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ORIGEM E DESENVOLVIMENTO DO SINDICALISMO DOCENTE DA EDUCAÇÃO NÃO-SUPERIOR EM PORTUGAL

4.1. DISPUTA ENTRE CATÓLICOS E ANARQUISTAS (1901-1933)

A definição da componente sindical no interior da organização docente esboça- se num contexto de reação a algumas medidas implantadas na Reforma no campo educativo, em 1901. Tais reações foram contra as regras de fixação dos salários e o alinhamento ideológico às posições oficiais.

Os esforços dos primeiros anos do século XX permitiram a formação de uma “alma de classe”, despertando a solidariedade no interior do magistério primário. Isto desdobrou-se, em 1907, na criação da Liga Nacional do Professorado Português (Bento, 1978).

A Liga centra suas ações em torno de reivindicações materiais, donde ascende o cariz sindical, o que provoca uma divisão no seio da organização docente. De um lado, encontra-se a corrente dos católicos, defensora da colaboração com o governo, e de outro, a corrente anarquista, que defende intransigentemente que a organização do professorado assumisse inteiramente uma perspectiva sindicalista. Conforme, já apontado anteriormente, o anarquismo nessa altura – antes da instauração da República –, estava em ascensão. Os anarquistas difundem a compreensão segundo a qual é a via sindical que representa a melhor maneira de luta.

Os centros escolares contêm em si o embrião de um novo tipo de associativismo, integrado na concepção moderna de sindicalismo. Nesse sentido, A Federação Escolar , inspirada no movimento das Amicales francesas, lança a idéia de uma “transformação dos centros escolares em sindicatos regionais e autónomos, ligados por uma federação” (Adão, 1984: 253). O informativo pedagógico empenha-se numa campanha de dinamização dos professores:

Vá, camaradas! Se queremos equiparar-nos aos professores primários dos demais países, se queremos desfazer a tal lenda de que só sabemos pedir dinheiro, trabalhemos todos, unidos pelo mesmo pensamento elevado, sem intuitos de evidenciar pessoas, e com o fito único – preparar melhor futuro para a sociedade e para a falange de trabalhadores a que pertencemos (A Federação Escolar apudBento, 1978: 41).

A diretoria da Liga reagiu acusando os anarquistas de quererem desviar a categoria para servir a outros interesses que não os do professorado, no que ela contou

com o estímulo e apoio do governo. Logo, em dezembro de 1910, uma comissão aprova a decisão de dar ao associativismo da categoria um caráter essencialmente sindicalista, propondo a criação do Sindicato dos Professores da Instrução Primária de Portugal, o que viria a ocorrer no início de 1911 (grifo nosso). A Liga é encerrada em 1913 sob severas críticas dos dirigentes ao Sindicato, enfatizando que ele está organizado conforme modelos exteriores aos hábitos e à história associativa dos docentes. Além das críticas político-ideológicas, a Liga acusa o Sindicato de desrespeitar a autonomia dos professores da instrução primária, na medida que ele incorporava a filiação dos professores das escolas normais e dos inspetores.

O Sindicato dos Professores contava, em Julho de 1911, com cerca de 400 sócios; em setembro do ano seguinte, abrange cerca de 1000 professores espalhados por 74 concelhos46. Neste ano, existem 6.646 professores em exercício.47

Estrategicamente, em alguns momentos, o Sindicato teve que se demarcar das posições anarcossindicalistas mais radicais, para garantir o seu reconhecimento oficial. Entre 1914 e 1915, dois acontecimentos vão marcar a vida da entidade: o Congresso Pedagógico realizado no Porto48 e a polêmica campanha em defesa da eleição de deputados representantes do professorado.

O Congresso de 1914, reforçando os laços entre os professores, contribuiu para que, após três anos de criação do Sindicato, ele ampliasse a sua atuação para uma parcela maior do professorado primário (Sousa, 1914). Depois da realização dele, verifica-se um aumento de entidades que se reclamam do corpo docente primário. No Sul e no Norte, no interior e no litoral, nas grandes e pequenas cidades (Lisboa, Porto, Braga, Penafiel, Évora, etc.), grupos de docentes emergem para defender os seus interesses.

Já a campanha em defesa da eleição de deputados representantes dos professores eclode em 1915. Determinados setores lançam-se na mesma, tendo por base o princípio segundo o qual todas as classes têm o direito de intervir nos diferentes níveis da vida social e política (Soares, 1915), o que mereceu a crítica de outros segmentos, como o influente anarquismo, que se opunha à idéia de intervenção política nas instituições

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Subdivisão do território sob a administração de um presidente da câmara e das demais entidades autárquicas. In: Dicionário da Língua Portuguesa. Porto: Porto Editora, 2006.

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Cf. A Federação Escolar, 3ª fase, ano I, nº 3, de 16 de Março de 1912. 48

É o primeiro congresso de professores primários que se realiza depois da implantação da República. O Sindicato prepara-o com muito cuidado, tornando público o seu programa em fins de 1913.

oficiais. Com isso, o resultado final foi um fracasso, pois elegeu-se apenas um deputado.

Na seqüência desse quadro, um dado significativo para o desenvolvimento da organização dos professores é a criação, em Lisboa, do Círculo de Instrução Primária, que procura contrabalançar a influência do Sindicato, no Porto. Por outro lado, a partir de uma reunião realizada em Coimbra, com a participação de diferentes tendências, estabeleceu-se um relativo consenso em volta de posições como a necessidade de dignificação social da categoria e o reforço das relações entre seus membros.

Em 1916, o Sindicato é transformado em Associação Geral dos Professores da Instrução Primária de Portugal. Através de um “Plano de União”, apresenta-se um ensaio para conjugar a autonomia de cada centro ou grupo sindical com uma direção nacional. E assim foram lançadas as bases para a constituição de uma associação reagrupando os professores primários. Dois anos depois era criada a União do Professorado Primário Público Português.

A União adotou uma estratégia que dava atenção privilegiada à própria atividade docente, ou seja, intervir junto aos poderes de gestão do sistema de ensino no sentido de elevar o status profissional docente. E é essa forma que ela elege como um dos seus objetivos: o aperfeiçoamento profissional do professorado (Júnior, 1918). Álias, a preocupação com o status profissional parece marcar a atuação do movimento do professorado até o início da sua desarticulação, em 28 de maio de 192649. Isto não significou todavia que, na decorrência das contendas entre católicos e anarquistas, a influência destes tenha desaparecido em função da supremacia daqueles e, como tal, as indicações em favor de uma aproximação ao movimento operário se tenham esvanecido. Pelo contrário, embora nunca tenha aderido formalmente à Confederação Geral do Trabalho (CGT)50, a União manteve uma relação amistosa com ela, inclusive fazendo-se presente no Congresso de sua fundação em 1919.

Num misto entre marxismo e anarquismo, a entidade apresenta um documento onde defende uma nova organização e um novo sistema de ensino, sublinhando isto como condição indispensável para a emancipação dos trabalhadores e a formação de um homem novo (Bento, 1978).

As relações da União com a CGT provocaram fortes reações críticas dos setores conservadores, acusando os dirigentes daquela de acobertarem o bolchevismo. Os

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Data do Golpe de Estado. 50

críticos enfatizavam que, se pretendia o desenvolvimento moral e material, dever-se-ia buscar alianças com as camadas burguesas. Ao que a tendência anarcossindicalista reage, fazendo referência a uma questão de base do sistema escolar, ao frisar que nenhuma reforma do sistema de ensino pode ser feita sem que o povo tome consciência dos benefícios da instrução, pelo que então exprimia a necessidade de transformação radical da escola.

Isto reflete a sintonia da União com a maneira como a CGT compreendia a educação, pois no Congresso de 1919, tinha sido discutida a descentralização efetiva do ensino primário sobre a forma de juntas escolares, o que posteriormente foi ratificado e acrescentou-se o entendimento segundo o qual era imperioso que os destinos da educação fossem retirados das mãos da Igreja e do Estado, para recolocá-los nas mãos de conselhos de professores e nas dos sindicatos, onde deveriam ser resolvidos todos os assuntos profissionais e pedagógicos (Bento, 1978).

De 1918 a 1926, a União do Professorado Público Português realizou uma grande atividade associativa e pedagógica. Inicialmente congregando apenas professores primários, pouco a pouco porém foi integrando os professores normais e os inspetores escolares, o que a tornou, na altura, a mais importante entidade docente portuguesa, tendo aproximadamente 7.600 sócios, em 1925 (Adão, 1984). Segundo o professor António Nóvoa, a “União dos Professores Portugueses era claramente um sindicato, era um dos melhores sindicatos do tempo da República em Portugal e foi sempre muito forte”. 51

Nos momentos que antecedem o declínio da República, os problemas crescem no interior da entidade. No Congresso de 1926, realizado em Lisboa, um professor católico assume a direção, Faria Artur, e sua ascensão, ao que parece, é conseqüência do fato de os católicos terem se tornado mais ativos no movimento docente. A intensidade das disputas enfraqueceria a União perante os acontecimentos que estavam por vir a partir de maio do mesmo ano.

No IX Congresso, realizado em abril de 1927 em Viseu, a tendência anarcossindicalista voltou a controlar a direção da entidade, o que serviu de pretexto para o início da repressão contra a organização docente, com a União sendo acusada de defender “princípios subversivos”, a exemplo da coeducação – pelo que foi rotulada de “perigo vermelho”. As primeiras medidas represssivas foram tomadas com a Revista A

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Federação Escolar e, em seguida, decretaram-se prisões de dirigentes da União, sob a acusação de propaganda revolucionária. Foram detidos, por exemplo, Carvalho Duarte (Secretário-Geral da União), Canhão de Lima (dirigente docente) e Antônio Augusto Martins (diretor da Revista).

Diante do cerceamento da organização do professorado, um grupo de professores aliado às forças promotoras do Golpe de Estado tenta salvar a União, propondo enquadrar as suas estruturas conforme os objetivos do regime. Embora a proposta tenha sido até bem vista, em nada resultou, pois, em novembro de 1927, o governo dissolveria a entidade.

A apatia que se instalou viria a ser quebrada em 1929, quando se permitiu a reabertura da entidade. Em janeiro de 1930, num Congresso em Coimbra, os dirigentes aprisionados em 1927 foram reconduzidos aos seus postos. No mês seguinte, entretanto, o governo voltaria a demonstrar que não estava disposto a tolerar a livre organização docente, e por decreto, colocava a União do Professorado Público Português em sua dependência, subordinando-a. Em abril, reunido em Coimbra, o Conselho Federal da entidade, não aceitando a ingerência estatal resolve, ele próprio, dissolvê-la. Com a legislação repressiva e corporativa de 1933, suprimiu-se qualquer possibilidade de organização livre do professorado.

Há ainda que se referir, como conseqüência da influência da atuação anarcossindicalista no contexto da relação sindicatos e educação, nos primeiros anos do século XX, a experiência das escolas anarquistas. A propósito da atuação geral dos anarquistas, ela pode ser dividida em duas frentes:

“Na frente política, onde o objetivo era de chegar à Greve Geral Revolucionária, o primeiro passo da destruição do Sistema Capitalista e da sua substituição gradual por uma sociedade sem classes e sem Estado, e o de uma outra frente, menos direta e mais difícil de classificar, através da qual se parecia desenhar a construção de uma sociedade paralela e alternativa à então existente, uma espécie de «treino» real daquilo que viessem a ser as sociedades libertárias (Candeias, 1997:37-38).

Foi em decorrência da segunda frente que os anarquistas preocuparam-se sempre com questões como a edificação de cooperativas de consumo e de produção; a

organização de bolsas de trabalho, que pudessem controlar a colocação de operários que caíssem no desemprego; o estabelecimento de lugares de convívio e de repouso e, com prioridade, a construção de bibliotecas e de escolas que ultrapassavam as conhecidas escolas de militantes ou de aperfeiçoamento técnico e profissional, que o mundo sindical europeu popularizou, independentemente da sua filiação ideológica. Pretendia- se fazer surgir, a partir dos sindicatos, “o «Homem Novo», fruto de uma educação integral modelada pela maneira de ver o mundo em que se assentava o ideário anarquista”(Candeias, 1997:39), e apelava-se então para que os sindicatos mantivessem escolas, robustecendo-as, onde as crianças fossem educadas livremente.

Na altura do Golpe de Estado existiam 41 destas escolas, sendo 25 em Lisboa e na margem Sul, sete no Alentejo, cinco no Porto, duas na Zona Centro e duas no Algarve. Do ponto de vista da distribuição por setores laborais, vinte e nove estavam sediadas em sindicatos ou uniões de sindicatos operários; cinco encontravam-se em sindicatos do setor de serviços; quatro, no Porto, em “Bibliotecas e Centro de Estudos Sociais”; e três em sindicatos de trabalhadores rurais. Estima-se que o número de crianças que, em média, freqüentava tais escolas ficava entre trinta/quarenta por escola. Havia casos que tal cifra “se elevava a 70, como na Escola da Associação de Classe da Construção Civil de Palma, em Lisboa, no ano de 1917, ou mesmo a 130 alunos, entre adultos e crianças, distribuídos por dois professores na Escola Francisco Ferrer, criada e mantida pela União dos Sindicatos de Évora” (Candeias, 1997: 42).

As escolas anarquistas tomavam como referência o credo político pedagógico do Pedagogo catalão Francisco Ferrer, que sob o denominado racionalismo pedagógico, fazia uma revisão crítica e socialmente empenhada das teorias da Escola Nova, procurando apoiar os processos de aprendizagem em metodologias ativas que motivassem os alunos e instaurassem um clima de liberdade nas escolas, talvez mesmo transformar a escola numa festa, conforme se deixa transparacer numa narrativa sobre o início dos exames de passagem da 3ª classe na escola da secção sindical da Palma em 1917. Registra-se o acontecimento da seguinte forma:

“A festa principiou pelas 13 horas com o exame de passagem de Classe, sendo o júri constituído pelas senhores Borges Grainha e José João do Amaral, membros da Liga contra o analfabetismo, estando presentes os professores João Lira Costa e a senhora Maria do Carmo Goom. Os alunos prestaram

provas sendo distinguido com vários livros o aluno que mais se destacou, Luís Vasques. Borges Grainha felicitou os professores desta escola pela forma como souberam aproveitar o seu tempo educando os alunos deserdados da fortuna (...)” (O Construtor apud Candeias, 1987:351).

Com a ascensão do salazismo, nada restou das pioneiras experiências das escolas anarquistas. E, a partir de 1933, a livre organização docente foi totalmente banida.

Quer dizer, o percurso do movimento do professorado durante o período 1901- 1933 é marcado pelas disputas entre católicos e anarquistas. Neste quadro, a relação que ele mantém com o Estado é uma relação instável. Ou seja, é uma relação que comporta, pelo lado dos católicos, a busca de entendimento com o Estado e a atuação conjunta, mesmo após o fim da monarquia; e pelo lado dos anarquistas, uma postura inversa a esta, na medida em que eles têm como objetivo exatamente a destruição do Estado e a instituição de uma sociedade sem classes sociais. Em alguma medida é possível sustentar que a orientação sindical pode ser caracterizada como de forma híbrida pela existência de dois segmentos com posições ideológicas diferentes a dividirem a condução da organização docente, sem que de fato tenha ocorrido um predomínio forte de um sobre o outro, mesmo que em alguns momentos o anarcossindicalismo tenha se apresentado bastante consistente.

Os reflexos dessa situação singular de hibridismo são sentidos na forma como o trabalho é concebido pelo movimento organizativo dos docentes no período. Trata-se de uma compreensão tensa, pois realça-se tanto o trabalho como elemento a ser resgatado para servir de base à construção de uma sociedade autogestionária, salientando-se a identidade comum assalariada entre os professores e trabalhadores da produção material (anarquistas), como também desconsidera-se este entendimento (católicos), acusando-se os seus defensores de acobertarem o bolchevismo e, mais ainda, assinala-se o caráter diferenciado do trabalho docente, indicando que se deve buscar alianças com as camadas burguesas (Bento, 1978).

Passa-se então a considerar a situação do sindicalismo docente durante o período da ditadura fascista de Salazar.

4.2. EXPANSÃO DO ASSOCIATIVISMO E IMPEDIMENTO DO