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1. Trajetórias pessoais no samba de Cachoeira

1.2. As herdeiras do samba a linhagem feminina de dona Dalva

1.2.1. Dona Dalva – a doutora

Dona Dalva (Dalva Damiana de Freitas), Dalva Xodó, Dalva do Samba, Dalva da Suerdieck ou ainda Doutora do Samba são os muitos nomes pelos quais atende essa mulher nascida na cidade de Cachoeira em 1927 no dia de Cosme e Damião (27/09), na mesma casa em que ainda mora, no bairro dos Currais Velhos, região

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O Samba de Roda Mirim Flor do Dia, criado em 1980, é formado apenas por crianças e adolescentes. Muitos sambadores do grupo adulto passaram pela formação no samba mirim ao longo de seus quarenta anos de atividade.

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central de Cachoeira15. Na condição de neta mais nova, dona Dalva tinha na infância a obrigação de acompanhar a avó materna, dona Teté, que foi, assim como ela, Irmã da Boa Morte. Dona Teté era lavadeira no riacho do Caquende, onde a neta a acompanhava como ajudante. Ali dona Dalva aprendeu com a avó suas primeiras cantigas. Seu pai também lhe foi uma influência musical, já que tocava na banda filarmônica Minerva Cachoeirana.

Com quatorze anos dona Dalva parou de estudar e começou a trabalhar na fábrica de charutos Dannemann. Lá aprendeu o ofício de charuteira, que desde então e até hoje é realizado na região exclusivamente por mulheres. Aos dezoito anos, passou a trabalhar em outra fábrica de charutos, a Suerdieck, na qual permaneceu, por décadas até a sua aposentadoria. Foi no ambiente fabril da Suerdieck - no qual o samba fazia parte do cotidiano das charuteiras enquanto um canto de trabalho - que dona Dalva organizou o primeiro grupo de samba de roda da cidade, o Samba de Roda da Suerdieck.

Dona Dalva começou a desenvolver ferramentas de organização e financiamento do grupo: o primeiro apoio formal veio da própria fábrica Suerdieck, que forneceu por muitos anos o espaço para os ensaios, recursos financeiros modestos para a compra de figurinos e instrumentos, bem como local para seu armazenamento. O apoio, contudo, não era suficiente para a manutenção do grupo. Pouco a pouco, ela encontrou novas possibilidades: mantinha um livro de ouro, que era um registro de doações em dinheiro feitas por amigos, lojistas e outros apoiadores. Dona Dalva também mantinha uma lista atualizada de membros do grupo, com data de entrada e saída de cada um, além de uma lista de pagamento através da qual controlava as finanças e os pagamentos do grupo.

Foi no ambiente laboral que dona Dalva, além de cantar os sambas com as suas colegas de ofício, começou a compor os seus próprios sambas, ou, como ela mesma diz, as suas mudinhas. O primeiro deles acabou por se tornar um samba obrigatório no repertório do grupo até hoje: Jiló. O samba foi paulatinamente saindo do ambiente fabril para as festas de largo em homenagem a santos católicos até chegar, em 1972, ao palco da festa do São João Feira do Porto. Enquanto isso, dona

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Durante quase todo o meu período de campo, morei exatamente do outro lado da rua de dona Dalva e, mais que parte dessa pesquisa, dona Dalva e sua família fizeram parte do meu cotidiano cachoeirano como vizinhas muito presentes e queridas.

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Dalva foi reunindo os melhores sambadores da cidade ao seu redor, sendo que nos anos 1970 e 1980, seu grupo congregou muitos daqueles até hoje lembrados como os grandes sambadores do tempo antigo: Alcebíades (viola e voz), Ferrolho (cavaquinho), Jaca Verde (viola), Fureca (viola e voz), Carlito (pandeiro e voz), Pedro Galinha Morta (timbal) e Gilson (pandeiro).

Nos anos 1990 se combinam fatores como a morte de velhos companheiros de samba, dificuldades financeiras pessoais e a falta de apoio do poder público. Com isso, o grupo da Suerdieck não se desfaz, mas entra num período de latência. É justamente nesta época que a pesquisadora Francisca Helena Marques chega na cidade e inicia sua pesquisa com a família de dona Dalva. Além da pesquisa, Francisca passa a escrever e logra aprovar projetos culturais com o grupo, dando novo impulso e abrindo um novo leque de possibilidades para dona Dalva. A relação de amizade de Francisca com a família perdura até hoje, mas a capacidade técnica de elaboração e execução de projetos se estendeu a outros membros da família.

Pouco tempo após a chegada de Francisca, entra em curso o processo de patrimonialização do samba de roda do Recôncavo Baiano. Dona Dalva se torna uma de suas protagonistas por uma série de motivos: seu amplo reconhecimento como referência do samba na região, a longevidade e organização do seu grupo e a proximidade com Francisca, que integrou a equipe técnica do IPHAN responsável pelo processo. Não por acaso, dona Dalva firmou uma das três assinaturas do pedido de registro do samba de roda, representando a Associação Cultural de Samba de Roda Dalva Damiana de Freitas, ao lado de Francisca Marques, representante da Associação de Pesquisa em Cultura Popular e Música Tradicional do Recôncavo Baiano.

Em 2006 se inicia um novo capítulo do reconhecimento público da importância de dona Dalva não apenas para o samba, como para a cultura negra da Bahia. Em processo capitaneado pelo professor e pesquisador franco-brasileiro Xavier Vatin, a recém-inaugurada Universidade Federal do Recôncavo da Bahia outorga para dona Dalva o título de doutora honoris causa. Com isso, cresce o interesse de pesquisadores, jornalistas e produtores pela figura e história de dona Dalva. Contam-

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se às dezenas os trabalhos acadêmicos16, reportagens de jornal, programas de televisão e documentários de vários estados e países que têm dona Dalva como personagem, a tal ponto que sua agenda passou a ser controlada cuidadosamente por sua neta Any, que evita o assédio em demasia, dada a idade avançada da avó e a necessidade de descanso e preservação de sua imagem.

Quem quiser encontrar dona Dalva, contudo, pode passar pela sua rua ao longo da tarde, pois lá estará ela em pé na soleira da porta conversando com os vizinhos e dando benção aos seus muitos sobrinhos, netos e afilhados. Desde que teve um AVC durante uma tocada em Salvador há mais de dez anos, dona Dalva parou de viajar e de acompanhar o grupo em outras cidades. A idade também não permite mais que dona Dalva cante ao longo de toda a tocada, mas sempre que o seu grupo se apresenta em Cachoeira, ela se faz presente no palco vestida de baiana e canta alguns sambas.