• Nenhum resultado encontrado

2 1 A organização do trabalho prescrito e real

3.4. Dispositivos da clínica do trabalho

A clínica do trabalho caracteriza-se por alguns dispositivos: a demanda, a elaboração e perlaboração, a construção de laços afetivos, a interpretação e a formação clínica (Mendes & Araújo, 2012).

A demanda é dirigida a pesquisadores, que se orientam pelo método científico. Pode ser de um grupo de trabalhadores, de uma instituição e/ou dos pesquisadores interessados em determinado trabalho. A demanda precisa ser traduzida para o coletivo de pesquisa como algo que não será satisfeito, será sempre um processo de negociação e estabelecimento de compromissos entre trabalhadores e pesquisadores (Mendes & Araújo, 2012).

O clínico deve ser capaz de dar visibilidade à demanda e analisar sua viabilidade antes de iniciar o trabalho. Também deve ficar clara a independência do pesquisador,

uma vez que podem ocorrer resultados que suscitem contradições com relação à gestão da organização do trabalho.

Elaboração e perlaboração são termos que a psicodinâmica do trabalho adota para se referir ao processo pelo qual os sujeitos saem de uma condição paralisada e buscam construir soluções para os próprios conflitos no trabalho (Mendes, Alves & França, 2011). A perlaboração, segundo Laplanche e Pontalis (1988), é o processo pelo qual a análise integra uma interpretação e supera as resistências que ela suscita. É uma espécie de trabalho psíquico que permitiria ao sujeito aceitar certos elementos recalcados e libertar-se da influência dos mecanismos repetitivos.

A perlaboração do sofrimento funciona como uma reapropriação que permite ao sujeito retomar o controle da situação. Essa reapropriação ocorre quando o sujeito não suporta passivamente as pressões do trabalho e reage a elas. Ele pode, inclusive, ter usado estratégias de defesas, mas que foram abandonadas após a ressignificação do trabalho. Segundo Heloani e Lancman (2004), é a reapropriação que pode permitir aos trabalhadores a mobilização que vai impulsionar as mudanças necessárias para tornar o trabalho mais saudável.

A perlaboração do sentido do trabalho gera prazer. Segundo Martins (2010), para haver produção de sentido e elaboração das vivências subjetivas relacionadas ao trabalho, é necessário que a escuta permita a compreensão de novos significados do discurso e não apenas ouvir os trabalhadores. Para Karam (2010), é importante que o clínico do trabalho respeite o “tempo do psiquismo” que é um instrumento essencial à elaboração e à perlaboração das estratégias coletivas de defesa nos coletivos de trabalho.

Como Mendes e Araújo (2012) propõem, a perlaboração propicia a reintegração da historia do sujeito no trabalho. A elaboração psíquica envolve, ao mesmo tempo, o pensar, o sentir e o falar, não permitindo a distinção entre pensamento e ação. Ao falar, o trabalhador rememora os acontecimentos e tem a possibilidade de reconstruir um significado para suas lembranças. Dessa forma, o trabalhador sai do relembrar para reescrever uma história.

No trabalho, a confiança, a cooperação, o comprometimento, o reconhecimento e a construção do coletivo de trabalho surgem dos laços afetivos. Para Mendes e Araújo (2012), o fato de não conviver no cotidiano de trabalho pode ser um dificultador para criar o espaço de discussão, não significando que a convivência o garanta. Para confiar é preciso conhecer o trabalho do outro. Também é importante romper com os laços perversos (violência, assédio moral, submissão, humilhação, servidão).

A construção de laços afetivos visa tornar o sujeito confiante para falar do seu trabalho e tentar descobrir e compreender o que está se passando com ele e com o outro (Mendes, Alves & França, 2011).

A interpretação é um elemento que configura a atividade clínica, assim como a perlaboração e a observação clínica (Dejours, 1992; Mendes, Alves & França, 2011). A interpretação ocorre na investigação do significado da fala; na observação dos gestos, das posturas e dos tons de voz; na experiência e nos referenciais teóricos do coletivo de supervisão, sobretudo para esclarecer o conteúdo manifesto e latente sobre a organização do trabalho e as vivências de prazer-sofrimento. A interpretação é voltada para as análises das estratégias de defesas (Mendes & Araújo, 2012).

A interpretação pode ser uma digressão para esclarecer, analisar, comentar um assunto em foco de forma que as pessoas possam compreender os fatos, mas é diferente do contexto de psicoterapia, que é voltado para os conflitos pessoais. Para Dejours (2004b), a interpretação remete à verdade de uma relação dos trabalhadores com o seu trabalho e de uma relação com o coletivo de trabalho, mas uma interpretação inadequada pode paralisar o grupo e interromper a discussão.

A interpretação desencadeia o surgimento de novos temas, ou seja, de novas temáticas de discussão, de novos relatos, de novos comentários, que ampliam os objetivos, encadeiam-se às interpretações, que, retomadas, sofrem transformações que devem justamente ser detectadas (Dejours, 2004b, p 109).

Para a psicodinâmica do trabalho, os trabalhadores são as pessoas mais indicadas para encontrar as soluções e oferecer sugestões para transformar a organização do trabalho. As explicações dadas pelos trabalhadores ao clínico podem ser fecundas quando eles passam a formular coisas que nem eles próprios tinham claro antes de formulá-las discursivamente para uma pessoa de fora (Dejours, 1999, 2004b).

Mendes e Araújo (2012) propõem que o pesquisador em clínica do trabalho deve voltar sua interpretação aos comentários do coletivo, preservando o indivíduo. A análise e as interpretações das situações de trabalho dadas pelos pesquisadores e trabalhadores asseguram a validade do material coletado à medida que participa um grupo de pesquisadores que confronta permanentemente o conteúdo das sessões entre si e com o próprio grupo de trabalhadores no momento da realização da pesquisa.

O clínico deve perceber o que é ocultado pelo coletivo em relação aos modos de engajamento no trabalho. Para isso precisa ter formação técnica, ética e afetiva. A percepção e a subjetividade do clínico irão influenciar no contato com os trabalhadores.

Não é a leitura da teoria e a reprodução dos passos metodológicos que garantem um fazer clínico. A prática da escuta e da interpretação, articulada com a teoria, oferece robustez ao papel do clínico na busca da mobilização subjetiva e do coletivo de trabalho (Mendes & Araújo, 2012).

As habilidades do profissional são fundamentais para a prática clínica. O clínico do trabalho deve observar as estratégias de defesa utilizadas pelos trabalhadores e desvelar o processo de realização do trabalho. O clínico ajuda o grupo a entender quais são os problemas e as condições de trabalho inadequadas que estão afetando o trabalhador e principalmente os efeitos psíquicos disso. Para isso, ele conta com sua formação, experiência e capacidade de suportar o imprevisível e identificar o não dito nas relações de trabalho (Mendes & Araújo, 2012).

Para exercitar essa prática clínica, o pesquisador deve ser ativo e desenvolver saberes sobre o trabalho e o sofrimento humano. O clínico deve usar a atenção flutuante, em consonância com o proposto pela psicanálise, para captar o movimento geral do grupo, as inter-relações, os silêncios, as falas, as resistências e os anseios. Deve auxiliar o trabalhador a tornar visível o invisível, descobrir o oculto e o desconhecido sobre suas relações com o contexto de trabalho, no momento em que lhe é permitido pensar, junto com o pesquisador, as suas experiências (Mendes, Araújo & Merlo, 2011).

De acordo com Dejours (2004b), o trabalho psíquico do pesquisador causa efeitos sobre o desenvolvimento dos comentários e da discussão com os trabalhadores, no decorrer da pesquisa. O clínico deve ser alguém que se torna disponível para ouvi o grupo, ter paciência, responsabilidade, comprometimento e estar atento à condução da discussão. Deve dar oportunidade para que todos falem sobre o trabalho. Deve ter interesse em conhecer o modo como os trabalhadores se empenham para dar conta de realizar o trabalho e ser capaz de analisar os recursos utilizados por eles para se manter trabalhando.

Para Molinier (2003), a psicodinâmica privilegia a intersubjetividade, o que envolve a mobilização da subjetividade do pesquisador ao ter acesso à subjetividade dos participantes. Para a autora, isso exige muito do pesquisador, que se não tiver experiência de trabalho e de ser receptivo às dimensões intersubjetivas, não conseguirá realizar a clínica do trabalho.

Segundo Mendes e Araújo (2012), a prática da escuta é indissociável da subjetividade do clínico. O profissional deve ser um aprendiz de si mesmo e dos seus afetos. A capacidade de se afetar e de afetar o outro cria espaço para a mobilização, para ressignificar o sofrimento e para agir sobre a organização do trabalho.

Deve ficar clara a independência do pesquisador para realizar a clínica, uma vez que podem ocorrer resultados que suscitem contradições com relação à gestão da organização do trabalho. Além disso, fazer a clínica implica um sofrimento frente ao real, o que requer condições profissionais e institucionais para a mobilização subjetiva do clínico. O clínico também deve ser um crítico social e desempenhar um papel político, pois é um trabalhador e faz parte de uma organização do trabalho que também pode ser marcada pela precarização, injustiças, opressão, dominação, ideologias produtivistas, gerando sofrimento patogênico (Mendes & Araújo, 2012).