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6.4 Cooperação e coletivo de trabalho

7. Sofrimento, defesas e patologias

7.2. Estratégias de defesa

As estratégias de defesa podem surgir contra o sofrimento gerado pelo medo de acidentes, contra os ritmos de trabalho, diante dos conflitos das relações de trabalho, contra a ansiedade gerada por situações de risco, como ocorrem com os pilotos, etc. As defesas se sustentam quando são assumidas por todos do grupo e, se forem muito eficazes, podem não aparecer no discurso dos trabalhadores (Dejours, 1992).

As estratégias de defesas utilizadas pelo grupo são: o controle, o pacto de confiança, o humor, a negação e a projeção, estratégias de convivência para se garantir a segurança do voo e estratégias de comunicação para melhorar a convivência.

A atividade aérea é marcada pela tentativa de se controlar tudo que faça parte do ambiente aeronáutico. Busca-se controlar a aeronave, o estado de saúde física e mental da tripulação, a forma de comunicação, os relacionamentos afetivos, o desempenho dos profissionais, os riscos, as transgressões e tudo que ocorra dentro e fora da aeronave.

Para comandar e conduzir a aeronave, o piloto deve controlar todos os movimentos e a força que aplica aos instrumentos. Precisa controlar os equipamentos, o painel, as telas do radar, os alarmes, as informações visuais e sonoras e as condições de uso da aeronave. “Controla-se a altitude que a pessoa voa, a velocidade, as variações de temperatura, as mudanças de pressão, a distância que se mantém em relação a outros objetos e antenas”. Mas todo o controle tem como objetivo gerar segurança no voo.

O controle do estado de saúde física e mental dos pilotos permite conhecer o limite do corpo e das condições de trabalho do piloto. O piloto deve ter controle emocional para realizar as manobras e vencer o medo do risco de acidente. Além disso, o piloto deve ter autocontrole para saber dominar situações de emergência e para não afetar seu desempenho profissional.

O controle da comunicação ocorre desde a interação com os controladores de voos, com quem a linguagem é padronizada, até a comunicação dentro da cabine. O

grupo também tem regras de comunicação para manter a boa convivência e evitar os conflitos.

Como forma de lidar com a linguagem técnica e padronizada da aviação, o grupo usa uma linguagem mais sutil, mais figurativa. Também há o cuidado em relação ao modo de falar, devido à preocupação de como a palavra possa ser interpretada, já que as palavras podem ter uma multiplicidade de sentidos. “Chegamos aqui a trancos e barrancos”. “Me passaram a bola”. “Dar o sangue”. “Até eu explicar que focinho de porco não era tomada”. “Você já está botando na massa alguma coisa”. “Pra que todo mundo tenha na massa o que tem que ser feito”. Observa-se, porém, que o valor subjetivo dessas palavras é dado pelo significado que elas passam a ter dentro do contexto de trabalho do grupo.

Na cabine, o controle do relacionamento afetivo visa à segurança de voo e deve ser profissional e não íntimo. Mas ter intimidade e se preocupar com o outro, no serviço aéreo, permite ter controle das condições de saúde dos outros, pois saber se a pessoa está bem gera segurança para voar.

O grupo procura separar o lado afetivo do lado racional para conseguir dar conta de trabalhar. “Tem que esquecer tudo” e ser só piloto. Entende-se com isso que o piloto procure manter distanciamento afetivo, ou seja, é uma estratégia que permite ao piloto ter objetividade para analisar os fatos e controlar os afetos. “Dentro da cabine, a gente tenta manter de uma forma mais concentrada possível o voo”.

O controle sobre o desempenho é realizado pela formação técnica dos profissionais e pelas avaliações que ocorrem anualmente por meio de provas práticas e teóricas. Busca-se o aperfeiçoamento para que o piloto tenha domínio sobre o risco.

O controle também busca evitar que a pessoa transgrida as normas de segurança de voo e coloque sua vida e de outras pessoas em risco. Com o treinamento de emergência busca-se controlar as situações de risco. Também com o controle sobre a manutenção da aeronave procura-se confiar se é seguro voar. Por meio dessa estratégia de controle se constrói um pacto de confiança de que é seguro voar.

O pacto de confiança é estratégia para se lidar com o risco e com o medo. Deve- se confiar em toda a tripulação, principalmente na equipe de manutenção, mesmo que não haja afinidade entre as pessoas. Essa relação de confiança é importante para a segurança do voo. Quando se conhece o mecânico de voo, fica mais fácil estabelecer e manter um pacto de confiança. “Quando a gente conhece quem é que faz a manutenção, os mecânicos que fazem. Que tem alguém acompanhando, a gente acompanha, então, acho confiável”. Também quando o mecânico faz o voo de manutenção, a tripulação se

sente mais segura. “A gente brinca com ele (o mecânico), uai, se você não quer ir porque o helicóptero passou por uma manutenção por que eu vou?”. “Se eu não confiasse na manutenção, eu não estaria voando... Não fico pensando que vai dar alguma coisa errada, não”. Portanto, o mecânico voa para mostrar que há controle do que fez e, dessa forma, estabelece a confiança.

O serviço aéreo favorece a relação de confiança no outro. “Acho que o serviço aéreo favorece a isso, né? Ter relação de confiança com o outro. Você saber da vida do outro no serviço aéreo... não é porque eu quero saber da vida dele. Eu quero saber se ele está bem para voar hoje... saber se a pessoa está bem, sem nenhum problema sério.” Percebe-se, então, que a preocupação com o bem-estar do outro é uma forma de controle sobre as condições do piloto para voar, o que gera confiança e segurança para se trabalhar.

Na atividade aérea, a tripulação é formada de forma aleatória. Qualquer comandante pode ter sua tripulação constituída por qualquer copiloto e qualquer tripulante. Dependendo do tamanho do grupamento e do tipo de missão, pode-se pilotar com pessoas desconhecidas. No entanto, eles precisam confiar um no outro, no profissionalismo de cada um. “Tem que ter aquela confiança... você sabe que a tua vida está na mão de outra pessoa”. Para isso devem superar os conflitos e se entender.

Os pilotos criam estratégias para permitir que as relações sociais aconteçam sem prejuízos para a segurança do voo. As relações são complexas e o estresse com o relacionamento tem prejudicado a boa convivência do grupo. Além disso, a falta de entrosamento na cabine pode gerar um acidente. “Se você tem dificuldade de relacionamento interpessoal, entendo eu, você vai ter dificuldade no trabalho... Logicamente cada um é cada um e vai saber trabalhar isso de uma forma melhor. Tem gente que consegue. Tem gente que não consegue superar”. Há crises por causa de relacionamento, mas o grupo “avançou”.

Acredita-se que os conflitos existam no grupo por causa das características de personalidade. É difícil lidar com determinados traços de personalidade, com os constrangimentos, com os sentimentos de vergonha e para não gerar conflitos, procura- se falar de forma mais sutil e agir de forma mais profissional. Quando a pessoa está insatisfeita e aborrecida com alguma situação, mantém-se apenas contato mais profissional. Muitas vezes, porém, a influência da pessoa que não está contente pode afetar outras pessoas e prejudicar o grupo.

Para evitar conflitos, o grupo procura não falar do colega, principalmente, se ele não estiver presente para se defender. A pessoa pertence ao grupo, mas se posiciona

com a sua subjetividade, com sua forma de pensar, com sua forma de entender o trabalho. “Eu falo por mim”. “... infelizmente ele não está aqui para comentar”. “Eu acho que, na minha opinião....”. “Pelo menos eu...”. “Agora é o que eu falo...”. “Mas posso falar por mim...”. “Falando por mim...”. “Estou falando por mim, de ser o que eu desejo”. “Posso citar você como exemplo, (...)?”.

O grupo procura respeitar o limite e o jeito de ser de cada um. Busca-se identificar se o momento é adequado para se conversar e conhecer como a pessoa reage em determinadas situações. “Eu acho que cada um tem seu limite e cada um consegue se adaptar a uma situação de uma forma. Alguns com muito mais facilidades que outros. Então alguns também conseguem fazer proezas que outros nem sonham em fazer”.

Como estratégia de defesa para falar de situações delicadas, como a escolha da chefia, por exemplo, o grupo usa o humor. No entanto, quando há brincadeiras em excesso, as pessoas que não gostam delas se manifestam, reclamam e pedem para que haja um limite nessas brincadeiras. “... aqui tem uns que tem aproximação maior, a gente brinca, conversa, mas têm outros que a aproximação é menor. É mais profissional... mas eu lido muito bem com isso... eu me sinto mais à vontade com alguns e com outros menos”.

Brant e Minayo (2004), ao estudarem o sofrimento, verificaram que os trabalhadores usavam o humor como estratégia para lidar com o sofrimento e evitar o adoecimento. Segundo os autores, uma pessoa pode disfarçar a timidez e a dificuldade de relacionamento, que tanto a faz sofrer, por meio das brincadeiras. Nessa clínica, no entanto, essa estratégia foi vista como característica de amadurecimento do grupo para trabalhar em equipe e que tinha como objetivo reduzir afetos desagradáveis e desconforto pessoal. Como voar gera muita tensão, o piloto precisa sair desse estado de tensão constante para não adoecer e a forma de se distanciar da tensão que encontrou foi brincar com os colegas.

O humor também foi visto como forma de evitar sentimentos agressivos. O piloto precisa de agressividade para enfrentar o risco e o medo de sofrer acidentes, mas se for agressivo com alguém, despertará a agressividade no outro também. O humor, portanto, é uma forma de lidar com a agressividade e evitar conflitos.

O grupo relata situações que afirmam ocorrer em outros grupamentos, mas não na Uopa. Percebe-se, no entanto, que há no grupo também. Ocorrem, portanto, as defesas de negação e projeção. Há ainda a negação momentânea da percepção da vulnerabilidade de sofrer acidentes, que ajuda o piloto a enfrentar as situações de risco. A pessoa, às vezes, só vai ter noção do risco após ter vivenciado uma situação

complicada. “Mesmo com o meu acidente... sabia que poderia ser forte o impacto, aquela coisa toda, mas, naquele momento, não. Depois que caiu no chão, que você vê que realmente a coisa poderia ter sido mais séria”. “Mas, no momento ali... você treina, e com o treinamento, você tenta administrar esse medo da melhor forma possível. Então, você tem que tentar ver o que tá acontecendo, reagir com aquilo ali, tentar ver painel, tentar ver local pra pouso, tentar desvencilhar de alguma coisa e evitar, naquele momento, botar em risco”.

Outra forma de negação observada se manifesta em se negar a reconhecer que o colega possa sofrer com determinadas situações, como com o treinamento de emergência ou com a escala de sobreaviso.

Algumas defesas individuais também foram expostas pelo grupo. Quando a pessoa está conversando com outra que é intransigente, que nunca aceita a opinião do outro, que quer estar sempre com a razão, fica-se em silêncio, escuta a outra pessoa e filtra só o que é interessante para o grupo.

A psicodinâmica do trabalho tem ressaltado que os homens constroem estratégias defensivas como recursos simbólicos de virilidade, que tem a função de negar a percepção do perigo e ocultar a percepção de vulnerabilidade. Nessas profissões, os trabalhadores precisam superar o medo de acidente, de incidente, de doença e de morte, além de exaltar a coragem. Essa estratégia coletiva de defesa pode se manifestar, portanto, na ausência de medo, na indiferença em relação ao sofrimento e na invulnerabilidade (Dejours, 2004e). Mas no caso dos pilotos, conforme os estudos de Dejours (1992) com os pilotos de caça, o trabalho é fonte de sublimação e a coragem para a missão é mobilizada por uma escolha livre. O piloto não pode perder a consciência do risco, negá-lo ou desafiá-lo, pois isso o conduziria a morte. A virilidade, nesse caso, se evidencia por ser o serviço aéreo uma atividade viril e de prestígio, em que o profissional se mobilizar para enfrentar diversas situações de risco, de medo de acidentes e de superação. “Eu acho assim que todo mundo que entrou pra operações aéreas, sendo por qualquer motivo, uma hora viu que ia ser difícil, que a gente ia encontrar barreiras, obstáculos... tanto que algumas pessoas vieram e não estão mais”. “Cabe ressaltar a equipe de guerreiros que a gente tem aqui”.

Essas estratégias de defesa foram desenvolvidas na tentativa de preservar o equilíbrio emocional dos trabalhadores e garantir a segurança de voo. São necessárias quando o trabalho gera medo e ansiedades diversas, que podem estar relacionados tanto ao ambiente físico (riscos de acidentes e danos à saúde), como ao ritmo de trabalho e/ou às relações humanas. Percebe-se ainda que as estratégias de defesas contribuem para a

identificação de quem tem perfil para permanecer no grupo ou não. Quem consegue se adaptar as estratégias de defesas do grupo fica no grupo, caso contrário, o próprio contexto faz com que essas pessoas saiam. Não aceitar essas defesas pode gerar uma ameaça de desconstrução delas e colocar o grupo em risco.

Nessa pesquisa, não foram encontradas patologias relacionadas ao trabalho, uma vez que o profissional não pode voar se não estiver em condições de saúde física e mental satisfatórias para a realização da atividade. Mas além de vivências de sofrimento, que solicitaram estratégias de defesas, há danos físicos e psicossociais.