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Do modelo paternalista ao modelo da autonomia: os critérios éticos da transmissão da informação ao paciente

DO DIREITO À INFORMAÇÃO EM SAÚDE

1.1. Do modelo paternalista ao modelo da autonomia: os critérios éticos da transmissão da informação ao paciente

Neste ponto, sentimo-nos impelidos a convocar os diferentes modelos de relação médico-paciente, que apontam os critérios pelos quais se pautam as atitudes dos vários profissionais intervenientes do processo terapêutico.158 Note-se que todos os modelos de relação clínica

convergem na eleição do bem do doente como principal objetivo da atuação profissional em saúde. As divergências encontram-se antes na determinação desse bem e no entendimento sobre quem tem a última palavra na sua configuração.

Durante vários séculos imperou um modelo paternalista nas relações entre o médico e o doente. Na verdade, já Hipócrates entendia que o principal objetivo médico era promover o bem do enfermo, obtendo se possível a sua cooperação, à qual não era, contudo, reconhecida um cariz essencial.159 Segundo o modelo paternalista, é ao médico que cabe a

decisão sobre o que é o bem do paciente. Com efeito, entende-se que o médico, pela sua formação e experiência, é quem possui os conhecimentos que permitem discernir o melhor interesse daquele. O fundamento desta teoria encontra-se na consideração de que se um paciente procura um médico é porque, automaticamente, lhe confia todas as decisões, pois ao colocar-se nas suas mãos reconhece neste profissional de saúde a pessoa capaz de prover pelo seu interesse.160

158 A relação que se estabelece entre o médico e o paciente é a mais documentada e é a que, comummente, é

apresentada como paradigma das relações de saúde. No entanto, cremos que cada um dos restantes profissionais de saúde tem uma autonomia e competências específicas no âmbito do processo terapêutico que não devem ser desprezadas. Não obstante, no que se refere aos princípios fundamentais que devem orientar as relações com os destinatários dos cuidados de saúde, parece-nos que estes modelos se aplicam indistintamente a todos os profissionais de saúde, porque radicam não na especificidade das suas competências, mas na consideração do indivíduo doente.

159 HIPPOCRATES, op. cit., localização 14: «Life is short, and Art long; the crisis fleeting; experience perilous, and decision difficult. The physician must not only be prepared to do what is right himself, but also to make the patient, the attendants, and externals cooperate».

160 Como veremos, este paradigma irá alterar-se. No entanto, existem ainda resquícios na nossa

jurisprudência recente desta mentalidade. É o caso do acórdão do STJ, de 18 de fevereiro de 2010, onde se pode ler: «[…] alguém que escolhe previamente um determinado médico ou clínica privada porque confia nele,

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Neste sentido, o critério do médico substitui-se ao critério do paciente, em todas as situações.161

Significa isto que o bem do paciente é aferido e definido pelo médico, que tenderá, pela sua formação e experiência, a identificar tal bem com o restabelecimento ou melhoria das condições de saúde do paciente, ou seja, restringe o bem do paciente àquele que é o seu melhor interesse do estrito ponto de vista da medicina. Deste modo, o bem do paciente será seguir o plano terapêutico que, no entender do médico, é o que melhor se adequa à resolução do seu problema de saúde.

No entanto, o busílis da questão evidencia-se no facto de as aspirações e convicções mais profundas do paciente, ou seja, o seu projeto de vida, poderem não coincidir com esta perspetiva médica. Assim sendo, no paradigma paternalista, o médico tenderia a assumir uma atitude de tudo fazer para que o paciente seguisse o plano terapêutico previamente delineado. Neste “tudo fazer” incluir-se-ia a ocultação de informações sobre o seu estado de saúde ou sobre os riscos inerentes ao plano terapêutico aconselhado pelo médico, com o intuito de manipular a decisão do doente.

Hoje em dia, o modelo paternalista está ultrapassado. Com efeito, se este foi o modelo que vigorou sobretudo desde o século XIX até à segunda guerra mundial, deixou de ser aceite após o término daquela. Também neste campo, os horrores da guerra foram estímulo para uma nova forma, mais humanista, de encarar a relação médico-paciente, que se tornou paulatinamente o paradigma de toda a relação profissional estabelecida com o doente.

Alguns autores defendem que, até ao século XIX, a relação entre o médico e o doente era muito diferente das representações que hoje temos dessa mesma relação, uma vez que o leque de respostas que a medicina

exigirá dele uma «informação menos informada», predispondo-se a aceitar as indicações médicas que receba nos mesmos termos, com o mesmo crédito de confiança com que firmou a sua escolha». Trata-se de uma conclusão, a nosso ver, inaceitável, uma vez que, do exercício de um direito (liberdade de escolha no médico), o Tribunal conclui – rectius, presume – um consentimento da limitação de outro (direito a ser informado).

161 CORTÉS, Julio César Galán - Responsabilidad médica y consentimiento informado, Madrid, Civitas

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oferecia às situações de doença era reduzido e, por isso, também o tipo de intervenções consideradas adequadas estavam longe de ser agressivas ou invasivas.162 Ainda assim, procurava-se sempre o consentimento do

paciente para as terapêuticas a adotar. Contudo, esta atitude visava mais a comodidade do médico e o sucesso do tratamento do que o respeito pela liberdade do paciente.

No século XIX, o paternalismo médico agudizou-se, mercê das novas descobertas científicas que davam a impressão de tudo poder curar e que conferiam ao médico um poder que antes nunca tivera. Agora sim, os médicos sabiam mais, mas nem por isso consideravam pertinente partilhar esse saber com os pacientes, muito menos quando tal comunicação pudesse colocar em risco o plano até ali traçado ou, no limite, levasse à recusa do paciente em submeter-se a tratamentos inovadores e potencialmente mais perigosos do que os até ali praticados, como as modernas cirurgias ou os novos medicamentos.

O mundo só começou a acordar do sonho dos novos e admiráveis avanços científicos com o pesadelo da grande guerra, que descobriu em grandes vultos da ciência de então o caráter de criminosos de guerra. As experiências a que foram submetidos milhares de seres humanos ainda hoje povoam o subconsciente coletivo do mundo atual, desvanecendo-se

162 PEREIRA, André Gonçalo Dias – O Consentimento Informado…, pp. 24-30. Sendo certo que as intervenções

mais invasivas, como as cirurgias, só começaram a ser praticadas no século XIX, não podemos deixar de ter algumas reservas em aceitar uma ideia de cuidados de saúde não invasivos, que consistiriam em algumas visitas médicas e muitas mezinhas caseiras. Na verdade, existem relatos de práticas, a nosso ver, bem mais agressivas do que as que são realizadas atualmente, sobretudo se considerarmos que eram feitas sem anestesia. A este respeito, limitamo-nos a transcrever uma passagem de um manual para enfermeiros, cuja primeira publicação data de 1741: «Para se lançarem as sanguessugas no intestino reto, se lavará primeiro a parte com água quente, e tendo cabelo, se lhe rapará muito bem com a navalha. Advertirá o Enfermeiro ao Barbeiro e as que o Médico determinou se lançassem. O enfermo se porá de lado, que é a melhor forma de estar sem se afligir. Junto da cama estará uma bacia com água salgada, para se deitarem as que forem caindo, que nesta água soltam logo o sangue e morrem. Se o Médico determinar que o enfermo não tome banho por estar fraco, se lhe meterá debaixo um lençol para apanhar o sangue, que correr; e se continuar demasiado, lhe porão na parte umas raspas de Cortidor, ou isca de pano novo queimado; e quando isto não

baste, se lhe aplicarão umas planxetas de clara de ovo com pós restritivos» (SANT-IAGO, Fr. Diogo de – Postilla

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a relação natural de confiança com a classe médica.163 A sociedade do

pós-guerra sentiu a necessidade de recuperar um olhar ético sobre o mundo e de impor limites à capacidade da ciência. Nem tudo o que é

possível realizar-se deve ser realizado: esta foi a grande lição que

conduziu à mudança definitiva do paradigma das relações em saúde. Surge então um novo modelo de relação médico-paciente, denominado modelo da autonomia,164 fruto de uma evolução que ainda não terminou.

Após o final da segunda guerra mundial, e em virtude dos julgamentos de Nuremberga, onde a voz das vítimas se fez ouvir e deu a conhecer ao mundo os tratamentos cruéis e desumanos a que foram submetidas milhares de pessoas, surgiu em 1947 o Código de Nuremberga, um conjunto de dez princípios que incorporam atitudes éticas na experimentação em serem humanos.

O primeiro desses princípios estabelece o consentimento voluntário do paciente, ou seja, determina-se que o paciente deve ter a liberdade de escolher participar ou não na experimentação, o que pressupõe, segundo a própria formulação do princípio, que o paciente tenha acesso ao conhecimento e compreensão suficientes dos riscos e circunstâncias que envolvem todo o processo experimental.

Mais tarde, em 1964, a Associação Médica Mundial165 redigiu também

um conjunto de princípios que deveriam orientar a prática médica no âmbito da pesquisa e experimentação biomédica e que foram proclamados na Declaração de Helsínquia.166 No que se refere ao direito a

ser informado, destaca-se o princípio 24º, que estabelece um largo

163 Sobre as experiências médicas levadas a cabo por médicos ao serviço do regime nazi, vd. SPITZ, Vivien –

Doctors from Hell: The Horrific Account of Nazi Experiments on Humans, Colorado, Sentient Publications, 2005.

164 Vd. BEAUCHAMP, Tom L./CHILDRESS, James F. – Principles of Biomedical Ethics, 5ª ed., Nova Iorque, Oxford

University Press, 2001, pp. 57 e ss.

165 A Associação Médica Mundial foi criada em 1947 e é uma confederação de associações médicas nacionais,

que visam a promoção da saúde, melhoria dos cuidados médicos e o desenvolvimento da ética médica, através da partilha e da criação de um fórum internacional que proporcione o diálogo entre médicos de todo o mundo. Colabora ainda com várias organizações internacionais, entre as quais se destaca a OMS. Atualmente, conta com cerca de dez milhões de membros. Para saber mais, vd. http://www.wma.net.

166 A Declaração de Helsínquia sofreu seis alterações desde a sua proclamação, a última das quais no ano de

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âmbito de informação a que o sujeito deverá ter acesso antes de prestar o seu consentimento para a participação numa investigação biomédica.167

No entanto, foi apenas em 1981, com a Declaração de Lisboa, elaborada também no seio da Associação Médica Internacional, que a questão do consentimento e do direito à informação extravasou o âmbito da investigação biomédica para se estender ao próprio tratamento. Assim, o princípio 3º da referida declaração consagra um direito do paciente à autodeterminação, significando para este um poder de decidir sobre si mesmo, ou seja, de dar ou recusar o seu assentimento a um determinado método de diagnóstico ou terapêutica.

Intimamente relacionado com esta faculdade, está o direito do paciente a ser informado. Com efeito, diz o princípio supra mencionado que «o paciente tem direito à informação necessária para poder tomar as suas decisões. O paciente deve compreender claramente qual é o objetivo de qualquer teste ou tratamento, quais os resultados que irão implicar e quais as consequências da recusa de consentimento».168

Todos estes enunciados anunciam um novo paradigma das relações em contextos de saúde. Trata-se, pois, de um modelo de autonomia, segundo o qual o ser humano já não surge como mero objeto de um qualquer tratamento (que terá de aceitar, quer queira, quer não, porque “é para o seu bem”), sendo, ao invés, considerado verdadeiro sujeito dos cuidados de saúde.

O modelo da autonomia tem como base a dignidade humana, colocando em evidência a dimensão da liberdade humana enquanto autodeterminação, ou seja, a capacidade de decidir sobre si mesmo aquilo que mais lhe convém, em conformidade com as suas convicções e com o projeto de vida que construiu na base da sua personalidade.

167 Com efeito, os pacientes devem ser informados dos objetivos, métodos e fontes de financiamento da

investigação, de possíveis conflitos de interesse por parte do médico que conduz o estudo, e ainda das suas afiliações institucionais. Além disso, o sujeito também deve ser informado acerca dos possíveis benefícios e potenciais riscos que o processo de investigação acarreta e, sobretudo, acerca dos seus direitos no âmbito da investigação, onde se destaca o direito de, a qualquer momento, poder retirar o seu consentimento, sem que seja prejudicado por causa disso.

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Assim sendo, o próprio interesse do paciente não é definido por outros, de modo externo, mas pelo próprio, no seu íntimo, pela ponderação pessoal do valor das alternativas. E se é verdade que, na maioria das situações, o interesse do paciente coincide com o seu melhor interesse do ponto de vista médico,169 a verdade é que não é certo que

assim seja. De facto, podem ocorrer situações em que o tratamento mais adequado, e até aconselhado, do ponto de vista médico, não coincida com os interesses do paciente.170 Pense-se no caso de pacientes terminais que

optam por prescindir de um tratamento que lhes permitiria mais algum tempo de vida, mas que os impediria de continuar ou concluir um importante projeto que tenham, ou na situação em que se encontram certos indivíduos com convicções religiosas particulares que os impedem de aceitar determinados tratamentos, ou ainda na circunstância de pessoas que, podendo recorrer a tratamentos de medicina oriental, os preferem em relação à medicina ocidental.

Em suma, o modelo da autonomia nas relações de saúde privilegia a liberdade do paciente.171 Com efeito, quando uma pessoa se vê perante

uma situação patológica, principalmente de doença grave, é normal que muitas das suas perspetivas se alterem e que se sinta afetada naquilo que é a sua dignidade e até na sua identidade. Contudo, mesmo em situações de grande vulnerabilidade e limitação, é possível garantir e proporcionar aos pacientes aquele último reduto do seu sentir-se pessoa que consiste na capacidade de se autodeterminar, ou seja, de tomar

169 Com efeito, só esta evidência permite fundamentar o instituto do consentimento presumido, consagrado no

artigo 39º do Código Penal, como causa excludente da ilicitude de uma conduta típica. Ora, presumir o consentimento de alguém pressupõe a existência de padrões de atuação e de hierarquização de bens jurídicos previamente definidos. Com efeito, na grande maioria das situações, quando as pessoas são colocadas perante a escolha entre os bens jurídicos da vida e da saúde ou outros bens jurídicos, optam por aqueles, em detrimento destes. É com base neste padrão de escolhas que também os profissionais de saúde vão atuar. Assim, se chega um paciente politraumatizado e em coma às urgências de um hospital mas que carece de uma operação urgente para sobreviver, ainda que tal operação implique a potencial amputação de um membro, o médico irá presumir o consentimento do paciente, pois o mais provável é que o paciente optasse por colocar a vida em primeiro lugar, em detrimento da sua integridade física.

170 No mesmo sentido, afirmando que «a saúde e bem-estar nem sempre são um valor relevante nas razões da

ação», veja-se VIEIRA, Margarida – A Vulnerabilidade e o Respeito no Cuidado ao Outro, Lisboa, Faculdade de

Filosofia da Universidade Nova de Lisboa, 2002. 322 f, tese de doutoramento, p. 143.

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decisões sobre si próprio. Isto só pode ser feito quando os profissionais de saúde, além de respeitarem essa autodeterminação, a promovem, no contexto da cultura e dos valores de cada pessoa.172

Todavia, resta ainda uma pergunta: qual é o papel da informação neste contexto? Ora, a informação é essencial para a tomada de decisão. Não pode existir uma decisão autónoma sem que haja uma compreensão das alternativas acerca das quais se decide e sobre as consequências da decisão. Deste modo, se a informação é deficiente, a decisão será viciada e, nesse caso, não será uma decisão autónoma. Como é do conhecimento geral, uma das formas de condicionar as decisões alheias é, precisamente, a manipulação da informação a que os indivíduos têm acesso.

Em suma, o direito à informação é um direito fundamental em contextos de saúde, pois é ele que garante a efetiva autonomia do indivíduo na sua tomada de decisão e, consequentemente, a sua autodeterminação, sem a qual não existe respeito pela dignidade humana.173 Deste modo, não podemos deixar de notar a estrita relação

172 Idem, ibidem, p. 134-141. Para ilustrar o que afirmamos, convocamos um caso relatado pela autora de um

doente renal crónico que, além de doente, estava a cumprir uma pena de prisão de sete anos. Este paciente, após dois anos de hemodiálise, apresentou a recusa do consentimento. O enfermeiro, apercebendo-se de que a sua decisão era autónoma, ou seja, livre e esclarecida, respeitou tal decisão. Passadas algumas horas, o paciente voltou a consentir no tratamento, vindo a falecer passados poucos dias. Durante todo o tempo, a vontade do paciente foi respeitada. Ou seja, apesar de preso e doente, este homem permanecia ainda assim livre na sua autodeterminação.

173 Como se pode ler no ponto 3.2.2 do Parecer do Comité Económico e Social Europeu sobre «Os direitos do

paciente» (2008/C 10/18), «A informação não é um fim em si mesmo, mas um meio de permitir que a pessoa faça as suas escolhas livres e esclarecidas». Note-se, porém, que este caráter instrumental da informação não significa que ela não deva ser abordada autonomamente, enquanto dever jurídico. Com efeito, como refere

PEREIRA, André Gonçalo Dias – O Consentimento Informado…, p. 353: «Se associarmos, de forma excessiva, a

obrigação de informar à necessidade de obter um consentimento, a primeira corre o risco de se tornar desprovida de sentido, quando é precisamente a informação sobre o seu estado, por mais pessimista que o prognóstico possa ser, que pode ser muito importante para o paciente», ou seja, estamos perante as situações em que não há intervenção médica a ser consentida, porque a medicina ainda não tem uma resposta para determinado quadro clínico, embora tenha os meios de o diagnosticar e o conhecimento sobre a sua evolução natural.

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de dependência que existe por parte do instituto do consentimento informado face ao direito à informação.174