que encontram nesse mesmo espaço institucional que lhes quer ensinar como proceder fora da escola, tornando o texto uma experiência estranha e distante das vivências dos alunos. A experiência é concluída por gestos que aumentam a desconexão. A professora apagou um dos lados do quadro e terminou a cópia do texto, saltou um espaço e es e eu Ati idades . O horário da aula terminou e ela pediu aos alunos que guardassem os cadernos.

Até aqui observamos que o acesso à escrita se dá pela exposição oral da professora e pela cópia do texto no quadro. Era objeto de atenção por parte da professora a grafia das palavras, a pronúncia, a pontuação, a acentuação, o espaçamento do texto e aspectos estruturais do texto. Um aspecto preponderante é o controle da professora acerca das discussões que permeiam o texto, evidenciando também o distanciamento do conteúdo em relação às experiênciasdos alunos. A professora nem sempre percebia os textos como possibilidade de articular o assunto com recursos de aprendizagem das crianças. Talvez porque no caso da disciplina trabalhada nessa aula - Ciências, a professora tivesse referências insuficientes sobre o assunto, ou porque acreditasse que o livro didático desincumbisse o professor de planejar suas aulas. Isto é, a ausência de planejamento para a aula, assim como a credibilidade, a comodidade e o conforto oferecidos pelo material pronto através do livro didático, como nos lembra Chartier (2007).

Outro aspecto a ser destacado sobre como o acesso à escrita se dá nesse contexto diz respeito à maneira como a grafia das palavras e a estruturação do texto na página do caderno são abordados pela professora. Essa preocupação da professora com a caligrafia dos alunos indicava um conflito no processo de aprendizagem dela, já que ela também não tinha um padrão constante de registro de letra cursiva. Por vezes, a professora misturava letra manuscrita e de imprensa quando registrava no quadro. A meu ver, esse fato também confundia os alunos, pois o que torna o traçado da escrita importante é a capacidade de distinguir letras de outros símbolos, bem como, ao ter acesso a ela, ser capaz de decifrá-la e

de produzir sentido em torno do que lê ou escreve. A preferência por registrar textos do gênero poema nas aulas de Ciências pode ser um aspecto que também confundia os alunos.

A partir das análises apresentadas neste capítulo, vimos que os alunos se deparam com palavras desconhecidas ou conceitos científicos ainda não compreendidos em palavras como e i oses e le a . Ao i te i , a p eo upaç o da p ofesso a foi es la e e a g afia e pronúncia correta de tais palavras. Isto reforça nossa interpretação de que a organização e condução das atividades com a escrita em sala de aula tinha como propósito principal a cópia do texto, pois não houve uma intervenção para esclarecer os conceitos, prejudicando assim a construção do sentido e significado das palavras. Quando a professora retomou a leitura do te to, out o o eito su giu: hepatite . Ele ta se ap o i a a das e pe i ias das crianças, no entanto, não se criou espaço para que as crianças se posicionassem. Isto reforça o predomínio da repetição de antigos métodos de ensino e a dificuldade de adaptar-se a novas demandas. Nesta tradicional abordagem do ensino, realçam-se a autoridade do professor e o uso de normas disciplinares rígidas para assegurar a atenção e o silêncio.

Em geral, os alunos não eram envolvidos na leitura do texto (na exposição oral da professora). Somente a professora leu oralmente a cópia do texto no quadro. Não se observaram benefícios nessa estratégia, no que se refere ao destaque que a leitura deve ter nos anos iniciais de alfabetização. Como entender que, justamente numa sala dos anos iniciais de alfabetização, a leitura não ocupe um lugar de destaque?

Ao longo do ano, o predomínio do trabalho com a cópia de textos de livros didáticos e do quadro não deu espaço para o contato e acesso a gêneros textuais diversos em seu suporte original. Não se explorou suficientemente o significado de palavras desconhecidas que surgiram no repertório dos alunos em sala de aula. A consulta ao professor ou ao dicionário não foi adequadamente realizada pelas crianças. A cópia do texto foi o principal exercício executado, tornando-se gesto mecânico e desvinculado dos processos de compreensão e produção de sentidos.

Segundo Chartier (2014, p. 79), a pia u a ati idade l ssi a ue pode se relacionada a um ato mecânico e repetitivo de escrita que mantém os alunos ocupados, sem uma compreensão sobre o que copiam, ou pode ser um ato i telige te do ap e diz . Para a autora, as atividades de cópia podem demandar um trabalho reflexivo por parte do aluno, isto é, se o professor, ao planejar o trabalho, considerar a cópia a partir de textos compostos em

classe, por exemplo, um relato de experiência, um resumo de história ou até mesmo um texto produzido coletivamente. Apesar de haver movimento de crianças trazendo para o espaço da sala de aula - seus recursos de aprendizagem - não foi percebido, nesse evento de letramento, a incorporação desses recursos derivados dos fundos de conhecimento na família aos saberes escolares. Macedo (2005) também evidencia atitude similar a essa (desconsiderar as experiências dos alunos) por parte de professores em sua pesquisa realizada na rede municipal de Belo Horizonte. Espaços de diálogo em que as crianças possam contar suas experiências em relação aos assuntos tratados na sala de aula, já seria um novo impulso para toda a comunidade, se houvesse a valorizaçãodos conhecimentos das crianças e das famílias do mesmo modo como assinalado nos estudos de Moll (1992) e nos trabalhos organizados por Manyak e Dantas (2010).

No próximo capítulo, prosseguiremos a análise sobre como os alunos têm acesso à escrita no espaço escolar por meio da descrição de outro evento de letramento que nos pe iti o he e o o a aç o de faze e e í ios so e o siste a de es ita foi ealizada pelos participantes da turma observada (Quadro 8 - Apêndice A).

Capítulo 10