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2. Os grupos de samba de roda de Cachoeira

2.2. Do samba do tempo antigo aos grupos de samba de roda

Quando questionados sobre o samba do tempo antigo, a primeira questão que os sambadores geralmente apontam é a da instrumentação do samba. Os grupos de

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samba de roda do tempo presente não apenas apresentam uma quantidade maior de instrumentistas que no tempo antigo, como também inseriram novos instrumentos no samba. Como me disse certa vez seu Carlito, samba com trinta pessoas não ressai. Em concordância com ele, muitos sambadores afirmam gostar de um samba em que a viola trabalha bem e pode ressair, o que não é possível quando ela some na massa sonora produzida por um número elevado de instrumentos. Não é incomum que a solução para esse problema seja buscada na mixagem das mesas de som: a viola ligada em linha na mesa acaba tendo seu volume muito mais alto que a média dos outros instrumentos, mais que tudo em suas frequências agudas, gerando um timbre estridente.

Nesse sentido, foi a possiblidade de microfonar ou ligar em linha nas mesas de som instrumentos de corda dotados de captadores que permitiu que os grupos crescessem em número de integrantes e instrumentos. Essa mudança gerou diversas transformações musicais no samba de Cachoeira. Hoje a contratação de empresas de sonorização com equipamentos modernos e potentes é comum nas grandes festas de largo, assim como a de técnicos de som locais com equipamentos próprios para eventos musicais de pequeno porte. A maior parte dos grupos possui equipamento de som próprio, que conta ao menos com alguns amplificadores, cabos, microfones e uma pequena mesa de som. Antes dessa generalização do uso de equipamentos de sonorização, no entanto, o samba era feito com uma quantidade muito menor de instrumentos.

Segundo seu Pedro Galinha Morta (Entrevista em 09/02/2017), no tempo

antigo o samba era feito só com viola, dois ou três pandeiros de couro de jiboia e um

timbal pequeno também de couro de jiboia; já seu Carlito (Entrevista 26/09/2017) contou que aprendeu a tocar com um pandeiro de couro de cutia e que poderia ser também feito de couro de jiboia, tamanduá ou bicho-preguiça, mas não de couro

branquinho (plástico). Os pandeiros de couro animal eram feitos pelos próprios sambadores, que usavam uma madeira leve e maleável – preferencialmente jenipapo.

Outra diferença desses pandeiros antigos para os industrializados – os de couro

branquinho – é que eles não possuíam tarraxas, sendo afinados em pequenas

fogueiras, o que valia também para outros instrumentos de percussão feitos artesanalmente. O calor do fogo faz o couro dos instrumentos se expandir, o que torna o seu timbre mais agudo e o couro mais firme no contato às mãos. No caso das

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tarraxas, basta apertá-las com as mãos ou com uma pequena chave para gerar o mesmo efeito do fogo e de modo mais preciso.

Viana (Entrevista em 26/11/2018), mesmo sendo um pouco mais novo que seu Pedro e seu Carlito, afirma que samba bom era o do tempo antigo e concorda com eles ao afirmar que ele era feito apenas com pandeiro, timbal e viola. Outros instrumentos também são citados por alguns sambadores como característicos do

tempo antigo, como o prato-e-faca ou prato-e-colher - que foram substituídos pelo

reco-reco, maraca e triângulo. Já dona Dalva (apud Marques, 2003, p.65) afirma que “Um pandeiro, uma viola e uma baiana batendo palma tá feito o samba”. O que fica claro é que, no tempo antigo, a formação padrão do samba era uma viola, alguns pandeiros de couro de animal e tamboretes menores que o timbal, também de couro animal. A eles poderiam ser acrescidos instrumentos adaptados, como o prato-e-faca, as taubinhas e, claro, as palmas. Como discutirei no último capítulo, essa formação sucinta de instrumentos era suficiente para que estivessem presentes todas as funções rítmicas do samba, sendo que a inserção de novos instrumentos irá gerar a redistribuição e especialização dessas funções.

Essa formação diminuta tinha, provavelmente, muitas variações. No entanto, a sua recorrência no discurso de sambadores é grande, permitindo-nos assumir a hipótese de que ela foi a formação corrente antes da institucionalização dos grupos de samba de roda e do uso mais amplo de equipamentos de sonorização. Quando, por exemplo, pedi a seu Carlito para gravá-lo tocando e cantando, ele pediu que eu levasse mais três tocadores: um de pandeiro, um de timbal e um de viola. Apesar dessa formação antiga estar ainda presente na memória de muitos sambadores, tudo indica que o aumento do número de integrantes dos coletivos que tocavam samba e a inserção de outros instrumentos é um fenômeno presente no samba desde, pelo menos, os anos 1970. Para tanto, vale analisar uma foto publicada no site do percussionista Djalma Correa, datada de agosto de 1973.

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Figura 01 – Samba de Roda da Suerdieck em 1973 – Foto 1

Fonte: https://www.sotaquesdosamba.com.br/samba-de-roda?lightbox=dataItem-iwr1jgr63

Essa foto foi tirada durante a Festa da Boa Morte e Glória de 1973 em algum dos três últimos dias de celebração. Nela vemos o Samba de Roda da Suerdieck uniformizado e tendo a frente a parelha de sambadores Alcebíades (de chapéu à viola) e seu Carlito (de chapéu ao pandeiro). É possível identificar um violão e um cavaquinho, assim como mais dois pandeiros de couro de jiboia, um reco-reco feito de bambu ou madeira e um triângulo que será melhor visualizado na próxima foto. Apesar de não aparecerem por completo na foto, os instrumentos de corda parecem ser provenientes de fábricas, não apresentando semelhanças com os instrumentos de

luthiers tradicionais com os quais me deparei no Recôncavo Baiano ou em registros

de outros pesquisadores. A viola na mão de Alcebíades apresenta as mesmas características aparentes do modelo nº 6 de 1960 da fábrica Giannini, com a diferença de que o tampo é um pouco mais escuro do que o modelo apresentado no catálogo. No entanto, como o catálogo afirma que a viola era feita de cedro, madeira que pode chegar a um tom alaranjado, creio tratar-se do mesmo modelo.

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Figura 02 – Violas Gianinni do catálogo de 1960

Fonte: http://www.giannini.com.br/catalogos-

antigos/viola%20n%25EF%25BF%25BD2%20/n%25EF%25BF%25BD5p%20/n%25EF%25BF%25B D5v%20/n%25EF%25BF%25BD5%20a%20/n%25EF%25BF%25BD5m/%20n%25EF%25BF%25BD 6/1884/

Não há sonorização de nenhum instrumento e tampouco é possível vislumbrar instrumentos de percussão grave, apesar de que é provável que houvesse outros

sambadores tocando que não foram enquadrados na foto. Em outra foto da mesma

série ainda aparecem taubinhas nas mãos das mulheres e um triângulo grosso que provavelmente foi feito por um ferreiro não especializado em instrumentos musicais.

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Figura 03 - Samba de Roda da Suerdieck em 1973 – Foto 2

Fonte: https://www.sotaquesdosamba.com.br/samba-de-roda?lightbox=dataItem-iwr1jgr64

Por essas fotos vemos que nos anos 1970 o Samba de Roda da Suerdieck já era composto por mais de dez sambadores e algumas sambadeiras - que aparecem em maior números em outras fotos dessa série. Além disso, as fotos nos mostram uma variedade maior de instrumentos musicais do que os discursos de sambadores sobre o

tempo antigo. Foi justamente o Suerdieck que estabeleceu um modelo de organização

para os grupos de samba de roda da cidade, o que nos leva a crer que ele foi um dos responsáveis pelo crescimento do número de integrantes desses coletivos, bem como pela inserção de novos instrumentos e adoção de figurinos padronizados.

Mesmo tendo esse papel de precursora da institucionalização que viria a transformar profundamente o samba do tempo antigo, dona Dalva (Entrevista em 09/02/2017) faz questão de afirmar que o samba feito pelo seu grupo é tradicional em contraste com alguns grupos que se formaram nos últimos anos. Para ela esses novos grupos têm descaracterizado o samba de Cachoeira, tocando o que chama de sambão: um samba corrido sem cadência e desregrado feito por grupos de homens sem a presença de baianas. Para ela, o samba de roda combina homens - tocadores e

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coro de resposta e, eventualmente, puxar sambas. Se não for assim, trata-se de

sambão.

Nesse sentido, até hoje o grupo de dona Dalva cultiva algumas diferenças com os outros: não se apresenta sem as baianas e veta a presença do 105. Mesmo ele, no entanto, passou por significativas mudanças ao longo dos anos, a mais relevante delas o abandono do canto em parelha. Na gravação disponível de 1973 é possível ouvir Alcebíades e seu Carlito cantando em parelha no intervalo de terça neutra (Oliveira Pinto, 1991). Já na gravação do CD Bahia Singular e Plural - lançado em 1999 - o canto é feito por um puxador solo, seu Avelino. Nas gravações do grupo nos anos seguintes, o canto principal será sempre solo e revezado por dona Dalva, Juninho Cachoeira e dona Ana.

Pelas narrativas dos sambadores, os convites de tocadas para os grupos de samba de roda começaram a se intensificar nos anos 1980, principalmente com o aumento no fluxo de turistas. Até então, a maioria das tocadas era feita no São João Feira do Porto e em uma ou outra festa de largo. É possível aventar a hipótese de que até então, mesmo com uma crescente institucionalização dos grupos de samba de roda e com a sedimentação da categoria de sambador profissional, a grande maioria dos eventos musicais seguia a ocorrer em eventos vicinais. Nesse sentido, os artigos de Ralph Waddey (2006 [1980; 1981]) oferecem descrições que corroboram essa hipótese, mesmo que ele tenha escrito a partir de um trabalho de campo feito nos municípios de Santo Amaro da Purificação e, mais intensamente, Saubara.

Logo esse cenário mudaria em Cachoeira, que apresentava um crescente fluxo de turistas e contava com um mercado de serviços e bens culturais provavelmente sem par na região. Pelo que contam os sambadores de Cachoeira, é possível supor que na Cachoeira dos anos 1970 aconteciam eventos similares aos descritos por Waddey (idem) em Saubara, ainda que as características musicais do samba já fossem bem diferentes entre as cidades. O que importa, nesse caso, é que Waddey (ibidem) nos conta de eventos musicais de samba em um contexto prévio a existência dos grupos de samba de roda em Saubara. Mesmo que eventos similares acontecessem em Cachoeira nessa época, eles já ocorriam em um contexto de institucionalização dos grupos de samba de roda e de sedimentação das tocadas. As narrativas dos

sambadores associados ao tempo antigo de Cachoeira, no entanto, são muito similares

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Segundo Waddey (2006 [1980; 1981]), p. 116-117), o conjunto ideal de samba compõe-se de uma viola machete, uma viola três-quartos55, dois ou três pandeiros, um pequeno tambor de formato variável, prato-e-faca, as palmas dos presentes e dois cantadores que geralmente também fazem parte do conjunto instrumental. Sobre o evento musical em si, Waddey (idem, p. 117, grifos no original) nos fornece uma informação relevante:

No decorrer de uma típica noite de samba, os músicos poderão sair do conjunto e a ele retornar, mudando a sua função musical interna, numa constante recomposição do grupo que faculta variedade estilística e a resistência física ao samba “de valor”, o qual “só acaba quando o dia arraiar”.

Ora, uma das grandes diferenças apontadas pelos sambadores sobre os eventos musicais do tempo antigo é que o samba raiava o dia. Entre outros motivos, isso só era possível porque o grupo não possuía formação fixa e os tocadores se revezavam entre si na medida em que os acontecimentos da noite se desenrolavam. Com isso, alguns tocadores saíam do conjunto para descansar, namorar, fumar, dançar e beber; outros logo assumiam o seu lugar. Isso não apenas levava a uma grande flexibilidade do coletivo responsável pelo samba, como também gerava uma “variedade estilística” e, mesmo que não apontada diretamente pelo autor, uma maior amplitude de repertório.

Os conjuntos a que se refere Waddey, no entanto, não eram os institucionalizados grupos de samba de roda que, ao final dos anos 1970, já existiam há bastante tempo em Cachoeira e São Félix. Trata-se de grupos formados durante os eventos vicinais do samba de Saubara e que, mesmo que tivessem sempre a presença de um conjunto razoavelmente estável de sambadores, não se configuravam como grupos institucionais com nome e formação pré-determinada. Segundo o autor (Waddey, 2006 [1980; 1981]), p.139, grifos no original)

O “samba” não é certamente, na Bahia, um grupo ou sociedade formal (salvo para fazer apresentações). Há, todavia, forte reconhecimento de afinidade com um certo, e muitas vezes bem específico grupo de pessoas competentes em um estilo de samba A questão é saber se o samba da Bahia, presentemente, retém ou não uma qualidade de identidade com um grupo estabelecido - grupo que dure além da identidade momentânea

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Ambas violas na afinação natural, o que significa na viola machete que dos pares agudos para os graves teremos: lá-lá / mi-mi / dó-dó / sol-sol (oitavado) / ré-ré (oitavado). Vale ressaltar que essas frequências não são absolutas, podendo variar de acordo com o instrumento e o tocador. Nos vídeos que Tiago de Oliveira Pinto fez com o violeiro João de Deus, por exemplo, o machete está com essa afinação, porém um tom mais aguda, começando no par mais agudo com si-si.

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assumida enquanto o gênero se apresenta, e há participação no evento do samba. (...)

“Nosso samba” pode ser usado para indicar aquele grupo de músicos e dançadores que juntos costumam realmente executar o gênero. É, noutras palavras, o conjunto de apresentação (performance). Assim, os músicos de samba podem referir-se ao seu “conjunto”, especialmente aqueles que tiveram experiência com grupos de “folclore” para a indústria turística, e ainda mais quando falam com forasteiros.

“Nosso samba”, contudo, pode também ser usado de referência a todos aqueles que são considerados competentes para executar o gênero com propriedade e da mesma forma participar do evento.

Vê-se que a possibilidade de formação de um grupo para fazer apresentações já existia, mas a sua importância é marginal no contexto observado pelo pesquisador. A formação dos grupos nos eventos do samba, portanto, é flexível, tendo sua estabilidade assegurada pelo costume de que um certo coletivo de sambadores tem de sambar em conjunto, inclusive porque demonstram competência num determinado estilo de samba. Não há nas observações de Waddey a instituição de um grupo com identidade própria, presidente, funções e formação e repertório estáveis. Pelo contrário, as apresentações musicais são relegadas ao contexto dos grupos de “folclore” para a indústria turística, ao contrário do que vemos em Cachoeira, onde as

tocadas foram também fomentadas por eventos locais feitos por e para cachoeiranos.

O que acontece em Cachoeira é que essa formação menor e flexível será paulatinamente substituída por uma nova categoria, o grupo de samba de roda. Este, por sua vez, apresenta uma formação maior de sambadores e a inserção de uma série de novos instrumentos musicais no samba. Com o tempo, o grupo de samba de roda se tornou a forma de organização social preponderante nos eventos musicais cachoeiranos, mesmo naqueles acontecimentos vicinais organizados nas residências, como os carurus e rezas. As formações menores e flexíveis, similares às descritas por Waddey (2006 [1980; 1981]) e Oliveira Pinto (1991), não desapareceram por completo, mas caíram em desuso em Cachoeira. Hoje, mesmo os pequenos eventos são feitos pelos grupos de samba de roda, que se adaptam a formações menores para, por exemplo, atender ao convite de tocar no caruru de uma residência de tamanho diminuto, onde não caberiam todos os sambadores do grupo.

O que seria, portanto, um grupo de samba de roda? Mesmo hoje há consideráveis variações, mas é possível tentar uma definição geral do que é um grupo de samba de roda. Trata-se de um grupo artístico com nome, figurino, presidente, formação estável de sambadores e repertório pré-definido. Os grupos de samba de

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roda possuem entre quinze e trinta sambadores, sendo que a adaptação para formações menores é possível, a depender do contexto. A preferência, contudo, é pela possibilidade de levar o número máximo de integrantes, sobretudo para tocadas mais longas nas quais o revezamento entre tocadores se faz necessário. Há sempre nos grupos um núcleo duro formado pelos parentes, vizinhos ou amigos mais próximos do

presidente, ao redor do qual orbitam alguns sambadores profissionais que são fixos

do grupo ou contratados de acordo com a necessidade de cada tocada.

Os grupos de samba de roda são prestadores de serviços que firmam contratos – verbais ou formais – para a realização de tocadas através do pagamento de cachês, escambo por equipamentos e serviços ou como forma de engajamento político. É comum, no entanto, que os grupos de samba de roda se apresentem gratuitamente pela amizade que o seu presidente tenha com alguém ou por devoção em eventos religiosos. Em qualquer caso, trata-se de uma obrigação profissional e os sambadores do grupo assim o encaram, sendo que a maioria deles se queixa quando faz tocadas sem cachês. Mesmo assim, os cachês não costumam ser altos: a atuação nos grupos de samba de roda funciona como um complemento de renda para os sambadores, que possuem outros empregos ou fontes de renda56.

Os grupos de samba de roda se apresentam sempre com sonorização de vozes e instrumentos. Quando não há uma empresa ou técnico de som contratado para fazer a sonorização, os grupos de samba de roda levam os seus próprios equipamentos de som, que não costumam ser potentes e de boa qualidade, mas que servem na ausência de outros melhores. Há grupos formados só por homens, mas que podem contratar mulheres para se apresentarem como baianas em ocasiões especiais. Outros possuem mulheres em sua formação fixa. Há variações entre a instrumentação dos grupos, porém uma formação básica seria a seguinte:

- Vozes: um puxador ou uma parelha na voz principal, sendo respondido pelo coro dos demais sambadores;

- Cordas: viola, violão e cavaquinho; e

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Dada a precariedade do mercado de trabalho de Cachoeira, no entanto, o complemento de renda gerado pelo samba não deixa de ser relevante para as famílias. Os sambadores tiram em média de R$ 40,00 a R$ 100,00 por tocada. Considerando que não é incomum encontrar sambadores que fazem cinco ou mais tocadas por mês, o valor mensal desse complemento de renda é substancial para algumas famílias.

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- Percussão: 105, maraca, palmas, pandeiros, reco-reco, tamborim,

taubinhas, timba, timbal e triângulo.