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Dos cercados e tapadas ao significado de parque

2.1. Revisão sobre a evolução do parque verde urbano

2.1.2. Dos cercados e tapadas ao significado de parque

A assunção de que o parque é um espaço de natureza tendencialmente extensiva e verde, tem uma raiz etimológica, contudo até ao século XIX o parque, nas suas diversas fisionomias, é essencialmente uma construção de natureza privada e vedada ao acesso público.

Parece consensual que a origem da palavra parque se encontra associada à palavra

parricus, um vocábulo do baixo-latim1, possível de referenciar na Lex Ripuaria2 (século VIII). Os linguistas divergem contudo quanto à sua primitiva origem.

Apoiados na relação com o vocábulo parra (de origem Ibérica), em questões fonéticas das línguas antigas e em provas documentais, alguns autores (Corminas & Pascual 2006; CNRTL sem data; Encyclopaedia Universalis 1996; Rey 1998) defendem que sua origem estará associada ao latim medievo, tendo-se depois difundido pelas línguas germânicas. Harper (sem data) contudo, ressalva que o contrário é mais provável, apoiando-se em

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A baixo-latim é uma língua medieval, também designado de latim-bárbaro, que se passou a falar após a queda do império romano. (Priberam sem data).

2

A Lex Ripuária é uma coleção da Lei Germânica do séc. VIII, que compila vários documentos anteriores, e era relativa aos Francos ripuários, uma coligação de tribos, que ocupavam a margem do troço médio do rio Reno (próximo de Colónia). (Encyclopaedia Britannica sem data; Rivers 1986).

referências que retratam o uso dos vocábulos germânicos ao séc. IV, aqui ainda com o significado de vedação e não o de lugar cercado.

É pois de concluir que, com o seu surgimento, esta palavra era aplicada para designar uma grande extensão de terra e mata delimitada por muros, criando uma reserva.

Daqui se pode também depreender da distinção atual entre os conceitos de parque e de

jardim. O parque tem implícita a grandeza ao passo que ―o jardim evoca imagens mais agradáveis e mais íntimas‖ (Encyclopaedia Universalis 1996).

A palavra jardim é aliás de raiz germânica, gard e designava o espaço que era subtraído à propriedade coletiva dos clãs do período do seminomadismo (idem). No latim hortus era aplicado para designar o jardim. O francês jardin adoptou a raíz germânica, enquanto as línguas da Europa meridional conservaram inicialmente a forma latina hort. Resulta que ambos os vocábulos se aplicavam para designar o mesmo: ―um cercado de pequenas

dimensões, fechado sobre si mesmo e cultivado minuciosamente, misturando plantas úteis e as plantas de adorno‖ (ibidem).

O conceito atual de parque era estranho à sociedade antiga ocidental pelo que em latim não há um termo especial que expresse esta noção (Ibidem). A mesma fonte relaciona a palavra

horti (plural de horts) à noção de parque, vista como uma pluralidade de células, em que

cada uma é um jardim. No francês aliás os conceitos (parque e jardim) parecem a dada altura confundir-se, logo que a ideia de parque passa a incorporar o recreio e o lazer.

No séc. XIII, a palavra parc é também aplicada para designar o espaço cercado de muros, onde se plantavam árvores de fruto. Esta noção parece ter sido essencial para a aplicação do termo para designar o parque/jardim formal francês, mais tarde no séc. XVII e XVIII.

―Tous parcs étaient vergers du temps de nos ancêtres; tous vergers sont faits parcs; le savoir de ces maîtres change en jardins royaux ceux des simples bourgeois‖ (La Fontaine,

Psyché, I, p. 104 apud Littré sem data)

A palavra vem a ser definida em 1664, no dicionário da língua francesa, como ―uma grande

extensão de terra e de bosque vedada e ordenada para decoração, prazer e recreio‖. (Rey

1998). Uma outra fonte associa a primeira referência escrita à língua inglesa, com um significado próximo do atual, em 1660, numa alusão a Londres: ―uma porção de terreno

cercado dentro ou próximo de uma localidade, para recreação pública‖ (Harper sem data)

Emile Littré encontra contudo um possível alicerce no termo parcere, que significava guardar em Latim. Percebe-se, segundo o autor, que o adjetivo parcus (que guarda) tenha tomado a forma de nome em parricus para designar o lugar onde se tem qualquer coisa em reserva (Littré sem data).

De facto, os vocábulos similares e/ou sucedâneos, em todas as línguas, vieram a expressar a ideia de cercado ou tapada (por cercas ou muros), para guardar: gado ou caça, uma mata, árvores de fruto, para o uso recreativo de um suserano: parruk, pfarrih e pferch, nas línguas germânicas; parc, no francês moderno e antigo; parco, no italiano; e parque no português e castelhano; pearruc, (park) e paddock no inglês antigo.

A alusão à grande dimensão e extensão da área cercada permanece também invocada por estes vocábulos.

Durante o séc. XIV e XV a palavra parc (francês) era também aplicada com o significado de ―campo entrincheirado‖ o que evoluiu depois apenas para campo, sendo que a palavra campo continuou a ser aplicada com significação militar, por sinonímia (Bloch & Wartburg 1991). ―Son parque [du visir Kara Mustapha], c‘est-à-dire l‘enclos de sens tentes, était aussi

grand que la ville assiégée [Vienne]; il y avait de bains, des jardins, des fontaines; on y voyeit patout l‘excès du luxe, avant-coureur de la ruine‖ (Voltaire, Ann. Emp. Leopold, 1683

apud Littré sem data).

Na obra de Fernão Lopes de Castanheda (1551, p.64), que retrata o descobrimento e conquista da Índia pelos portugueses, aparece porventura uma das primeiras referências ao termo parque na língua portuguesa escrita, também citada por Machado (2003): ―Na terra de

hua banda & doutra deste rio há muytos lugares murados, que tem muytas quintas, hortas, & muytos parques e toda a terra muyto aproveitada‖

Luís Mendes de Vasconcelos na sua obra ―Do Sítio de Lisboa Diálogos‖ (1608) atribui como características dos lugares de deleite que possibilitam o lazer: ser agradáveis à vista; de suave temperamento para o corpo; ter comodidade dos exercícios deleitosos (caça, pesca e mestria dos cavalos); e em particular, apresentar ―particulares recreações‖, como são jardins e ―quintas retiradas e sumptuosas e grandes conventos‖ (apud Carapinha 1995, p.194). Carapinha (1995) invoca uma ideia subjacente de sentimento associado à fruição de um espaço (do jardim), que é característica e se expressa no jardim português ―na arte das

quintas, das cercas conventuais, das tapadas, dos locais de peregrinação‖ (p.19) e noutros

espaços exteriores urbanos como ―rossios, alamedas e corredouras‖ (p.19), embora o recreio e o lazer apareçam muitas vezes como acessório de funções como a produção, peregrinação, atividade comercial, entre outras.

T e rr e n o e x te n s o e v e d a d o R e s e rv a a g rí c o la R e s e rv a v e rd e e e c o ló g ic a R e s e rv a c in e g é ti c a Pro p ri e d a d e p ri v a d a O rn a m e n ta ç ã o R e c re io

“Terreno de certa extensão, murado ou vedado, em que há arvoredo abundante e onde se passeia ou caça” (Machado 1991);

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“Uma extensa área territorial, de propriedade estatal, reservada a ser mantida no seu estado natural para benefício e deleites públicos e para a conservação de vida selvagem” (Brown 1993)

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“Jardim extenso e murado” (Machado 1991)   

“Extensão mais ou menos vasta de terreno arborizado, inteiramente fechado, dependente geralmente de uma propriedade (castelo, solar, casa senhorial, etc.) e compreende relvados, maciços de vegetação e árvores” (CNRTL sem data),

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“Uma área cercada, principalmente em cidades e vilas, destinada ao recreio público, usualmente extensa e paisagisticamente ornamentada” (Brown 1993),

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“Parque é um espaço verde de grande extensão, fechado e ordenado segundo uma estética de paisagem” (Encyclopaedia Universalis 1996)

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“Uma área extensa de paisagem ornamentada, usualmente com matas e pastos, associada a uma casa de campo e usada para fins recreativos e ocasionalmente para matar veados, gado, ou ovelhas” (Brown 1993)

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“Vasta área, cercada por muros ou cercas, para manter os animais selvagens, ou apenas para recreio de uma casa de campo” (Littré sem data)

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“Terreno relativamente extenso, cercado e arborizado, destinado à recreação (Instituto Antônio Houaiss 2004)

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“Extensão de terreno de vegetação vedado” (Academia das Ciências de Lisboa sem data)

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“Jardim público arborizado para lazer e ornamentação” (Instituto Antônio Houaiss 2004)

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“Jardim público arborizado” (Academia das Ciências de Lisboa sem data)

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“Zona natural cercada no qual alternam tipos de flora e fauna considerados sob protecção legal” (Academia das Ciências de Lisboa sem data)

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Figura 8 - Tabela de sistematização das ideias subjacentes às definições de parque nos dicionários etim ológicos.

A relação que a evolução do conceito de parque estabelece com a noção de montado pode também ser aqui referida. O montado é um sistema agro-silvo-pastoril que se formaliza

numa mata esparsa, com um revestimento herbáceo cultivado como pastagem e onde a vegetação arbustiva é rara ou inexistente. Como explica Montero (1998), dehesa é o castelhano para montado, sendo que a sua origem etimológica se relaciona com defesa, um sistema antigo de pastagem, em território protegido, reservado à criação de gado doméstico de utilização para a lavoura. Sobre a origem deste sistema, o mesmo autor, escreve que é possível documentar a sua existência durante a Idade Média, para o que a transumância dos Mesta3 muito contribuiu. O espaço reservado, murado ou vedado e com um objetivos de reserva ou parque de um recurso, que se conseguiu sintetizar a partir das definições mais primárias do vocábulo parque, nesta medida encontra paralelo com o objetivo associado ao próprio sistema de montado, que assume de forma evidente no castelhano a defesa de um recurso.

Independentemente da origem primitiva do vocábulo parque, é certo, da leitura dos dicionários etimológicos e das definições mais primárias do conceito de parque (Figura 8), que este aponta para uma ideia de extensão e reserva ou cercado, onde a ideia do parque verde para ocupação recreativa parece dominar, mas onde as utilidades agrária e cinegética também são invocadas. Por vezes esta ideia de parque parece associada à sua origem na propriedade privada de grandes dimensões, como de resto será bem explicitado à frente neste capítulo, com o surgimento do modelo do parque paisagista em Inglaterra.