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2. Os grupos de samba de roda de Cachoeira

2.6. Políticas culturais e grupos de samba de roda

Ao longo desse capítulo vimos que a institucionalização dos grupos de samba de roda é um processo de longo prazo em Cachoeira, respondendo a dinâmicas e relações locais. No entanto, é patente que essa institucionalização esteve intimamente ligada ao poder público e às políticas voltadas ao fomento do turismo e, posteriormente, ao fomento da cultura. Na medida em que essas políticas vão aumentando em número e em escala, as oportunidades para os grupos de samba de

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Ou seja, se a entidade sagrada do caboclo incorpora em uma pessoa. Nesse caso, baixar, possuir,

incorporar e estar de são maneiras distintas de referir a um mesmo fenômeno, que é o da incorporação

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roda aumentam, levando a criação de novos grupos e a profissionalização de

sambadores. Isso não acontece no vácuo: quando olhamos de perto as trajetórias

pessoais dos sambadores e a história de seus grupos, podemos enxergar famílias que fazem samba há muitas gerações, longevos terreiros de Candomblé e comunidades que há muito tempo sambam nos seus eventos vicinais. O grupo de samba de roda é apenas a “ponta do iceberg”. Essa metáfora nada tropical não é gratuita: a ponta é a menor parte do iceberg, porém justamente a que fica visível na superfície. Muitas vezes, o grupo de samba de roda é a única face do samba que as políticas públicas e as instituições conseguem enxergar.

Um exemplo disso é que, no São João Feira do Porto de 2016, a Prefeitura Municipal da Cachoeira entregou aos grupos de samba de roda que se apresentaram no palco principal o título de Patrimônio Cultural de Cachoeira. Não foi o samba, alguma de suas modalidades ou sambadores excepcionais que receberam o título de patrimônio: foram os grupos. Com aquele gesto de reconhecimento, a prefeitura – a esfera do poder público mais próxima da vida cotidiana dos sambadores - dialogava com a forma institucional do samba. No caso do IPHAN, apesar da forma de expressão samba de roda ter sido registrada, foram também privilegiadas as formas institucionais do samba. Uma das primeiras ações para a salvaguarda do samba de roda foi, justamente, a criação da ASSEBA, constituindo uma pessoa jurídica que, teoricamente, representava o conjunto dos sambadores e dos grupos de samba de roda do estado da Bahia. Subsequente à criação da ASSEBA em 2007, diversas associações de sambadores foram criadas em diversas cidades do Recôncavo Baiano.

No caso de Cachoeira e São Félix, algumas associações - como a Associação Cultural do Samba de Roda Dalva Damiana de Freitas e a Associação Cultural Filhos de Nagô - já existiam antes da patrimonialização. Outras foram criadas depois, como a Associação Cultural Samba de Roda Filhos da Barragem e a Associação Samba de Roda Esmola Cantada da Ladeira da Cadeia. Algumas associações existem apenas no papel, outras são pessoas jurídicas ativas que celebram contratos em nome dos grupos de samba de roda. Por sua vez, a ampliação significativa de políticas culturais ao alcance dos sambadores a partir da patrimonialização do samba de roda se tornou acessível majoritariamente a partir dos grupos de samba de roda e, em alguns casos, exclusivamente a partir das pessoas jurídicas que representam os grupos.

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Refiro-me aqui não apenas às ações para a salvaguarda do samba de roda do Recôncavo Baiano (IPHAN, 2010), mas ao universo mais amplo de políticas culturais nas várias esferas da administração pública. Nesse sentido, houve tanto uma ampliação no escopo das políticas culturais a partir do Governo Lula (Rubim, 2010; Muniagurria, 2016), como maiores possibilidades de aprovação em editais públicos aos projetos culturais voltados para o samba de roda após a chancela do IPHAN e da UNESCO. A maioria desses projetos - fossem proposto por sambadores ou produtores culturais de fora da região - tiveram os grupos de samba de roda como sujeitos principais. Normalmente, os sambadores faziam parte de tais projetos como elementos dos seus grupos. Dessa maneira, as políticas culturais contribuíram para um aprofundamento da institucionalização e do protagonismo dos grupos de samba de roda, já que agora os grupos não eram apenas o coletivo responsável por mediar a relação dos sambadores com um mercado local de tocadas, mas também por mediar a relação deles com um novo e amplo conjunto de instituições e eventos multissituados.

No universo do Recôncavo Baiano, Cachoeira se mostrou um locus privilegiado para o desenvolvimento desse novo contexto. Trata-se de uma cidade turística com o acúmulo de décadas na organização de eventos de grande porte e na oferta de serviços para turistas; ao mesmo tempo, a UFRB e figuras como Francisca Helena Marques contribuíram para a capacitação de lideranças locais que se tornariam empreendedores e produtores culturais. Ainda que nos grupos de samba de roda a falta de capacidade técnica para a elaboração e execução de projetos culturais ainda seja a regra, é inegável que alguns sambadores lograram se capacitar e têm obtido considerável sucesso no acesso às políticas culturais. Um exemplo disso é a trajetória de Any Manuela, que se tornou uma gestora muito competente, tendo aprovado e executado vários projetos culturais através de diversas fontes de financiamento.

O fruto mais estável do trabalho de Any e de outros membros de sua família é a gestão da Casa do Samba de Dona Dalva. A casa está instalada em uma antiga residência térrea da rua Ana Neri construída, provavelmente, no começo do século XX. Como boa parte das construções do mesmo período, ela foi erguida sobre um terreno estreito, de quatro metros de frente, porém com cerca de vinte metros de profundidade. As janelas e portas estão apenas na fachada e nos fundos da casa e os cômodos – transformados em espaço expositivo, almoxarifado e escritório - ficam à esquerda de um corredor estreito que leva ao quintal dos fundos da casa, onde foi

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montado um pequeno palco. A Casa do Samba possui instrumentos musicais, caixas de som, pedestais, cabos e microfones, convertendo o quintal dos fundos em um espaço para a realização de eventos culturais.

Ao centro da construção, há uma sala de estar onde fica exposta parte do acervo da instituição. Em uma das paredes, chama a atenção a enorme ampliação de uma foto do Samba de Roda da Suerdieck nos anos 1970, em que dona Dalva aparece frente aos microfones e ladeada de grandes sambadores do tempo antigo: Alcebíades, Ferrolho, Jaca Verde, Avelino e seu Carlito, dos quais só os últimos dois estão vivos. Na parede oposta, ergue-se o altar da casa, no qual ficam expostas as imagens dos santos de devoção: São Roque, Santa Bárbara, Santo Antônio e São Cosme e São Damião. Administrada pela Associação Cultural do Samba de Roda Dalva Damiana de Freitas, da qual Any é presidente, a Casa foi aberta em 2009 e abriga as atividades do Samba de Roda de Dona Dalva, como o Samba de Roda Mirim Flor do Dia, o atendimento a grupos de turistas e as atividades cotidianas do grupo e da família, como ensaios, carurus e rezas.

Tanto os recursos para a manutenção da casa, como as muitas outras atividades promovidas nos últimos anos pelo Samba de Roda de Dona Dalva, tornaram-se possíveis através dos projetos culturais. Muitos sambadores sabem que “precisam” dos projetos para tornar realidade desejos como a gravação de um CD, por exemplo, mas não sabem como e nem o que fazer. Sobre isso, Any Manuela (Entrevista em 18/10/2018) afirma:

Uma coisa que eu acho interessante, é que eu cresci escutando a palavra projeto. Eu cresci, então, assim, desde criança que eu escuto falar de projeto, porque os sambadores antigos já queriam se organizar, tem essa demanda por muitos anos. E aí, eles sempre falavam “como é que faz um projeto?”, “quem faz um projeto?”, “a gente precisa de apoio pra desenvolver isso! Apoio pra conseguir instrumento! Apoio pra conseguir tecido pra confeccionar as roupas!’’, sempre queria apoio pra esses fins, mas nunca conseguiam. E aí eles sempre falavam “quem é que faz um projeto? Como é que faz?’’, sempre buscando alguém que fizesse projeto. Queria organizar o grupo, né? Só que não sabiam como é que organizava o grupo. Acho que eles nem sabiam que existia CNPJ, não sabiam nada disso, só queria organizar! Mas tinham uma organização que eu acho bem bacana, assim, quando eu pego o material antigo, aí eu vejo as anotações que minha vó anotava: ‘’fulano, cicrano, beltrano… entrou no dia X’’. Ela anotava! Aí tinha o nome dos músicos, né? Aí quem tinha dado documento pra alguma apresentação, ela botava “ok’’.

A fala de Any evidencia que a institucionalização dos grupos de samba de roda e a capacidade de realizar projetos complexos e importantes no presente são

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processos gestados a longo prazo e distribuídos entre várias gerações. Ao longo de minha carreira de produtor cultural, eu vislumbrei esse processo não apenas no samba, mas em diversas expressões das culturas populares no Brasil. Normalmente, aqueles grupos que logram acessar o mundo dos projetos e políticas culturais contam em sua história com gerações mais velhas que organizaram seus coletivos com as ferramentas que havia à mão no tempo antigo. Os filhos e netos dos fundadores, já criados nesse contexto de grupos institucionalizados, foram os responsáveis por ampliar o trabalho das gerações passadas usando as novas ferramentas do tempo presente, como o acesso à universidade, os editais públicos e as instituições culturais.

Nesse trânsito geracional, os grupos e, sobretudo aqueles mais institucionalizados, tornam-se formas de organização social privilegiadas. Do mesmo modo, são aqueles personagens que conseguiram se profissionalizar que, geralmente, logram maior sucesso em seus projetos. As políticas culturais, por sua vez, encontram muitas barreiras institucionais e legais para dialogar e trabalhar com coletivos flexíveis e pouco institucionalizados. Mesmo no caso em que os projetos e propostas podem ser feitos através de uma pessoa física, os grupos continuam a ser o pano de fundo dos editais públicos. Em minhas experiências de pesquisa e trabalho, percebi que mesmo para os grupos institucionalizados e estáveis, acessar as políticas públicas é um desafio. Para aqueles de existência intermitente e flexível, então, é quase impossível.

O samba não depende das políticas culturais e do apoio do poder público para ter continuidade. Pelo contrário: fosse assim, ele nem existiria, já que era perseguido até a década de 1930. Sem embargo, o atual cenário de desaparecimento dos contextos tradicionais em que muitas práticas musicais do samba se davam, aliado a uma crescente institucionalização dos grupos e profissionalização dos sambadores, faz com que as políticas culturais tenham cada vez mais influência sobre os caminhos futuros do samba. Isso terá efeito sobre a configuração dos eventos em que a prática musical do samba acontece, bem como sobre as suas formas de cantar, tocar e dançar. Nos próximos dois capítulos, portanto, irei me debruçar sobre essas questões com relação aos eventos musicais cachoeiranos e à prática musical dos sambadores.

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