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DO DIREITO À INFORMAÇÃO EM SAÚDE

2. A responsabilidade pela violação de deveres de informação

2.1. A responsabilidade dos profissionais de saúde pelo incumprimento do dever de informar o doente

2.1.1. Responsabilidade penal

A responsabilidade penal dos profissionais de saúde376 resulta dos

artigos 150º,377 156º378 e 157º do CP. No que concerne aos médicos, o

nosso ordenamento jurídico prevê ainda, no artigo 284º do CP, o crime de recusa de médico, que «traduz uma agravação especial da violação do dever geral de auxílio».379

O número de casos que encontramos referentes à punição de profissionais de saúde ao abrigo destas normas foi escasso e, no que se refere ao artigo 156º do CP, nulo. Com efeito, as intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos com violação das leges artis surgem como objeto de decisão de alguns acórdãos. No entanto, tal prática é qualificada como uma ofensa à integridade física, pelo que o artigo 150º não tem autonomia na grande maioria dos casos.380 O crime de recusa de

375 RODRIGUES, Álvaro da Cunha Gomes – Responsabilidade Médica em Direito Penal: Estudo dos Pressupostos

Sistemáticos, Coimbra, Almedina, 2007, p. 25; SOUSA, Miguel Teixeira de – op. cit., p. 124. Também o acórdão do STJ, de 19-06-2001 afirma que a «responsabilidade [médica] pode ser civil, criminal ou disciplina, podendo esta última situar-se num plano de tutela de autoridade médica pública ou num plano disciplinar laboral privado».

376 Embora os referidos artigos digam respeito a “intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos”, não há

dúvida que abrangem todos os profissionais de saúde que executem um ato terapêutico. Assim decorre da

expressão «médico ou por outra pessoa legalmente autorizada». DIAS, Jorge Figueiredo/MONTEIRO, Jorge Sinde

– op. cit., p. 69, exemplificando, consideram incluir-se na expressão, entre outros, os enfermeiros, parteiras, dentistas e os protésicos.

377 O nº 1 deste artigo corresponde, com ligeiras alterações formais, ao artigo 150º do CP de 1982. Já o nº 2 foi

introduzido pela Lei nº 65/98, de 2 de setembro. Cf. GONÇALVES, M. Maia – Código Penal Português, 14º ed.,

Coimbra, Almedina, 2001, p. 505.

378 O texto do atual artigo 156º resulta da revisão de 1995, efetuada pelo Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de

março. O texto anterior, expresso no artigo 158º, era muito semelhante, vindo com a revisão esclarecer-se o caráter alternativo das alíneas do nº 2 e eliminando-se o nº 3, onde se podia ler “O agente não será igualmente punível quando a intervenção ou o tratamento forem impostos pelo cumprimento de uma obrigação legal”, por

se considerar estar já abrangido pelo artigo 31º, nº 2, al. c) do CP. Cf. GONÇALVES, M. Maia – op. cit., p. 527.

379 Cf. acórdão do TRP, de 03-06-2009. Disponível em: www.dgsi.pt. Consultado a 10-01-2012.

380 Com efeito, existem algumas dificuldades em autonomizar a punição do artigo 150º do CP em relação aos

crimes de ofensas à integridade física. Neste sentido, leia-se ANDRADE, Manuel da Costa – Artigo 150º..., p.

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médico também encontra algumas condenações.381 Já as intervenções

médico-cirúrgicas arbitrárias ainda não têm expressão na atual jurisprudência.

A responsabilidade penal por violação do dever de informar decorre do disposto nos artigos 156º do CP, complementado pelo artigo 157º do mesmo diploma. Como já referimos, o artigo 156º do CP prevê e pune as intervenções médico-cirúrgicas arbitrárias, configurando-as como um crime contra a liberdade.

Na verdade, o que o artigo 156º do CP vem estabelecer é a exigência de o profissional de saúde obter o consentimento informado do paciente para a execução de um ato terapêutico da sua competência. Ora, o consentimento informado é um instituto que tem vários pressupostos,382

entre os quais avulta precisamente o dever de informar ou, na terminologia do CP, esclarecer o paciente sobre um conjunto de aspetos relativos à sua condição clínica.

ofensa corporal típica […] Na medida em que provoca um perigo para a vida o facto é já punido pelo art. 144º al. d) face ao qual o nº 2 do art. 150º parece emergir como norma subsidiária. Só na parte em que provoca um perigo para o corpo ou para a saúde terá o preceito conteúdo normativo próprio e novo». A nível jurisprudencial, consulte-se o acórdão do TRL, de 18-12-2007, que julga o caso de uma senhora que sofria de espondilite anquilosante, tendo sido proposto um tratamento experimental com um medicamento denominado Remicade. Um dos efeitos secundários do Remicade era o possível desenvolvimento de uma tuberculose pulmonar. A assistente, que alega nunca ter sido informada de tal efeito, vem a contrair a referida doença. A assistente pretendia a condenação dos médicos, ao abrigo dos artigos 148º (ofensas à integridade física) e 156º do CP. O tribunal considerou que houve violação de leges artis, uma vez que os médicos não tinham acompanhado devidamente a situação da assistente, mas consideraram não ser possível uma condenação, por não estar provado o nexo de causalidade entre o uso do Remicade e a contração de tuberculose pulmonar por parte da assistente, considerando que, embora fosse uma hipótese, tal não era suficiente em processo penal. No entanto, uma vez provada a violação de leges artis, o Tribunal considerou que não seria possível a condenação pelo crime de intervenções médico-cirúrgicas arbitrárias, pois é um tipo legal incompatível com uma atuação desconforme às leges artis. Veja-se ainda os acórdãos do TRG, de 03-05-2004 (onde também foi provada a violação das leges artis, mas não o nexo de causalidade), do TRE de 08-04-2010 (também com uma absolvição, considerando o Tribunal que o artigo 150º do CP, ex vi artigo 13º do CP, é um tipo de crime que apenas admite o dolo e, sendo a conduta do médico negligente, não se enquadra em tal tipo de crime) e do TRP de 19-03-1998, com um entendimento diferente, afirmando que “os factos referidos no artigo 150º do CP só integram ilícito penal se houver ofensa no corpo ou na saúde, seja tal ofensa dolosa ou negligente”. Todos disponíveis em: www.dgsi.pt. Consultados a 10-01-2012.

381 Vd. acórdãos do STJ, de 06-03-1991 e de 26-11-1993 e o acórdão do TRP, de 03-06-2009. Todos

disponíveis em: www.dgsi.pt. Consultados a 10-01-2012.

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De tal forma é este requisito relevante, que o próprio CP lhe dedica um artigo específico – o artigo 157º. A falta de esclarecimento do paciente vicia o consentimento, tornando-o ineficaz. Com efeito, quando o profissional de saúde não cumpre o seu dever de esclarecer o paciente, ele não viola apenas um direito fundamental do paciente – que é o direito à liberdade –, mas faz perigar a própria relação que mantém com a pessoa que se colocou aos seus cuidados, uma vez que tal omissão trai a confiança que nele tinha sido depositada.383

Note-se, a este propósito, que os profissionais de saúde estão obrigados a respeitar a vontade do doente, ainda que tal vontade apareça aos seus olhos como irracional. É o que decorre de um acórdão do STA, de 09-03-2000,384 em cujo sumário se pode ler que

«Não tendo os lesados alegado que a recusa de aceitação da prestação de cuidados de saúde por parte do paciente resultou de incumprimento do dever de informação por parte do médico, está vedado extrair a conclusão da violação desse dever, mediante presunções judiciais, apenas com base na irracionalidade dessa recusa».

O que o STA vem afirmar é a impossibilidade de, partindo do facto da irracionalidade da recusa, se firmar um facto desconhecido, que é a violação do dever de esclarecimento por parte do médico. Parece-nos que esta é uma decisão acertada, na medida em que admitir tal presunção, significaria que o esclarecimento, só por si, conduziria a uma única

383 No mesmo sentido, vd. RODRIGUES, Álvaro da Cunha Gomes – Responsabilidade Médica em Direito Penal:

Estudo dos Pressupostos Sistemáticos, p. 298. O autor classifica a violação do dever de esclarecer como um

erro médico, mais especificamente, como o erro na relação médico/paciente (o autor circunscreveu o seu trabalho ao exercício da medicina, mas não vemos razões que impeçam a sua aplicação a outros profissionais de saúde; muito pelo contrário, uma vez que para qualquer intervenção de saúde, independentemente do profissional de saúde que a planeia ou executa, é necessária a obtenção do consentimento informado do paciente). Excetuam-se, como decorre da última parte do artigo 157º do CP, os casos em que tenha lugar o privilégio terapêutico.

384 Disponível em: www.dgsi.pt. Consultado a 10-01-2012. É verdade que não estamos aqui em sede penal,

mas cremos que este tópico poderá ser utilizado em qualquer domínio de aplicação do Direito que implique uma análise do dever de esclarecimento.

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decisão racional, o que constituiria, sem dúvida, uma limitação do direito dos indivíduos à autodeterminação em cuidados de saúde.

O crime de intervenções médico-cirúrgicas arbitrárias é um crime dependente de queixa, ou seja, trata-se de um crime semipúblico (artigo 156º nº 4 do CP) e a pena a aplicável é a pena de prisão, até três anos, ou a pena de multa.

A negligência grosseira385 na representação dos pressupostos do

consentimento é punível, mas atenua a moldura aplicável, que passa a ser de pena de prisão até seis meses ou pena de multa até sessenta dias. Não temos conhecimento de casos de condenação pela prática deste crime.

Por fim, convém salientar que há situações em que o CP vem dispensar o profissional de saúde da obtenção do consentimento real do paciente. Com efeito, nos casos previstos no artigo 157 nº 2, do CP, entende-se que, não havendo «circunstâncias que permitam concluir com segurança que o consentimento seria recusado», o profissional de saúde pode atuar presumindo o consentimento daquele que assiste, sempre que esteja perante casos de emergência, seja ela no decurso de uma intervenção ou tratamento (artigo 156º nº 2 al. b) do CP) ou não (artigo 156º nº 2 al. a) do CP).