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Questionando a escrita – Jacqueline, como se escreve algazarra?

Ensinando a escrita de palavras: o que significa algazarra?

10.3 Questionando a escrita – Jacqueline, como se escreve algazarra?

No evento de letramento apresentado neste capítulo, a lista de palavras da atividade ortográfica trouxe muitas dúvidas para todos os alunos. Em determinado momento, quando a professora ensinava a atividade para Rivaldo, ela ficou irritada com as solicitações dos alunos em volta de sua mesa e se retirou da sala. Antes de sair, ela se dirigiu a mim e disse: Oh::: Jacqueline, dá u a olhadi ha aí … ual ue oisa ue eu vou ... se o Rivaldo o dese volve u a . Depois, deslocou-se para a Secretaria levando consigo Rivaldo.

Logo que se retirou da sala, os alunos caminharam sucessivamente até a carteira em que eu estava posicionada, a fim de tirar dúvidas. A Tabela 12,mostra esse momento em que participei da atividade de ortografia. A tabela foi organizada da seguinte maneira: na primeira coluna, está a marcação das linhas; na segunda, os colaboradores; na terceira, as falas e ações. Nessa transcrição observamos vários aspectos, como o processo de reflexividade da pesquisadora; as dúvidas dos alunos em relação à escrita das palavras perpassa o significado das palavras; o atendimento individualizado, quando os alunos não compreenderam as regras

ortográficas, é cansativo para o professor; na interação com a escrita entre os alunos e professora estão presentes relações de poder.

Tabela 12 - Algazarra, o que é isso?

Linha Colaboradores Falas/Ações

1 Alan Olha aí, Jacqueline, vê se tem alguma errada?/ É que eu tô quereno pintar.

2 Pesq. Isso aqui é jara?/ Não tá faltando nada, não?/ É o u e e s ?/ O som pra ficar

o o o e e i i ial/ u e e s o eio?

3 Alan Jarra.

4 Pesq. Então aqui/ ocê marcou errado.

5 Alan É só ela?

6 Pesq. É. /(ss) Que palavra que é essa aqui?

7 Alan Agradar.

8 Pesq. Agarrar, não é?

9 Alan É.

10 Neimar A ui s u e e Ala ?

11 Pesq. N o u e e s o. Respo do a pe gu ta feita pa a Ala

12 Neimar A ui a últi a u e e s ? Nei a e pe gu ta ai da se ue e a edita

13 Pesq. L o u e e /só pra ver como vai ficar./(ss) Alga...

14 Neimar Algaza.../ não sei não.

15 Pesq. Pode ficar algazara?/ Você fala assim /ou ocê fala algazarra?

16 Neimar Eu falei com Dudu pra pôr./ Ele pôs /e tia falou que tava certo./

17 Pesq. Não./ É e t e vogais …/ olha lá!/ ((mostro a explicação no quadro))/ Entre vogais fica

dois e es /pra ficar como o som inicial.

18 Alan Está certo?

19 Pesq. Isso aqui tá depois de consoante?

20 Alan Tá.

21 Pesq. Isso aqui é consoante?

22 Alan Oh::: não é, não.

23 Neimar Oh::: Ja ueli e o dois e e , não é?

24 Cristiano A última é algazara?

25 Pesq. Não, é algazarra.

26 Alan Olha aí, tia. ((Me chama de tia))

27 Cristiano Algazarra, o que é isso?

28 Pesq. É quando uma pessoa faz muito barulho,/ muita bagunça/ chama algazarra./ Vocês

estavam fazendo algazarra aqui /quando a professora saiu./ Estavam gritando.

29 Alan Olha aí, oh?

30 Pesq. Aqui oh::: é consoante?/ Aqui tá errado./ Só uma que tá entre consoante./ Olha aí, eu acho que é./ Eu não tô vendo outra não./ Aqui também tá errado, olha.

31 Alan Qual?

32 Pesq. Aqui. /Ja a ta o dois e es , não?

33 Alan É. Certo?

34 Pesq. Certo.

35 Alan. Eu posso pintar.

36 Pesq. O que ocê vai pintar aí?

37 Alan. Ah::: rs::: rs::: rs:::

38 Pesq. A ui o dois e es ,/ ocê não lembra que ela explicou lá no quadro/entre

o soa te e vogal u e e s . /((Ronaldinho me entrega sua atividade))

39 Ronaldinho É mesmo.

40 Profa. Cadê, tá tendo carnaval aí dentro?/ Quem terminou recorte e cole no caderno de Português apenas. /Só isso, tá?/ ((Chega até a porta da sala))

41 Cristiano Oh tia, espera aí?/ Nei a falou ue essa palav a a ui o dois e e ./ ((corre até

a porta para confirmar a grafia da palavra))

42 Profa. Que palavra é essa aí?

43 Cristiano Algazarra.

45 Cristiano Algazara.

46 Profa. E existe algazara?

47 Cristiano Não.

48 Profa. E t o a palav a…

49 Cristiano Algazarra.

Fonte: Trabalho de Campo, 2012.

Na interação descrita na Tabela 12, os alunos estavam agitados com a atividade, queriam se ver livres dela. Eu tive dificuldades de dar assistência, ao mesmo tempo, a todos os alunos que se posicionaram ao meu redor. Sentia que reproduzia a mesma forma de intervenção realizada pela professora. Alan foi o primeiro a se aproximar e perguntar: Olha aí, Jacqueline, vê se tem alguma errada?/ É que eu tô quereno pintar" (linha 1). Olhei a ati idade e pe e i a pala a ja a g afada o ape as u e e . Pe gu tei: "Isso aqui é jara?/ Não tá faltando nada, não? /É o u e e s ?/(ss)/ O so p a fi a o o o e e inicial / u e e s o eio?" li ha . Ele espo deu: Jarra li ha 3). Apontei para a tabela na atividade e indiquei que a classificação também deveria ser verificada. Ele, então, perguntou: É só ela? (linha 5). O se ei ta ue a pala a aga a ha ia um equívoco e fiz a intervenção.

No momento das solicitações de Alan aproximaram-se Neimar, Cristiano e Ronaldinho e o eça a u a dis uss o e to o da pala a algaza a li has a . Most ei, apontando no quadro, a explicação da professora, que o e e est e t e ogais, po isso e a e ess io es e e o dois e es . C istia o, duvidando da explicação, me perguntou: Algaza a, o ue isso? (linha 27). Tentei contextualizar a palavra ao observar que sua difi uldade esta a a o p ee s o do o eito: É quando uma pessoa faz muito barulho,/ muita bagunça /chama algazarra./ Vocês estavam fazendo algazarra aqui /quando a professora saiu./ Estavam gritando (linha 28). A discussão continuou; no entanto, percebi que Cristiano se mostrava desconfiado.

O barulho das crianças na sala de aula aumentou, a professora apareceu na porta e pe gu tou: Cadê, tá tendo carnaval aí dentro?/ Quem terminou recorte e cole no caderno de Português apenas./ Só isso, tá?/" (linha 40). Cristiano correu até a porta, para confirmar com a professora a grafia da palavra algazarra. Observei que, ao perguntar à professora sobre a palavra, ele citou o conflito com Neimar, omitindo minha participação no evento. Talvez porque fosse uma regra não pedir ajuda de outras pessoas que não fossea professora. Isto evidencia que relações de poder permeiam as interações professora/aluno dentro da sala de

aula. Esse é um aspecto relevante da interação neste evento, a atitude do aluno ao mostrar quem era a autoridade na sala de aula. É à professora que o aluno deve se reportar. Interessante também observar a interação que ocorreu entre Cristiano e Neimar em torno da pala a algaza a .

Quando Neimar se aproxima de mim e pergunta sobre a escrita da palavra, ele também desconfia de minha afirmação e diz que a professora já havia falado que a palavra que ele es e e a esta a e ta, ou seja, algaza a - Eu falei com Cristiano pra pôr./ Ele pôs /e tia falou que tava certo (linha 16). A desconfiança não é desfeita nem quando mostro no quadro a explicação da professora e nem com a exemplificação do conceito, pois Cristiano precisou recorrer à professora: Oh tia, espera aí?/ Neimar falou que essa palavra aqui é com dois e e . A us a de C istia o ju to ao olega pa a es la e e a es ita da pala a algaza a indica que essas crianças interagem com a escrita em situações de andaime (KALMAN, 2004), isto é, criam oportunidades para cooperar com os colegas em eventos de leitura e escrita. Nesse momento essa não foi uma ação proposta pela professora, pois a atividade deveria ser realizada individualmente.

Registros de atividades envolvendo a ortografia com a letra o ade o dos alu os indicavam que a professora tinha trabalhado outras vezes com essa mesma regra ortográfica. Em uma das atividades ela pediu aos alunos que recortassem de jornais e revistas palavras o as let as e e olasse o ade o. O servei posteriormente, na aula 49, no mês de agosto, durante outra atividade para emprego da mesma regra ortográfica, certa insegurança po pa te dos alu os e a e essidade de o fi a o a p ofesso a o e p ego das let as e .

Examinando o acesso à escrita nesse evento de letramento, é possível afirmar que o ensino da ortografia na sala de aula com o qual os participantes estavam envolvidos se realizava pelo aprendizado da grafia e pronúncia de palavras. Quando havia uma regra ortográfica a ser aprendida, esta era feita pela exposição oral da professora e por algumas atividades de memorização da escrita das palavras. Os alunos encontravam dificuldades em memorizar e compreender as regras. Isto se devia ao ensino descontextualizado da ortografia, pois, quando os alunos se deparavam com palavras desconhecidas, demonstravam dificuldades de relacionar os conceitos com seus contextos de uso. Por exemplo, a palavra algaza a , ue e a des o he ida pelos alu os e, pelo isto, pou o utilizada a uele contexto. Curiosamente, vimos que, nesse dia, quando a professora retorna à sala de aulanão

utiliza a palavra algazarra para se referir ao barulho dos alunos. Ela pergunta: Cadê tá tendo carnaval aí dentro? , indicando quea pala a carnaval seria mais comumente utilizada para se referir ao alvoroço das crianças.

Uma abordagem mais crítica do ensino com a ortografia propõe que o professor seja o mediador, oferecendo possibilidades de construção do conhecimento e sendo fonte de esclarecimento quando a informação precisar ser transmitida ao aluno (MORAIS, 2009). Percebi que a reflexão sobre a ortografia não estava presente no trabalho desenvolvido na sala de aula e nem quando era preciso esclarecer as dúvidas ortográficas dos alunos. Na perspectiva de Morais (2009), o estímulo à curiosidade possibilita a apropriação crítica, criativa, significativa e duradoura dos conhecimentos. Para o autor, o ensino da ortografia precisa ser tratado como objeto de reflexão. É necessário desenvolver nos alunos uma atitude de curiosidade sobre a língua escrita.

Morais (2009) ressalta ainda que, por sua natureza de convenção social, o conhecimento ortográfico não pode ser descoberto pela criança sem mediação do outro. Esta afirmação do autor nos remete aos pressupostos de Kalman (2004) quando afirma a i po t ia de situaç es de ai dai e o acesso à escrita. Para Morais (2009), o ensino da ortografia precisa ocupar um espaço significativo no planejamento dos professores, visto que a comunicação escrita é a maneira possível de ampliar as relações no meio social. É justamente por isso que a sociedade estabelece as normas ortográficas. Morais (2009, p. 27) explicita que

A o tog afia fu io a assi o o u e u so apaz de istaliza a es ita as diferentes maneiras de falar dos usuários de uma mesma língua. Escrevendo de forma unificada, podemos nos comunicar mais facilmente. E cada um continua tendo a liberdade de pronunciar o nosso texto à sua maneira quando, por exemplo, o lê em voz alta.

As atividades que envolveram o sistema de escrita nessa sala de aula não se alteraram durante todo o ano escolar. No trabalho com a ortografia, a professora oferecia acesso à escrita por meio das explicações orais, registros no quadro, no atendimento individualizado e exercícios sistemáticos de recapitulação da escrita de palavras. Isto é, o ensino da ortografia se limitava à aprendizagem da grafia e da pronúncia das palavras. Ainda assim, a força para realizar a educação se mantinha nessa sala, principalmente pela relação estabelecida entre professora e alunos. Os ingredientes para a identificação estavam disponíveis: a professora era admirada, queriam fazer como ela, queriam atendê-la, queriam participar com ela, confiavam no saber dela.

Quero sugerir (sem, obviamente, pretender esgotar as outras leituras possíveis dessa maneira de trabalhar o sistema de escrita) que a concepção de ensino por meio do atendimento individualizado, ministrado de forma mecânica e descontextualizada, não traz benefícios nem para o professor nem para os alunos. Primeiro, porque o trabalho do professor, além de exigir muito esforço, se torna cansativo; segundo, porque deixa os alunos ansiosos e desejosos de se verem livres da atividade.

No próximo capítulo, prosseguiremos com a análise dos eventos de letramento evidenciando o acesso à escrita em outras ações frequentemente realizadas na sala de aula:

CAPÍTULO 11