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6.4 Cooperação e coletivo de trabalho

7. Sofrimento, defesas e patologias

7.1. Vivências de sofrimento

Para a psicodinâmica do trabalho, o sofrimento envolve um estado de luta do sujeito contra as forças que o empurram em direção à doença mental. O sofrimento é inevitável, seja no ambiente privado, seja no trabalho. Quando ele pode se transformar em criatividade, traz uma contribuição para a identidade. Acaba por aumentar a resistência do sujeito ao risco de adoecimento psíquico ou somático. O trabalho, então, funciona, nesse caso, como um mediador de saúde.

As vivências de sofrimento apareceram no grupo no início da formação para se tornar piloto, nas situações em que há restrições para a pilotagem, nos incidentes com o helicóptero, nos conflitos interpessoais e na dificuldade de integração com colegas que não fazem parte do grupo.

Na aviação, há um sofrimento que faz parte do processo de se aprender a pilotar. O piloto sofre nas primeiras aulas de voo para aprender a comandar e para pairar o helicóptero, assim como para dominar o processo de fonia na cabine e nas aulas de treinamento de emergência. Esse sofrimento é considerado criativo de acordo com a psicodinâmica do trabalho e quando superado traz vivências de prazer. Outros

momentos de sofrimento, no entanto, foram vivenciados nos conflitos interpessoais, como no período em que sofreram assédio moral, como já foi relatado. O sofrimento aparece ainda com o episódio da queda da porta do helicóptero e quando há doenças e restrições que impedem o trabalho de pilotar. “É chato quando você gosta de voar e é tolhido de fazer isso”. “... nem quero tá indo lá atrás, porque você está alimentando a vontade de voar e você não pode. É bastante desconfortável isso”.

A queda da porta do helicóptero faz parte dos momentos difíceis vivenciados pelo grupo e das dificuldades que tiveram que enfrentar. Esse acontecimento promoveu um questionamento sobre a segurança de voo e se realmente se pode confiar na manutenção da aeronave. Nesse período, o grupo era muito pequeno e algumas pessoas que manifestavam interesse em fazer parte do grupo ficaram com receio de entrar. “... um fato, assim, que mexeu comigo, tenho certeza que mexeu com o grupamento e eu tenho certeza que também repercutiu muito negativamente fora é o incidente da nossa porta, quando caiu”. “Foi um fato que foi difícil pra gente tratar entre nós e tudo, mas, graças a Deus, sobrevivemos”. “Então, não é problema de treinamento, não é problema de tripulação, mas as pessoas não querem saber, aconteceu isso e já há desconfiança meio que natural: será que eu posso confiar nessa equipe? Será que eu posso confiar? Deixa utilizar bastante aí pra ver se eles ficam mais experientes e tal”.

As vivências de sofrimento ocorrem em diversas situações, principalmente nas situações perigosas. As sensações de insegurança, receio ou medo vão existir dependendo da realidade a que o piloto esteja exposto. O piloto deve ter controle emocional para realizar as manobras e vencer o medo, que frequentemente surge quando se começa a aprender a pilotar e durante os treinamentos de emergência. Alguns pilotos sentem mais que os outros os riscos a que estão expostos. “Eu fiquei com muito medo... esse receio... mas faz parte”. “A aproximação sem pedal, mesmo tendo a proficiência, o treinamento... eu sempre vou ter esse medo...”. “Você sabe que é uma manobra arriscada, uma manobra perigosa, que se você errar... as consequências podem ser trágicas”. “Esse receio tem que ter...”, o receio de “saber que pode acontecer”.

Segundo Moreira (2001c), o instinto de conservação pode se manifestar no medo frente a qualquer fenômeno ou situação que possa ameaçar a integridade do homem, como o não respeito às normas de segurança no voo. Dessa forma, a finalidade do medo seria de proteção, pois só quem tem medo é capaz de se preservar. O medo de altura e de velocidade é comum quando se está aprendendo a pilotar. Mas o medo de sofrer acidente acompanha sempre o piloto e faz com que se mantenha dentro dos limites de segurança e evite cometer falhas e se expor ao perigo.

No curso de tripulante também se vivencia situações de perigo. No curso de formação de tripulante fala-se do medo da dor, do medo de morrer e do medo que a pessoa tem que superar para voar. Essa superação, porém, pode ser pior se o sujeito estiver com outra pessoa com medo de voar do seu lado.

O sofrimento nas relações interpessoais ocorre devido ao conflito de papéis, aos traços de personalidade, ao abuso de intimidade construída pelos vínculos afetivos, devido às falhas no processo de comunicação e ao modo de gestão. Quando o chefe não sabe dizer não, a pessoa se aproveita disso. “... a gente acaba fazendo a parte do outro porque a gente não soube dizer não... por causa da relação de amizade”.

O sofrimento ocorre também devido à dificuldade de integração com os colegas de trabalho que não fazem parte do grupo. Embora se possa dizer que “voar alivia as dificuldades existentes” internamente na UOPA, o grupo enfrenta algumas dificuldades para a realização de seus objetivos de atuar no trânsito. Com a visão privilegiada proporcionada pelo trabalho aéreo, o grupo poderia ajudar mais os agentes de trânsito a revolverem situações pontuais, no trânsito, mas ainda não estão trabalhando de forma integrada. “Às vezes o pessoal tem aquele preconceito que a gente é isolado, mas eles não veem o tanto que a gente busca esse contato... e eles se isolam por terem esse preconceito”. Muitos agentes de trânsito não conhecem as dificuldades superadas pelo grupo para manter o helicóptero voando e para adquirir a formação que possuem.

Compreende-se também a resistência dos agentes de trânsito, pois eles pensam que a UOPA quer “mandar” e dizer o que eles devem fazer. “a gente esbarra sempre naquele problema da pessoa que está lá em baixo achar que a pessoa que está lá em cima está mandando... ela acha que é uma ordem...”. O grupo deseja conseguir quebrar essas “barreiras”. Esse conflito de relacionamento pode ser entendido pela competitividade existente pelas funções, pois não se aceita que um grupo possa comandar o trabalho do outro.

No início, os pilotos tiveram que enfrentar as manifestações de desaprovação dos demais colegas da instituição, que diziam no rádio que os pilotos tinham “vida boa” e faziam piadinhas e brincadeiras. Eram chamados de “estrelinhas”. Mas isso foi superado com a compreensão de que todos os grupamentos aéreos enfrentaram um processo difícil e demorado para se estabelecer e ter o trabalho aceito e valorizado pelos colegas de trabalho, que não acreditavam na importância da aviação, inicialmente. Dessa forma, o grupo pensa que, com o passar do tempo, será possível superar algumas dificuldades existentes e conquistar seu espaço na instituição. “E como nós somos o irmão mais novo, ainda sentimos muito na pele isso”.

O sofrimento é componente básico da relação de trabalho e quando enfrentado traz como ganhos a saúde, o prazer no trabalho, a realização de si mesmo e a construção da identidade (Dejours, 2004i). No entanto, o sofrimento é sempre mediado, seja pela mobilização subjetiva, seja pelas defesas. Para acessar o sofrimento, as defesas precisam ser descobertas e, muitas vezes, estas são inconscientes e aparecem sob a forma de atos falhos, chistes e silêncio (Mendes & Araújo, 2012).