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Evidências da presença da escrita em Jacarandá

Neste capítulo, retomamos as análises realizadas nos capítulos anteriores. A partir das questões iniciais que motivaram este estudo, buscamos compreender com que escrita as crianças se envolvem na comunidade e que escrita é valorizada em Jacarandá. Pautamo-nos em conceitos orientadores discutidos por teóricos que adotam a abordagem dos Novos Estudos do Letramento (STREET, 1989; HEATH, 1983; KALMAN, 2004; MOLL, 1992; MANYAK; DANTAS, 2010).

Tendo em vista nossa problematização, verificamos que a disponibilidade e o acesso à escrita encontram-se em muitos espaços da comunidade de Jacarandá. Os textos mais utilizados são aqueles que, de uma forma ou de outra, ordenam a prática social dos moradores (BARTON; HAMILTON, 1998). Como exemplo, podemos citar uma lista que relaciona os gêneros alimentícios de compras feitas na mercearia, o controle da distribuição de leite no posto de saúde e dados sobre a saúde dos moradores. Cartazes servem de convite para uma festa de aniversário, para um evento na escola e também nas campanhas de prevenção de doenças. Bilhetes intermedeiam as compras de produtos na mercearia, mas também servem para levar e trazer recados dos pais e outros moradores. Uma tabela relaciona as ligações telefônicas e as visitas da agente de saúde, além de organizar o jogo adedanha. A ata registra acontecimentos, comunicados, discussões das reuniões da Associação e da Cooperativa.

Os textos mais utilizados são aqueles que, de algum modo, organizam o cotidiano das pessoas na comunidade. Esses textos abrangiam registros de fatos e relacionamentos da vida local. Resumindo a presença da escrita na comunidade de Jacarandá, encontramos:

Escrita em locais da comunidade: placas de descentralização de recursos públicos nas ruas e em frente às instituições sociais, como a casa de farinha e o posto de saúde; anúncios e cartazes no posto de saúde, escola, igreja, mercearia, casas-bar; caderno de anotações no posto de saúde, na mercearia, no posto telefônico; no período das eleições municipais, outdoor, sa ti hos e f lde es dos a didatos fo a espalhados a o u idade.

Escrita em casa: Bíblia, livros de histórias infantis e de adultos, documentos pessoais e da aposentadoria, contas de luz, boletos de contribuições para a igreja do Divino Pai Eterno e outros boletos bancários, revistas, jornais, revistas de propagandas de produtos, embalagens

de produtos, CD, DVD, calendários, livros didáticos, revistas de receitas, mensagens bíblicas, cadernos de atas, folhas avulsas, agendas, celulares, computador, cadernos de receitas, cadernos escolares e outros.

Os registros de nascimentos, casamentos, falecimentos, eram guardados por instituições em Ibiaí. Contudo, os moradores tinham acesso a certidões de nascimento, casamento ou óbito, identidade, CPF, cartões de banco, etc.

Ao identificar a disponibilidade da escrita nos espaços de vida das crianças como ambientes propícios ao acesso à escrita na comunidade, estabelecemos diversas situações em que a escrita promove letramentos, como nas situações descritas por Kalman (2004), em situaç es de a da tes, de andaime e voluntárias". O Quadro 5 a seguir mostra essas situações de acesso à escrita.

Quadro 5 - Situações de acesso à escrita na comunidade Situação

geradora

Características Na comunidade de Jacarandá Entre as crianças colaboradoras da pesquisa Demandante Exige leitura ou

escrita para participar.

Firmar o recebimento do serviço de saúde;

Firmar a utilização do serviço telefônico;

Firmar compras na mercearia; Firmar compras da Avon; Escrever um bilhete.

Escrever o ditado na aulinha;

Escrever no fogão a lenha, na parede e na porta durante a brincadeira; Escrever no jogo adedanha; Escrever mensagem no celular. Andaime Cooperação de outras pessoas para a leitura ou escrita.

Ler receitas médicas; Ler bulas de remédios;

Apoiando a tarefa de casa dos filhos;

Lendo bilhetes dos pais.

Ler histórias infantis; Ler e escrever cartinhas; Escrever durante a aulinha; Escrever no jogo de adedanha;

Leitura de pesos e medidas; Fazer atividades da escola (cooperação entre Alice, Fernanda e Rivaldo). Voluntária Uma pessoa lê e

escreve, de maneira independente, como forma de participar.

Ler as placas no posto de saúde e casa de farinha;

Ler cartazes na comunidade; Ler os rótulos dos produtos; Escrever dados da saúde dos moradores;

Escrever um bilhete; Ler panfletos de candidatos.

Ler histórias infantis; Ler os cartazes na comunidade; Escrever cartinhas e mensagens no celular; Escrever no jogo adedanha e na aulinha.

Fonte: Adaptado de Kalman (2004).

O Quadro 5 mostra algumas das situações em que a presença da escrita propiciou a participação dos moradores da comunidade de Jacarandá. As três situações geradoras de participação (demandante, andaime, voluntária) em torno da escrita estão presentes nesse

contexto. Em muitas situações, elas ocorriam simultaneamente, como, por exemplo, uma situação demandante e uma situação voluntária – escrever um bilhete para compras na e ea ia. As t s situaç es o o e a ta o jogo adeda ha . Qua do Nei a solicitou que eu au iliasse Felipe a es ita, foi u a situaç o de a dai e Ve apítulo , seção 5.3). Ao sortear uma letra, a criança recordou uma palavra a ser escrita, o que ep ese ta u a situaç o olu t ia , e o so teio da let a, po e e plo, a let a i , e igiu uma situaç o de a da te pa a es ita de pala as o essa let a. Out a situaç o ua do o pai escreve um bilhete. Primeiro, verifica que produto necessita comprar - é uma situação demandante. Depois, chama o filho e mostra o que deve buscar na mercearia - é uma situação de andaime (Ver capítulo 4, seção 4.3).

A respeito dos cartazes que informavam sobre a prevenção de doenças, no posto de saúde, as evidências de que os moradores tinham acesso às informações vieram das conversas com a agente de saúde e com moradores. O serviço de atendimento aos pacientes exigia deles a assinatura em fichas que confirmassem o procedimento. Os moradores também tinham acesso a outros documentos de controle do serviço de saúde, como cartões de vacinação, onde se registravam a imunização de crianças e adultos; o registro do recebimento do leite; os dados de controle do pré-natal e outras. Os textos no caderno da agente de saúde e as fichas médicas serviam, em muitos momentos, como um diário da saúde dos moradores, já que por meio deles o médico e o paciente podiam resgatar aspectos ou acontecimentos que serviriam para compreender sua condição de saúde.

No posto telefônico, a interação na utilização dos serviços era intermediada pelo registro de controle das ligações feitas no caderno através de uma tabela. Um adolescente poderia assumir a tarefa na ausência da responsável pelo serviço, e essa flexibilidade era reconhecida pelos moradores. O bilhete, gênero textual que circulava na comunidade, era um instrumento importante nas negociações comerciais entre o dono da mercearia e os clientes. As compras feitas com a revedendora da Avon eram intermediadas pela leitura dos produtos da revista, e o interesse por alguns deles precisava ser firmado com a assinatura ao lado do produto.

Em todas essas circunstâncias de evento de letramento - atendimento da agente de saúde, utilização do telefone, compra de produtos na mercearia e da Avon -, um padrão que surgiu foi a assinatura como forma de acordar o serviço. No entanto, existe uma diferença

entre o serviço da agente de saúde e o serviço telefônico, na mercearia e na compra de produtos da Avon. O serviço da agente de saúde precisa da assinatura do paciente como forma de confirmar o cumprimento de sua atribuição. Já a assinatura nos casos do posto telefônico, da mercearia e da revendedora da Avon, ao assinar, o comprador assumia a responsabilidade civil por seus atos, isto é, relações pessoais, sociais e de consumo que implicavam deveres morais. Percebem-se, nesses casos, relações de poder permeadas pela escrita (Ver capítulo 4). Por outro lado, os registros da agente de saúde contêm dados da vida de uma pessoa e facilitam o acompanhamento médico e familiar, além de serem utilizados como estatísticas sociais e dados institucionais. As outras situações descritas geram informações de atos comerciais e de consumo.

Vi os ta ue a es ita est utu ada e fo a de ta ela relaciona as ligações telefônicas, mas tam o ga iza o jogo Adeda ha . Muitas das fi has p ee hidas o posto

de saúde ta se utiliza da ta ela . O ilhete ta p o o e a o u i aç o entre

os pais e a escola, entre os pais que moram fora da comunidade e seus filhos e/ou outros parentes e amigos. A correspondência também é um instrumento de interação entre as crianças e uma forma de expressão de sentimentos e valores. Um padrão presente nas correspondências entre as crianças foram os valores religiosos.

Nas brincadeiras de aulinha, os textos escritos encontrados na casa ganham sentido e significado para as crianças; um livro de história pode fazer parte da brincadeira de aulinha; a escrita pode se materializar na porta ou parede da casa como se estas fossem o quadro negro. Os lugares da casa são espaços que oferecem disponibilidade e acesso à escrita. A escrita nesses espaços tem finalidades diferentes, como, por exemplo, organizar as compras, registrar reuniões e prestação de contas e outros. O ambiente familiar disponibiliza recursos às crianças em seu processo de letramento, incentivando e providenciando orientação e apoio de irmãos, parentes, ou materiais ao seu alcance. Esse espaço é reconhecido pelas crianças como também um lugar de aprendizado. Os pais, em sua maioria trabalhadores rurais, possuem saberes locais ou fundos de conhecimento muito específicos, que transformam as relações sociais no cotidiano familiar, auxiliando os filhos nas atividades escolares como mencionadas por Dona Simone, isto é, criando uma rede de apoio às crianças.

Para os pais, a escola na comunidade preenche um espaço importante e tem melhorado muito desde o seu início. Eles ainda anseiam pela ampliação da oferta de outros

níveis de ensino na comunidade. Isto traria maior conforto e menos desgaste para os seus filhos.

A descrição e a análise de eventos de letramento com base nas observações e entrevistas permitiram conhecer como a escrita está disponível na comunidade e de que forma as crianças têm acesso a ela. Observou-se que a escrita está presente no cotidiano das pessoas de Jacarandá de maneira diversa e que o acesso à escrita na comunidade envolve as crianças em diferentes interações. Esses dados contrapõem a percepção preconceituosa de pessoas que moram próximo a Jacarandá em relação aos saberes das crianças da comunidade de Jacarandá. De tudo que foi evidenciado até aqui, insistamos, em Jacarandá os moradores se envolvem em eventos e práticas de letramento cotidianamente. No entanto, muitos não se reconhecem como letrados e veem a escola como instituição fundamental na promoção do letramento.

Conforme o padrão cultural e tecnológico dessa comunidade a escrita é funcional e eficiente. O padrão de leitura é incipiente e a riqueza que oferece é pouco explorada. Nos próximos capítulos deste trabalho analisaremos eventos de letramento dentro da escola. Interessa-nos observar a disponibilidade e o acesso à escrita no espaço escolar.

Capítulo 8