• Nenhum resultado encontrado

Etapa III: A Análise clínica da mobilização do coletivo de trabalho é a articulação entre as duas etapas.

5. Organização do trabalho

5.11. Transgressões e riscos na aviação

Na aviação, prega-se a doutrina de não transgredir e manter o limite de segurança operacional. A transgressão está relacionada ao não cumprimento do prescrito (normas, regulamentos, procedimentos, checklist). Transgredir pode ocasionar riscos para a segurança e sobrevivência da tripulação. Além disso, pode haver cassação de licenças e certificados de pilotos quando eles colocam em risco a vida da tripulação se envolvendo em acidentes.

As transgressões, segundo a doutrina da aviação, dividem-se em erros e violações. O erro é uma ação incorreta ou equivocada, sem o componente intencional. Seria causado por lapsos, deslizes, descuido, falta de critério, negligência, etc. Na violação, a ação incorreta acontece intencionalmente. O profissional sabe que é errado, mas faz (Moreira, 2001b, Pereira, 2001).

Comete-se o erro por julgamento errado, por falta de conhecimento, por falta de treinamento, por condicionamento errôneo. Quando há erros, a tripulação tenta corrigir. “Essas correções que acontecem desses erros que possam acontecer são inerentes à profissão também”.

Toda a doutrina que o piloto recebe visa evitar falhas por incompetência, despreparo ou falta de compromisso e responsabilidade. Porém, as pessoas se acostumam a transgredir se ninguém chamar a atenção delas. Vai-se transgredindo pouco a pouco e o limite de transgressão aumenta. Não se pode permitir que a pessoa se acostume a pilotar transgredindo. Ao se identificar transgressões feitas durante o voo, o Conselho de voo deve chamar o piloto e inibir e coibir esse tipo de atitude.

Quando um piloto transgride, a tripulação deve registrar isso em relatório. Quem aceita a transgressão do outro (complacência) acaba pondo em risco a própria vida. “Um exemplo típico de transgressão, é, por exemplo, quando a pessoa começa a voar com mal tempo. A primeira vez que ela voa com mal tempo, é um negócio pavoroso, aquele vento, aquela turbulência. Ele não estava enxergando muito bem, daí ele começou a fazer uma curva prum lado, começou a fazer pro outro, deu certo. Aí, passa algum tempo, pega um mal tempo novamente. Aí ele já teve a primeira experiência. Já passei por isso. Se daquela vez deu certo... ele começa a forçar mais ainda a barra. Chega um ponto, que ele acha que é capaz de voar dentro da nuvem. Mas, porque se acostumou com aquela situação. Foi transgredindo um pouquinho, sem ninguém chamar a atenção dele e o limite aumentou. Até que vem e acontece o problema”.

Na atividade aérea, não se tem a intenção de ficar punido ou culpando ninguém. Muito menos de ficar comentando que a pessoa errou ou discriminá-la por ter errado. Há o hábito de não expor o grupamento ou a pessoa que cometeu o erro. Quando acontece alguma coisa que a tripulação percebeu que poderia ter gerado uma situação de perigo, ela é incentivada a relatar o erro, como forma de prevenção de acidente. “Tudo que acontece deve ser relatado e a gente deve motivar para que as pessoas relatem pra que não aconteça novamente”. Dessa forma, todos os erros são expostos e dependendo do caso é feito um relatório de aviação civil, que é elaborado da forma mais impessoal possível, sem nomes, sem horário, sem local, sem identificações, para não constranger

ninguém. Por meio do relatório, gera-se uma relação de recomendações que são feitas para que isso não aconteça novamente.

A tripulação deve ter maturidade para lidar com os próprios erros e corrigi-los. O piloto deve aceitar que errou e assumir seus atos e não ficar justificando racionalmente o que fez, pois negar um erro pode levar a tripulação a sofrer acidente. Como reconhecer que falhou é algo que vai contra as características narcísicas da personalidade, a tripulação precisa ser bem treinada para não transgredir, pois “a liberdade é muito grande no helicóptero”. “Se a pessoa não tiver, ela mesma, uma doutrina muito forte, ela infringe isso aqui o tempo inteiro”. O piloto necessita ter controle emocional para ter controle do equipamento (helicóptero). “... pela mobilidade que o helicóptero dá, de você poder pairar, subir, descer, girar, pousar em área estreita, fazer rapel... O helicóptero te dá essa gama de possibilidades...”.

O piloto deve refletir sobre o que quer fazer e mensurar se compensa fazer. Para se fazer um voo pairado, por exemplo, o piloto deve mensurar se compensa. “Que benefício de segurança vai trazer? É imprescindível que você faça esse voo pairado? Então você julga e vê se vale a pena ou não”. Com o passar do tempo e com a experiência, percebeu-se “que nem sempre vale a pena você fazer um voo pairado para visualizar alguma coisa”. Começaram, então, a passar para os outros pilotos para evitar o voo pairado, que só deve ser feito em necessidade extrema.

Um fator que também influencia nas transgressões durante o voo é a formação do piloto. É diferente ser formado em escolas homologadas e na Marinha, por exemplo. No meio militar, pelos riscos inerentes à profissão, os pilotos são treinados a se expor mais ao risco do que na aviação civil. Também quando se treina em grupamento que assume um risco maior, o piloto acaba incorporando esse modo de pilotagem e quando retorna para seu grupamento, pode ser perigoso reproduzir esse modelo. Porém, há transgressões que põe em risco a segurança do voo, pois a pessoa com “perfil agressivo de voo” entra em situação de risco desnecessariamente. Conforme Pereira (2001), ao afrontar o perigo, se despreza a segurança. O ideal é que se siga o padrão de segurança operacional e quando se deixa de cumprir uma regra, que deveria seguir, de forma consciente, se está transgredindo.

Na aviação, o perigo, por se estar voando, é constante. Porém, o risco pode ser minimizado e administrado com treinamento, com a proficiência do piloto em situações de emergência, com cursos de segurança de voo e com supervisão eficiente de manutenção. Tenta-se prevenir os riscos e amenizar as situações em que os acidentes aconteçam.

O risco também pode depender do tipo de voo e da necessidade da missão de cada corporação. Voar em missões de outras corporações, em que o treinamento é mais exigente e arriscado, pode influenciar na pilotagem. Às vezes, se fazem manobras arriscadas por necessidade da missão. Acostuma-se ao risco e se passa a achá-lo seguro, pois quem assume um risco maior acaba aceitando se expor mais ao risco, acreditando saber o que pode ser feito. Também o hábito de se expor acaba sendo incorporado à maneira do piloto voar.

Entende-se que ao pilotar, o comandante pode transitar por três áreas: uma área de segurança, uma área de risco e uma área de descontrole da aeronave. Nas três áreas há perigo, nas na área de segurança se voa tranquilamente. Na área de risco, o piloto pode ir se afastando da área de segurança e ir se aproximando da área de descontrole. Quanto mais se adentra a área de risco, mais perigoso se torna e se corre o risco de perder o controle da aeronave, que pode perder a sustentação ou ter uma pane.

Por causa dos hábitos adquiridos durante o período de formação, alguns pilotos transgridem as normas de segurança, pois voar só na “faixa de segurança” se torna um voo “chato” para o piloto que teve um treinamento em que transitava para a “faixa de risco”. Há situações também em que o piloto tem desejo de superar os próprios limites. O piloto quer provar que também dá conta de fazer o que o outro faz. “Se ele fez, eu faço. Se ele pousou, eu vou pousar também”. No entanto, na aviação, há algumas perguntas que o piloto não deve fazer. Por exemplo, “Será que dá?”.

Para Dejours (1992), se a missão representar um perigo relativamente pequeno, como o voo de monitoramente de trânsito, a agressividade do piloto pode ser canalizada no prazer do domínio técnico; mas se for uma missão de grande risco como um enfrentamento direto com o inimigo, o piloto precisará usar sua agressividade para manter seu estado emocional equilibrado.

O piloto tem em sua carteira de habilitação técnica (CHT) o tipo sanguíneo e o fator RH, para facilitar o processo de transfusão de sangue em caso de acidente. O macacão de voo é confeccionado com tecido antichama, que ameniza a gravidade da queimadura, e com tratamento contra raios ultravioleta. É considerado como equipamento de proteção individual e todos que manipulam e operam aeronaves devem utilizá-lo.

O risco, confirmado pelos acidentes que ocorrem, mesmo com toda a experiência do piloto e atenção às regras e normas da aviação, pode gerar ansiedade para os pilotos. Cada acidente é alvo de uma pesquisa técnica detalhada, em que todo erro ou negligência é combatido por medidas e regras de segurança. Há esforço da

organização do trabalho para que o piloto tenha domínio sobre o risco. Na aviação não deve haver limitação para investimentos necessários para a prevenção de acidentes.

Para Dejours (1997), mesmo sob a égide da prescrição de regras, os comportamentos dos trabalhadores na situação de trabalho evidenciam um grande número de ações imprevistas ou reconstruídas.

Mesmo nas condições ideais de comando ou de organização resta um lugar para falhas humanas, erros ou acidentes que a referência exclusiva à qualidade das relações de trabalho e da motivação não permite explicar (p. 34).

Para evitar o máximo possível de erros, os profissionais da aviação se preocupam muito com o desempenho. Adquiriram o hábito de observar os colegas na execução dos procedimentos para corrigirem as próprias falhas e repetirem aquilo que for bem sucedido.