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Do dever de partilha de informação entre profissionais de saúde

DO DIREITO À INFORMAÇÃO EM SAÚDE

3. A transmissão da informação entre os membros da equipa de saúde

3.2. Do dever de partilha de informação entre profissionais de saúde

Além do dever de colaboração do utente, existe ainda um dever de colaboração entre os vários profissionais de saúde que trabalham em equipa, na prestação de cuidados a um paciente concreto. De facto, encontramos, nas várias profissões de saúde reguladas, normas deontológicas que sublinham a importância de uma relação de colaboração entre os vários profissionais desta área, como é o caso dos artigos 91º do EOE,334 111º do EOF,335 145º a 147º do CDOM336 e do

ponto 3 do CDOP.337

and promise keeping […] Third, relationships between healthcare professionals and their patients and between researches and their subjects ultimately depends on trust, and adherence to rules of veracity is essential to foster trust»

333 Vd. CORTÉS, Julio César Galán – Responsabilidad civil médica, 3ª ed., Madrid, Civitas Ediciones, S.L., 2011,

p. 119: «Resulta manifiesta la necesidad de que el paciente colabore, de forma leal y en la medida de sus posibilidades, con el médico que le atiende, para que este pueda efetuar un diagnóstico y tratamiento correto del mismo, en tal forma que la omisión de este fundamental deber por parte del enfermo puede determinar la exención de responsabilidad del facultativo en aquellos supuestos en que se actuación errónea o inadecuada haya sido mediatizada por la omisión de sus antecedentes clínicos o físicos por parte del propio paciente».

334 «Como membro da equipa de saúde, o enfermeiro assume o dever de:

a) Atuar responsavelmente na sua área de competência e reconhecer a especificidade das outras profissões de saúde, respeitando os limites impostos pela área de competência de cada uma;

b) Trabalhar em articulação e complementaridade com os restantes profissionais de saúde;

c) Integrar a equipa de saúde, em qualquer serviço em que trabalhe, colaborando, com a responsabilidade que lhe é própria, nas decisões sobre a promoção da saúde, a prevenção da doença, o tratamento e recuperação, promovendo a qualidade dos serviços».

335 «No exercício da sua atividade, o farmacêutico deve, sem prejuízo da sua independência, manter as mais

corretas relações com outros profissionais de saúde».

336 «Artigo 145.º - (Princípio geral)

O médico, nas suas relações com os outros profissionais de saúde, deve respeitar a sua independência e dignidade»;

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Percebe-se, portanto, que todas as normas referidas, com maior ou menor detalhe, almejam a criação de um ambiente de trabalho em complementaridade funcional, com vista à obtenção de um nível ótimo de realização dos interesses do doente. Ora, um elemento essencial para a efetivação da complementaridade funcional que deve operar entre os profissionais de saúde de uma mesma equipa é a transmissão de informação. O conteúdo particular da informação a transmitir só pode determinado no caso concreto. No entanto, sempre poderemos tentar perceber quais são os critérios orientadores dessa transmissão.

Um dos aspetos mais pertinentes da informação transmitida entre profissionais de saúde é a sua relação com o direito à reserva da intimidade da vida privada, constitucionalmente protegido no artigo 26º da CRP. Esta relação é confirmada pela existência de normas deontológicas que estabelecem o dever de segredo profissional,338

devendo a informação de saúde dos pacientes ser partilhada apenas com

1. O médico, nas relações com os seus colaboradores não médicos, deve observar uma conduta de perfeita cooperação, de mútuo respeito e confiança, incutindo nos seus doentes idênticas atitudes.

2. O médico deve assumir a responsabilidade dos atos praticados pelos seus auxiliares desde que ajam no exato cumprimento das suas diretivas, nos termos do artigo 34.º»;

«Artigo 147.º- (Relações com outros profissionais de saúde)

1. A profissão médica deve ser sinérgica com todas as profissões da área da saúde na procura dos melhores resultados para o doente, pelo que é recomendável a relação franca e leal, respeitando os limites de atuação de cada uma.

2. É vedado ao médico delegar atos médicos noutros profissionais de saúde, sem prévio conhecimento e autorização da Ordem dos Médicos, salvaguardando situações de risco iminente de vida, nomeadamente, no caso dos farmacêuticos, a escolha de fármaco ou a alteração da receita médica.

3. Sem cercear o direito de esclarecimento, é proibido ao médico exercer influência sobre os doentes para privilegiar determinadas farmácias, clínicas, hospitais ou outros intervenientes na prestação de cuidados de saúde.

4. Deve o médico, sempre que tome conhecimento de factos que denunciem improbidade ou incompetência de profissionais de saúde, comunicá-los à Ordem ou entidade similar respetiva».

337 «O exercício da Psicologia tem uma finalidade humana e social, com objetivos que envolvem o bem -estar, a

saúde, a qualidade de vida e a plenitude do desenvolvimento das pessoas. Os/as psicólogos/as não são os únicos que perseguem estes objetivos, sendo conveniente, e mesmo necessário em alguns casos, a colaboração com outros profissionais, sem prejuízo das competências e saberes de cada um. Os/as psicólogos/as respeitam as relações profissionais, competência específica, deveres e responsabilidades de colegas e outros profissionais. Paralelamente, os/as psicólogos/as constituem -se como primeiros responsáveis pela excelência do desempenho profissional, auxiliando os colegas na prossecução desse objetivo».

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aqueles profissionais que também estão envolvidos no plano terapêutico.339 Também parece ser esse o sentido do artigo 5º, nº 5 da

LIS.340 Fala-se, a este propósito, de um segredo partilhado, ou seja, é

lícita a transmissão de informação sujeita a segredo profissional, quando tal informação é necessária para o delineamento e a prossecução do plano terapêutico.341 Com efeito, encontra-se aí um limite à transmissão

da informação, mesmo entre profissionais da mesma equipa de saúde. Os direitos fundamentais devem sofrer restrições apenas na medida do estritamente necessário. Assim, se durante o processo terapêutico, os profissionais de saúde têm acesso a diferentes informações, provindas de diferentes fontes – como sejam o próprio utente, terceiras pessoas ou meios complementares de diagnóstico –, deverão ser capazes de discernir aquelas que devem ser partilhadas com os outros profissionais de saúde envolvidos no caso, daquelas que devem permanecer em segredo.342

Em suma, por princípio, toda a informação de saúde está abrangida pelo segredo profissional. Excecionalmente, poderá afigurar-se necessária a sua partilha no seio da equipa de saúde. Vejamos como.

Tal discernimento deve ser feito com base no critério da necessidade da informação para o delineamento de terapêuticas e atendendo à

339 Veja-se o artigo 85º, alínea b) do EOE, o ponto 2.10 do CDOP e o artigo 82º nº 2, alínea d) do CDOM.

340 «O processo clínico só pode ser consultado por médico incumbido da realização de prestações de saúde a

favor da pessoa a que respeita ou, sob a supervisão daquele, por outro profissional de saúde obrigado a sigilo e na medida do estritamente necessário à realização das mesmas, sem prejuízo da investigação epidemiológica, clínica ou genética que possa ser feita sobre os mesmos, ressalvando-se o que fica definido no artigo 16º».

341 ANDRADE, Manuel da Costa – Artigo 195º, in “Comentário Conimbrecense do Código Penal: Parte Especial”,

Tomo I, coord. DIAS, Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra, Coimbra Editora, 1999, p. 783: «[…] não há conduta

típica [de revelação de factos sujeitos a segredo profissional] quando a revelação é feita por um profissional a um colega ou a um perito especialmente qualificado em busca de colaboração para o melhor tratamento de um caso […]. O mesmo se passando com a comunicação entre pessoas integradas na mesma organização». Confessamos que esta última parte, a nosso ver, deve ser entendida cum grano salis. Considerando que, frequentemente, as instituições de saúde contam com a colaboração de um grande número de profissionais, não nos parece que seja claro que todos e cada um deles possa ter acesso à informação de saúde de qualquer utente dessa mesma instituição, mas apenas aqueles que estão implicados no seu plano terapêutico, pois é

essa a medida da necessidade da informação. Vd. também ABREU, Luís Vasconcelos – O segredo médico no

direito português vigente, in “Estudos de Direito da Bioética”, Coimbra, Almedina, 2005, p. 273: «O interesse

do doente, fundamento da obrigação de segredo médico, justifica que a informação possa circular, na medida do necessário, entre os diferentes profissionais que intervêm no tratamento».

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finalidade de prestar cuidados de saúde integrados e de qualidade ao utente dos serviços de saúde, maxime, evitando o erro em saúde. Assim, se a informação transmitida não puder contribuir para estes fins, ela encontra-se abrangida pelo segredo profissional, não podendo ser partilhada. De modo inverso, se informações sobre a saúde do paciente forem necessárias ao planeamento de uma intervenção multidisciplinar ou adequadas à adoção de medidas que devam ser tomadas por outro profissional de saúde, então deverão ser comunicadas.

A forma da comunicação poderá variar conforme as práticas de organização do trabalho de cada instituição. No entanto, é consensual que um valioso suporte para essa partilha é o registo de informação de saúde do utente, a realizar por cada profissional de saúde, na área da sua competência. É que, como já dizia Frei Diogo de Sant-iago, no século XVIII, não se deve deixar a vida ou a saúde do enfermo à mercê da memória, pois esta pode falhar.343 Atualmente, existe um programa de

ação nacional, que acompanha as propostas da União Europeia, no sentido da promoção e integração de registos de saúde eletrónicos. No entanto, trata-se de uma iniciativa em progresso, que ainda não está plenamente implementada.344 Porém, a mera existência do registo não

substitui a discussão de casos e planeamento, em equipa, das intervenções terapêuticas, o que se atingirá com uma dinâmica de trabalho que inclua reuniões frequentes para tal finalidade.345

343 SANT-IAGO, Fr. Diogo de – op. cit., parágrafo 108: «[…] o Médico, quando os enfermos são muitos, não se

pode lembrar do que a todos tem mandado fazer: o que vós remediais com muita facilidade, assim pela informação, que deles tendes adquirido, como pela lembrança, que na tábua da visita tendes formado, sem a qual não visiteis nunca com o Médico, ainda que os enfermos sejam poucos, que não é razão que a vossa memória seja fiadora da vida, ou saúde do enfermo».

344 Esta questão será aprofundada no capítulo seguinte. Com efeito, pretendemos aqui tratar apenas das

linhas gerais que motivam e orientam um eventual dever de partilhar informação no seio da equipa de saúde. No entanto, todas as questões relativas à efetividade de partilha de tal informação, bem como ao acesso à mesma e o papel das tecnologias de informação e de comunicação na saúde terão um tratamento autónomo.

345 Por isso, refere LOPES, Noémia Mendes – op. cit., p. 33: «Um dos indicadores da disseminação social nos

contextos de trabalho desta lógica de autonomia enquadrada na interdependência funcional é, por exemplo, a frequência e a regularidade com que são realizadas as reuniões interprofissionais para a discussão de casos concretos de trabalho; ou ainda, a frequência das interações, num dado contexto de trabalho, entre os diferentes profissionais para discutirem ou reavaliarem a eficácia de determinados procedimentos específicos». Tais reuniões e interações mais não são do que a criação de espaços e tempos dedicados à transmissão de

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A consequência da omissão de comunicação de informações relevantes é, por um lado, a responsabilização do profissional que deveria ter informado, e por outro a impossibilidade de responsabilizar o profissional que atuou erroneamente ou deixou de atuar devido à falta de informação. No entanto, não será esta a solução nos casos em que o obstáculo ao acesso à informação seja imputável ao profissional de saúde que deixou de atuar.346 Nestas situações, haverá lugar a

responsabilização, como resulta, aliás, do acórdão do TRL de 04-07- 2002, que relata o caso de um médico cirurgião que, durante o período de pós-operatório – em que previsivelmente a doente poderia precisar de auxílio – se ausentou da clínica e desligou o telemóvel, ficando incontactável. A paciente, embora assistida por uma enfermeira que, apercebendo-se da existência de complicações, tentou várias vezes o contacto com o médico, viria a falecer.