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Terceiros relevantes: sobre um conceito de família adaptado aos contextos de saúde

DO DIREITO À INFORMAÇÃO EM SAÚDE

2. Terceiros e a informação de saúde

2.1. Terceiros relevantes: sobre um conceito de família adaptado aos contextos de saúde

No início da nossa investigação, equacionamos a questão da informação aos familiares, entendendo estes no sentido corrente do termo, que equivale, grosso modo, ao sentido jurídico.

No entanto, cedo nos apercebemos que o conceito de família a ser adotado no âmbito da informação em saúde não pode ser o mesmo que decorre do artigo 1576º do CC e que limita as fontes das relações familiares ao casamento, parentesco, afinidade e adoção. Nem tão-pouco nos parece que bastará alargar a noção de família às chamadas relações parafamiliares, recentemente reconhecidas pelo legislador e assim denominadas pela doutrina.276

275 Artigo 50º nº 4 do CDOM.

276 Veja-se, por exemplo, a Lei nº 6/2001, de 11 de maio que adota as medidas de proteção de pessoas que

vivam em economia comum e a Lei nº 7/2001, de 11 de maio que adota medidas de proteção das uniões de

facto. Na doutrina, cf., entre outros, VARELA, João de Matos Antunes – Direito da Família, vol. I, Lisboa,

Livraria Petrony, 1982, p. 19-42; COELHO, Francisco Pereira/OLIVEIRA, Guilherme de – Curso de Direito da

Família, vol. I, 4ª ed., Coimbra, Coimbra Ed., 2008, p. 34-35: «As relações mencionadas no art. 1576.º CCiv

são as verdadeiras e próprias relações de família; ao lado delas, porém, há outras que, não merecendo essa qualificação, são conexas com relações de família, estão equiparadas a elas para determinados efeitos ou são condição de que dependem, em certos casos, os efeitos que a lei atribui à relação conjugal e às relações de

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De facto, o modelo de família e os laços que a unem têm-se vindo a alterar há já alguns séculos, embora as consequências dessas alterações se tenham evidenciado desde a segunda metade do século passado.

O instituto jurídico da família surgiu como uma instituição com funções políticas e sócio-económicas que justificavam uma forte intervenção estadual, justificada pelo interesse que a estabilidade familiar representava para o bem comum.277 Não obstante, a verdade é

que hoje em dia se considera, também no plano jurídico, que a família é, essencialmente, um espaço privilegiado de realização individual e de partilha de afetos,278 verificando-se uma grande volatilidade nas relações

familiares.279

Por todos estes motivos, é evidente que a família de facto, enquanto instituição sociológica, nem sempre corresponde à família de iure, cujas relações derivam das fontes estabelecidas pela lei civil.

Ora, em matéria de informação de saúde, cremos que o conceito de família terá de ser aqui distinto do conceito jurídico, precisamente por relevarem as relações pessoais de confiança e afeto, que nem sempre corresponderão às relações familiares estabelecidas pelo Direito. Com efeito, a prestação de informação em saúde a terceiros deverá ser prestada àqueles que designamos como “pessoas significativas”280 e

parentesco, afinidade e adoção. A união de facto e a vida em economia comum são as mais características destas relações, a que chamamos “parafamiliares” […]».

277 COELHO, Francisco Pereira/OLIVEIRA, Guilherme de – op. cit., p. 101-109.

278 Com efeito, pode ler-se no ponto I da exposição de motivos do projeto de lei nº 509/X, que está na base da

Lei nº 61/2008, de 31 de outubro (novo regime do divórcio): «Liberdade de escolha e igualdade de direitos e de deveres entre cônjuges, afetividade no centro da relação, plena comunhão de vida, cooperação e apoio mútuo na educação dos filhos, quando os houver, eis os fundamentos do casamento nas nossas sociedades». No

mesmo sentido, cf. COELHO, Francisco Pereira/OLIVEIRA, Guilherme de, op. cit., p. 99-109.

279 Vd. GLENDON, Mary Ann – The New Family and the New Property, Canada, Butterworths, 1981, p. 11-19. A

autora fala sugestivamente em “loose bonding” para qualificar a facilidade de alteração dos laços familiares, caracterizados cada vez mais por intensas emoções, em detrimento das preocupações patrimonais; no mesmo

sentido, mas em particular no que se refere ao casamento, vd. MACHADO, Jónatas E. M. – A (in)definição do

casamento no Estado constitucional: fundamentos meta-constitucionais e deliberação democrática, in «Família,

Consciência, Secularismo e Religião», Coimbra, Coimbra Editora, 2010, p. 15.

280 A escolha desta expressão não foi casual. Este é o conceito de família utilizado pelos profissionais de

enfermagem em todo o mundo, como resulta da Classificação Internacional para as Práticas de Enfermagem, que define a família como «unidade social ou todo coletivo composto por pessoas ligadas através de consanguinidade, afinidade, relações emocionais ou legais, sendo a unidade ou o todo considerados como um

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apenas a esses, independentemente de serem familiares no sentido do artigo 1576º do CC. De modo inverso, também se deve entender que não é devida, em princípio, qualquer informação sobre a saúde do utente ao cônjuge, parente, afim ou adotado que não seja uma “pessoa significativa”, ou seja, que não tenha sido autorizado pelo paciente a receber essa informação. Não se trata, pois, de uma mera extensão do conceito jurídico de família, mas poderá significar também uma restrição, razão pela qual defendemos a adoção de um conceito de família diverso do conceito jurídico.

Debruçamo-nos, agora, sobre a questão da transmissão de informação sobre a saúde do paciente à sua família. Neste ponto, há que distinguir duas situações que merecem um tratamento diferenciado.

Por um lado, podemos estar perante o familiar-representante. É o caso em que o paciente não tem capacidade para prestar o consentimento informado, enquanto ato de autonomia que lhe permite assumir o risco da intervenção clínica e, consequentemente, excluir a ilicitude de uma atuação do profissional de saúde que, de outro modo, seria arbitrária. Assim, embora o incapaz deva ser informado e a sua opinião considerada, na medida do possível, pelo profissional de saúde, não se pode excluir a prestação de informação a quem tem a capacidade para consentir, que é o seu representante legal. Neste caso, o fundamento da

sistema que é maior do que a soma das partes» (disponível em:

http://icnp.clinicaltemplates.org/icnp/v3_0/10007554/. Consultado a 03-05-2012). Do mesmo modo, pode ler-se no documento «Padrões de Qualidade dos Cuidados de Enfermagem» do Conselho de Enfermagem da Ordem dos Enfermeiros, de 2001, p. 8, que «a relação terapêutica promovida no âmbito do exercício profissional de enfermagem caracteriza-se pela parceria estabelecida com o cliente, no respeito pelas suas capacidades e na valorização do seu papel. Esta relação desenvolve-se e fortalece-se ao longo de um processo dinâmico, que tem por objetivo ajudar o cliente a ser proactivo na consecução do seu projeto de saúde. Várias são as circunstâncias em que a parceria deve ser estabelecida, envolvendo as pessoas significativas para o cliente individual (família, convivente significativo)». Pessoa significativa corresponde a um membro da família, entendida esta num sentido amplo, que não meramente legal, mas também afetivo. Como veremos infra, p. 132, a informação devida à família assume particular relevância no âmbito desta profissão. No entanto, também é frequente encontrar na literatura especializada na área da saúde expressões que nos remetem para a adoção de um conceito de família nos moldes que temos vindo a defender. Por exemplo, no já citado artigo

de RIBEIRO, Cristina - Família, saúde e Doença. O que diz a investigação, a autora utiliza expressões como «a

maioria das pesquisas sobre parceiras de pacientes» (p. 303) ou «Vários estudos comprovam que o envolvimento dos parceiros em dietas preconizadas contribui e tem um efeito positivo na redução do peso e manutenção do mesmo a longo prazo» (p. 302).

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obrigação de informar é o mesmo da obrigação de informar o paciente capaz para consentir, pelo que remetemos para o que ficou dito no ponto anterior deste capítulo.

Por outro lado, podemos estar a falar do familiar-cuidador.281 Esta

situação ocorre, sobretudo, no caso de doenças crónicas ou prolongadas, que podem – e devem – ser tratadas no domicílio e que requerem uma atenção constante. Em tais situações, é muito comum que os familiares assumam a tarefa de cuidadores, assistindo os seus membros mais vulneráveis nas suas necessidades de saúde e tornando-se, por isso, participantes no plano terapêutico delineado pelos profissionais de saúde.