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Do dever de colaboração do utente dos cuidados de saúde

DO DIREITO À INFORMAÇÃO EM SAÚDE

3. A transmissão da informação entre os membros da equipa de saúde

3.1. Do dever de colaboração do utente dos cuidados de saúde

O dever de colaboração do utente decorre de vários preceitos, a começar pelo artigo 64º nº 1, 2ª parte da CRP, que impõe a todos os cidadãos o dever de promover e defender a saúde. Não significa isto que todos estejam obrigados a realizar a totalidade os atos que maximizem a sua saúde – como praticar exercício físico – ou proibidos de assumir atitudes prejudiciais, de que é exemplo o tabagismo. A saúde não é o único valor social e a sua defesa e promoção têm de se compatibilizar com o livre desenvolvimento da personalidade. Deste modo, a imposição coerciva de terapêuticas é absolutamente excecional e encontra a sua

ratio na proteção de bens jurídicos fundamentais de terceiros, como

sucede no tratamento de doenças contagiosas.322

Relevante para o nosso estudo é a questão da proteção da própria saúde. Esta não pode, em princípio, ser imposta, apesar do disposto na base V, nº 1 da Lei de Bases da Saúde.323 Contudo, se o indivíduo

pretender o auxílio de profissionais de saúde para debelar um estado patológico em que se encontre, então terá de se predispor a encetar uma relação com esses profissionais de saúde, da qual decorrem certos deveres.324

É neste sentido que a base XIV, nº 2, alínea c) da Lei de Bases da Saúde estabelece o dever dos utentes de «colaborar com os profissionais de saúde em relação à sua própria situação». Ora, o conteúdo do dever de

322 Cf. CANOTILHO, J.J. Gomes/MOREIRA, Vital – op. cit., p. 826.

323 Aí se lê que «[…] os cidadãos são os primeiros responsáveis pela sua própria saúde, individual e coletiva,

tendo o dever de a defender e promover». Este preceito terá de ser lido cum grano salis, para não se correr o risco da imposição de comportamentos que deveriam estar na livre disponibilidade de cada indivíduo, sob pena de uma moralização do jurídico. Contudo, resta uma questão que, segundo cremos, se tornará cada vez mais premente à medida que a sociedade se vê cada vez mais confrontada com um elevado número de doenças que tem a sua origem em comportamentos individuais que poderiam ser evitados por aqueles que os

praticam, e que é a questão da justa distribuição de recursos. Cf. BEAUCHAMP, Tom L./CHILDRESS, James F. –

op. cit., p. 247.

324 Idem, ibidem, p. 284: «By entering into a relationship in therapy or research, the patient or subject enters

into a contract or covenant that includes a right to the truth regarding diagnosis, prognosis, procedures, and the like, just as the Professional gains a right to truthful disclosures from patients and subjects».

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colaboração que recai sobre o paciente inclui a prestação de informações relevantes sobre a sua saúde.325

Do mesmo modo, no âmbito do direito civil, quando estamos perante um contrato de prestação de serviços médicos, pode-se afirmar a existência de um dever acessório de colaboração do doente,326 que o

deverá executar de acordo com os princípios da boa fé e da lealdade. No mesmo sentido, o acórdão do STJ, de 15-10-2009327 vem

esclarecer que:

«neste domínio [do ato médico] existem dois deveres, cuja observância é fundamental, a saber: o dever do médico de dar ao paciente um

total e consciente esclarecimento […] e o dever de colaboração do paciente fornecendo ao médico, com verdade qualquer facto da sua

história clínica, com relevância para promover o sucesso ou evitar o insucesso do mesmo ato médico […] Este dever de colaboração [..] inclui, em substância, para além da exposição e resposta com verdade e sem qualquer omissão ao seu histórico clínico, inclui também e designadamente a notícia de eventuais incompatibilidades ou restrições à toma de fármacos com incidência no campo da anestesiologia»

Também em Espanha, a Ley 41/2002, de 14 de novembro, no seu artigo 2.5 positiva o dever de colaboração do paciente, sendo o conteúdo de tal preceito reproduzido ainda num grande leque de legislação autonómica.328

Vejamos, portanto, de forma sistemática, quais são as informações devidas pelo paciente aos profissionais de saúde. Em primeiro lugar – e será esta a situação mais comum – se um utente procura os serviços de

325 PEREIRA, André Gonçalo Dias – O Consentimento…, p. 53: «[…] o doente tem o dever de fornecer aos profissionais de saúde todas as informações relevantes para a obtenção de um correto diagnóstico e adequada terapêutica».

326 Cf. ALMEIDA, Carlos Ferreira de – op. cit., p. 115.

327 Disponível em: www.dgsi.pt. Consultado a 10-01-2012.

328 CORTÉS, Julio César Galán – Responsabilidad civil médica, p. 119 ss. O autor cita ainda numerosa

jurisprudência donde se extraem relevantes consequências em termos de isenção de responsabilidade dos profissionais de saúde, em virtude do não cumprimento deste dever,

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saúde, será porque suspeita ter algum problema de saúde. Estas suspeitas, na grande maioria dos casos, têm a sua origem na existência de sintomas que deverão ser comunicados com total verdade.

No contexto da comunicação que se estabelece na relação terapêutica, surgem frequentemente questões da parte do profissional de saúde, que devem ser respondidas também com veracidade. Algumas vezes, tais questões levam à revelação de informações sobre familiares do utente, para uma melhor compreensão da história clínica do mesmo.329 Estas

informações, que integram o processo clínico, estão sujeitas ao mesmo nível de confidencialidade que as informações relativas ao paciente, nos termos do artigo 5º da LIS.

O paciente não terá, contudo, de prestar informações que sejam irrelevantes para o plano terapêutico. O problema é que, na maioria das situações, o utente não detém os conhecimentos específicos da área da saúde que lhe permitem discernir uma informação relevante daquela que não o é. Daí a necessidade de ser orientado pelo profissional de saúde, através das questões que este lhe coloca.330

Uma das consequências da falta de veracidade é a possibilidade de recusa do profissional de saúde em permanecer na relação terapêutica, prestando a assistência requerida pelo paciente.331 Com efeito, a mentira

ou ocultação de factos no seio de uma relação terapêutica é um elemento extremamente perturbador da confiança existente.332 Além disso, coloca

329 DEODATO, Sérgio – Direito à Saúde, p. 152.

330 Vd. CORTÉS, Julio César Galán – Responsabilidad civil médica, p. 119: «[…] debe tenerse presente en todo

caso, que quien hace la anamnesis es el médico y es a él a quien corresponde, por tanto, formular las preguntas que considere relevantes en cada caso, sin que al paciente pueda resultarle exigible información que no le há sido demandada y que no tiene por qué saber que es importante».

331 Cf. PEREIRA, André Gonçalo Dias – O Consentimento…, p. 54. Note-se, porém, que no caso do médico,

deverá respeitar o disposto no artigo 41º do CDOM. Relativamente aos enfermeiros, também haverá limites à possibilidade de escusa, decorrentes dos artigos 82º e 83 do EOE. De qualquer forma, por força do artigo 284º do CP, sempre haveria a obrigação do médico de prestar auxílio em caso de perigo para a vida ou perigo grave para a integridade física do paciente.

332 Sobre o valor da veracidade enquanto virtude essencial para a construção da relação entre o profissional de

saúde e o paciente, leia-se BEAUCHAMP, Tom L./CHILDRESS, James F. – op. cit., p. 283: «Veracity in health care

setting refers to comprehensive, accurate, and objetive transmission of information, as well as to the way the professional fosters the patient’s or subject’s understanding […] First, the obligation of veracity is based on respect owed to others […] Second, the obligation of veracity has a close connection to obligations of fidelity

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em causa a própria atuação do profissional de saúde, que age com base em informações que tem por verdadeiras. Daí decorre um outro corolário, que é inexistência de responsabilidade do profissional de saúde por uma atuação técnica desadequada à situação concreta do paciente, mas adequada face aos elementos de que dispunha para decidir.333

3.2. Do dever de partilha de informação entre profissionais de