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Do arcadismo pastoral ao bosque romântico português

2.1. Revisão sobre a evolução do parque verde urbano

2.1.4. Do arcadismo pastoral ao bosque romântico português

A reação àquele formalismo muito se devia ao movimento literário e filosófico que enaltecia uma nova relação com a paisagem, que rejeitava o domínio do Homem. O modelo do parque paisagista surge aliás após um período em que a simetria e rigidez da forma nos espaços exteriores se apresentavam dominantes, sobretudo na França e Holanda do século XVII. Delille escreve em 18025: ―Moi-même, comparant le parc anglais au nôtre, J‘hésitai, je

l‘avoue, entre Kent et Le Nôtre‖ (apud Littré sem data). Também Villemain se refere a esta

divisão de estilos e escreve em 1928-296: ―Les parcs de Versailles, où il y a tant d‘art qu‘il n‘y

a plus de nature‖ (idem). Este modelo parecia remeter para o diálogo bíblico entre Homem e

Natureza, onde as duas partes eram obra de Deus.

Exemplos como Claremont, Roushman House, Castle Howard, Stowe, Blenheim, onde trabalharam John Vanbrugh, Charles Bridgeman, William Kent e Lancelot ―Capability‖ Brown, muito importam para representar o paradigma de parque que se criava na Inglaterra do séc. XVIII e cujas valias são bem descritas em carta escrita em 1734 de Sir Robinson para Lord Carlisle: ―This method of gardening is more agreeable as, when finished, it has the

appearance of beautiful nature and, without being told, one would imagine art had no part in the finishing‖ (Hunt 1987 citado por Ward Thompson 2006).

Horace Walpole em 1780 reconhecia Kent como o inventor do estilo paisagista, distinção discutível, ―parcial e equívoca‖ (Ward Thompson 2006), já que outros, e muito especialmente Bridgeman, haviam posto em prática os princípios deste modelo, por exemplo em Claremont, Surrey, Rousham e Stowe. Prova todavia que a arte literária e as belas-artes foram indispensáveis à formulação do modelo paisagista, à época amplamente discutido e objeto destes domínios, e que daí em diante se manifestaria dominante na conceção da arquitetura da paisagem do parque. Ward Thompson (op.cit) faz notar a este respeito que Francis Bacon, ainda no séc. XVII remetia também para o Jardim do Paraíso, quando advogava que se voltasse a repor a harmonia perdida, para o que a investigação científica viria a ter um papel fundamental.

A procura por modelos conceptuais mais próximos deste ideal seria um dos fundamentos do parque paisagista e pastoral inglês. Com efeito, o parque deixava de ser associado à escala

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Citado da sua obra de Jaques Delille publicada em 1902 ―L'homme des champs, ou Les Géorgiques françaises‖, (apud Littré sem data): ―Eu próprio, comparando o parque inglês com o nosso, hesitei, confesso, entre Kent e Le Nôtre‖ (tradução direta, pelo autor).

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Citado da obra referencial de Abel-François Villemain de 1928-29 ―Cours de littérature française‖, 2ª parte, 2ª lição (apus Littré sem data): ―O parque de Versailles, onde há tanta arte que não há mais natureza‖ (tradução direta, pelo autor).

de deleite intensivo do jardim para passar a ser visto como uma arquitetura de paisagem: ―longe da ideia do jardim e a conceber campos de pastagem e manchas florestais, a

enquadrar cursos de água e a configurar lagos. O território a esta escala tinha já sido trabalhado por Le Nôtre, mas sem o sentido útil associado ao belo natural e alargado a todo o espaço rústico que agora é posto em prática.‖ (Pardal 2006, p.60)

O desenho da paisagem abandonou o formalismo e rejeitou as regras clássicas. O Homem não tinha presença dominante na Natureza e respeitava a identidade de cada lugar. A paisagem natural era o tema central, no pensamento, na literatura e na arte.

Em Castle Howard, iniciado em 1701, no desenho de John Vanbrugh existia a intenção em não associar a casa principal, de feição clássica, a um espaço desenhado formalmente em torno de eixos e planos de simetria. A paisagem em seu redor recordava um quadro idílico de uma paisagem natural. A pintura de Hendrik de Cort, cronologicamente posterior, representa esta conceção (Figura 13).

Figura 13 - Castle Howard, pintura de Hendrik Frans de Cort.. Foto: (Jellicoe & Jellicoe 1995, p.235)

Segundo os mesmos princípios em Stourhead (Figura 14), de Henry Hoare, a área estendia- se para além da casa senhorial e organizava-se ao longo de um vale, com um grande lago e percursos ondulantes em seu redor, que proporcionavam uma sequência de vistas pitorescas, encontros com templos, estatuária, fontes e grutas. Destacam-se nas construções a ponte Paladiana, o arco de rocha, o Templo de Apollo, o Templo de Flora e o

Panteão – inspirado na pintura de Claude Lorrain, ―Paisagem com Aeneas em Delos‖ (Figura 15).

Figura 14 - Stourhead, vista sobre a ponte e o Panteão. Fonte: (Samuels sem data)

Figura 15 – Paisagem com Aeneas em Delos, Claude Lorrain, 1672. Fonte: (Aulinas sem data)

A ―linha da graça‖, uma forma em ―S‖, serpenteante, caraterística do biomorfismo natural, era também evocada nesta altura, através da obra de William Hogarth (1753) ―Analysis of

Beauty‖, surgindo como arquétipo do belo, que está presente nos espaços desenhados nos

Alexander Pope, na sua obra ―Epistle IV, To Richard Boyle, Earl of Burlington‖ (1731), fazendo referência à Eneida de Virgílio, evocava o respeito pelo Genius Loci, como um dos princípios fundamentais do estilo paisagista inglês, a par da surpresa, a variedade e a ocultação das fronteiras. Referia que o segredo deste estilo estava em confundir ludicamente, surpreender, variar e ocultar os limites. Andresen e Marques (2001) acrescentam, usando as palavras de Walpole (op.cit) a respeito de Kent, que ―saltou a cerca

e viu que toda a natureza era um jardim‖ (p.46).

Em Stowe, os primeiros desenhos para o parque revelavam um traçado semelhante ao modelo francês, onde a proximidade temporal e a influência dos jardins de Le Nôtre estavam presentes. A adaptação deste desenho do parque aos princípios da escola inglesa foi realizado por Bridgeman e Kent, e este, com a sua formação em pintura7, transformou o parque numa natureza ordenada e harmoniosa (Figura 16). O eixo central era abolido, surgiam terrenos ondulados, modelados organicamente, com clareiras e conjuntos de árvores, criando cenários únicos, como os Campos Elísios8 (Figura 17).

Figura 16 - Litografia com representação do plano de Stowe, com as alterações de Kent e Bridgeman, por volta de 1738. (Jellicoe & Jellicoe 1995, p.239)

Figura 17 - Campos Elísios em Stowe, com o Temple of Ancient Virtue, de William Kent. Foto: (Kluckert 2000, p.354)

Kent ―pautando o seu trabalho pelo refinamento da paisagem, nomeadamente pela

preservação dos ribeiros serpenteantes e dos extensos prados ondulantes e pela introdução de caminhos sinuosos, maciços de árvores e elementos escultóricos e arquitetónicos neoclássicos – urnas, templetes, estátuas, a própria residência – estrategicamente posicionados, frequentemente em pontos distantes para onde as vistas eram direccionadas.‖

(Andresen & Marques 2001, p.46).

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William Kent, ao realizar a Grand Tour, à altura na moda para as elites, familiarizou-se com a obra dos grandes pintores paisagistas, como Claude Lorrain ou Gaspard Poussin. Estes artistas recriavam nas suas telas paisagens arcadianas, harmonizavam os elementos naturais e construídos, como edifícios inspirados na antiguidade clássica.

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Os Campos Elísios correspondem a um pequeno vale com um templete ao estilo de Palladio, um espelho de água ligado a grandes relvados com matas de árvores frondosas como pano de fundo.

Lancelot ―Capability‖ Brown, continuou o trabalho de Kent e em Blenheim (Figura 47), o seu plano, realizado em 1764, mantinha parte da geometria inicial, mas focava-se no predomínio da forma natural. Ligava os rios num grande lago e criava um plano de água contínuo, dando uma nova escala à ponte. Criava assim uma unidade entre o palácio e o lago. No

Great Parq, os muros de limite integravam-se nos entalhes da floresta e os espaços eram

projetados cenicamente.

Figura 18 – Vista para o palácio de Blenheim. Fonte: (Blenheim Palace sem data)

Nos finais do século XVIII, em Inglaterra a nova corrente Picturesque ou Pintoresco, reagia ao jardim paisagista. ―Trata-se de um movimento precursor do culto romântico da natureza

coincidente com a chegada à Europa de plantas exóticas trazidas da Ásia, de África e das Américas, acompanhando o interesse pela história natural. Os seguidores do pintoresco dedicavam-se à busca de aspectos da natureza propícios a serem representados numa gravura.‖ (Andresen & Marques 2001, p.48).

Humphry Repton continuou os princípios de Brown sustentados em ―Sketches and Hints on

Landscape Gardening‖ (1794). Repton tinha uma visão analítica9 de cada espaço e permitiu

uma expansão do conceito do parque inglês a um público maior. Jellicoe e Jellicoe (1995) notam que foi a identidade de interesses entre a estética privada e a necessidade nacional que fomentou o movimento paisagista, tendo-se calculado que entre Brown e Repton se plantaram vinte milhões de árvores.

A escola inglesa teve aceitação em toda a Europa, e mesmo em França, onde dominavam os jardins formais e exuberantes, o novo conceito foi acolhido nos finais do século XVIII. Em Portugal, o modelo da escola inglesa entrava mais tarde, já no século XIX. As condições do

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É curioso que no seu Red Book, apresentava os seus desenhos analíticos o antes e o depois de cada intervenção num determinado lugar, através da movimentação de uma aba. A apresentação do projeto começava a ter assim uma linguagem abrangente.

clima e da topografia associadas à cultura faziam com que se privilegiassem os jardins formais, de estar, organizados em terraços.

No Porto, aquele modelo é em grande parte introduzido por João Allen, cônsul inglês na cidade. Aderiu ao Picturesque, ―tendo-nos mesmo deixado desenhos e pinturas reveladores

desta sua atitude, e na sua biblioteca constam livros, então muito na moda, que registam imagens desses cenários. João Allen deixou-se simultaneamente influenciar pelo Gardenesque, um termo introduzido por J. C. Loudon em 1832, defendendo que a imitação da natureza deveria estar sujeita a um certo nível de domesticação ou aperfeiçoamento. O termo foi evoluindo, passando depressa a significar um estilo de plantação baseado na individualização de árvores e flores permitindo que cada espécime atingisse a perfeição.‖

(Andresen & Marques 2001, p.48).

O carácter romântico dos jardins do Porto do século XIX é visível na Quinta das Virtudes onde ―da presença de Marques Loureiro permanecem algumas construções em betão

armado, tais como bancos e varandins imitando troncos de árvores, assim como vestígios de carapinhado que revestia muros e pequenos ‗rochedos‘, também em betão, para crescimento de plantas.‖ (Andresen & Marques 2001, p.64); na Quinta Villar D‘Allen (Figura

19), com um terreno armado em patamares, pontuados por jardins de canteiros irregulares com diversidade de plantas ornamentais, muitas delas exóticas. Enquadrados pela vegetação, o lago e ribeiro de desenho biomórfico, conduzem a água para uma cascata na mata; a Quinta de S. Roque da Lameira pontuada por construções como um caramanchão em ferro, um mirante em betão imitando os troncos de árvore, onde por baixo existe uma gruta e um lago, ao estilo do desenho de Jacinto de Matos (Figura 20).

Segundo Andresen e Marques (2001), neste século a proliferação dos jardins privados devia-se em grande parte à prática e divulgação da jardinagem, assim como ao gosto pelo tratamento e plantação dos jardins, que celebravam os ideais liberais e românticos da época.

Nas reflexões de Hélder Carita (1998) o jardim português é visto como uma construção arquitetónica que se manteve por muito tempo relacionado com sua utilidade privada e bem- estar, ―espraia-se um pouco ao sabor das condições geográficas, voltando sobre si próprio,

num ambiente de requintada intimidade, mais para ser usufruído no seu interior que para ser admirado do exterior‖, o que ―nos separa da tendência paisagística da Europa além- Pirinéus, onde a natureza envolvente é convidada a participar no traçado global do jardim‖

Figura 19 - Jardim da frente da casa da Quinta de Vilar d'Allen. Foto: Herdeiros de Alfredo d‘Allen (Andresen & Marques 2001, p.53).

Figura 20 - Pormenor do mirante em betão armado e da gruta na parte inferior, na Quinta de S. Roque da Lameira, no Porto (Andresen & Marques 2001, p.86)

Ilídio Alves de Araújo (1962) aborda esta temática sustentando que ―os nossos hortos que

existiam no princípio do século XVI eram pequenos quintais enclausurados dentro de altos muros que vedavam qualquer vista para o interior, e também quase sempre para o exterior. (...) Esta concepção de horto ou jardim fechado sobre si mesmo prolonga-se entre nós pelos séculos adiante apesar da lição em contrário dos artistas italianos e franceses. Servem-lhe

de paredes altos muros de alvenaria, adobo ou taipa, por onde trepam velhas trepadeiras indígenas como a hera, a madressilva, os silvões ou a videira, ou espessas sebes vivas de loureiros, buxo, madressilva, murta e canas, e penetra-se neles por uma estreita porta ou simples cancela rústica. Ainda no século XVIII a principal alameda de Lisboa era uma cerca rectangular com muros forrados interiormente de buxo e loureiro, e janelas rasgadas para os arruamentos exteriores‖ (p.63).

Em Sintra, o Parque da Pena (Figura 21) é um dos exemplos do romantismo em Portugal. Ilídio Alves de Araújo (1979) descreve Sintra como ―A primeira realização em terra

portuguesa vincadamente inspirada nos princípios do paisagismo naturista do séc. XVIII ‖ (p.

373), onde várias espécies exóticas trazidas da Europa formaram bosques que enquadraram percursos, lagos, pontes, fontes e pérgulas, ocupando a serra naturalmente acidentada. ― O acentuado declive, a altura dos precipícios e a forte exposição aos ventos,

sugeriam mais uma mata da Europa Central que um parque inglês de clareiras cobertas de relvados recortados por tufos de árvores e riachos‖ (Carita 1998, p.290). O ambiente

pitoresco de Sintra reúne as condições para outros notáveis exemplos do romântico português, como o Parque de Monserrate, a Quinta da Regaleira e a Quinta dos Lagos (Figura 22). De percursos meandrizados, com contrastes de áreas abertas/ fechadas, com luz/sombra e elementos surpresa. O ordenamento e os percursos ―reflectem um cuidado

estudo de efeitos de perspectiva e pontos de vista‖ (Carita 1998, p.291), onde se

consideram o potencial cenográfico, os elementos naturais e construídos.

Figura 21 - Parque da Pena, com pormenor do lago, ilha e torre. Foto: Homem Cardoso (Carita 1998, p.289)

Figura 22 - Quinta dos Lagos, onde no primeiro plano se vê uma falsa ruína de templo neoclássico. Foto: Homem Cardoso (Carita 1998, p.287)