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1. Trajetórias pessoais no samba de Cachoeira

1.5. Presidentes do samba

Essa seção apresenta três trajetórias que se enquadram na categoria local de

presidente de samba. O presidente é o responsável pela negociação de tocadas,

pagamento de cachês, compra e manutenção de bens e por falar em nome do grupo de samba em qualquer situação. A categoria de diretor, presidente ou dono do grupo de samba já havia sido identificada em Cachoeira por Rosa Maria Zamith (1995) em pesquisa de campo de 1992. A primeira trajetória dessa seção é a de Bau do Samba,

presidente do Samba de Roda Filhos da Barragem. Além de fundador do samba e

mantenedor financeiro do grupo nos momentos em que as tocadas não foram capazes de sustentar a atividade, a autoridade de Bau se funda na sua condição tanto de patriarca da família como de figura de respeito na sua comunidade, sendo que boa parte do grupo é formada por parentes, afilhados e vizinhos. Bau, além de sambador, é treinador de futebol e sargento aposentado da Polícia Militar do Estado da Bahia.

A segunda trajetória é a de Zel do Samba, presidente do Samba de Roda Filhos do Caquende, de que faz parte desde a fundação. Apesar de ser bem mais jovem que os fundadores do grupo e ter um irmão mais velho dentre eles, foi pela

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responsabilidade com a organização do Filhos da Barragem ao longo dos anos que Zel ganhou a legitimidade para atuar como presidente do grupo no final dos anos 1980, quando ainda era um jovem de pouco mais de vinte anos.

Por fim, a terceira trajetória é de César do Samba, atual presidente do Samba de Roda Filhos de Nagô, de São Félix. Era César quem organizava a brincadeira entre amigos que acabou por resultar na fundação do grupo. Com a formalização do grupo em 1968, contudo, a presidência recaiu sobre seu Mário, considerado, então, o mais adequado para a função. Ao longo das décadas, César foi o braço direito de Mário na organização do grupo e, com a sua morte em 2014, herdou o cargo de presidente. A autoridade de César, portanto, provém tanto de sua proeminência como fundador do grupo, bem como por sua longeva atuação ao lado de Mário. Na ausência dele, tornou-se o herdeiro natural do cargo.

1.5.1. Bau do Samba – o sargento

Bau do Samba (Osvaldo Santos da Silva) nasceu em Cachoeira, em 1957, e foi criado na Barragem da Boa Vista, responsável pelo abastecimento de água das cidades de Cachoeira e São Félix e onde seu pai – Zé Pereira – trabalhava como vigia. Bau trabalhou na construção civil e foi operário de fábrica, primeiro em Cachoeira e depois em Salvador, até que, aos 23 anos, passou no concurso da Polícia Militar do Estado da Bahia, instituição na qual se aposentou com a patente de sargento.

Em 1983, Bau fundou o Samba de Roda Filhos da Barragem, nomeado em homenagem à barragem nas margens da qual se criou. Desde a sua fundação até hoje, Bau é o presidente do Samba de Roda Filhos da Barragem. Como veremos adiante, Bau tentou, sem sucesso, transferir a presidência do samba primeiro para um dono de restaurante e depois para seu filho mais velho, Tampinha (Josivaldo). Com o pai e seu compadre Adalberto, Bau começou a tocar samba por volta de 13 anos. Seu pai tinha um grupo informal composto de parentes e amigos que animava carurus e outras festas na zona rural de Cachoeira, tocando sambas e forrós. Bau começou no pandeiro e depois comprou um timbal com Roque – um músico de reggae -, passando o pandeiro para o afilhado de seu pai e seu irmão de criação, Caboré, que até hoje o acompanha no Samba de Roda Filhos da Barragem, agora junto ao seu filho, Adriano. O grupo informal de tocadores arregimentado pelo seu pai não recebia cachê pelas tocadas que fazia, que eram, segundo Bau, 0800, ou seja, gratuitas. Aos

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tocadores que acompanhavam seu pai, iam se somando aqueles que estavam presentes na festa, que se revezavam nos instrumentos, muitas vezes até o raiar do dia. Seu Zé Pereira também dava muitos carurus na sua casa, no aniversário dos filhos e nos dias de São Cosme e Damião, Santo Antônio e São Roque. Por volta dos anos 1980, o pagamento de cachê pelas tocadas se tornou comum e a aumentar paulatinamente de valor, o que coincidiu com o período em que seu pai, dada a idade avançada, decidiu abandonar as tocadas. Foi nesse período que Bau resolveu convidar parentes e amigos para fundar o Samba de Roda Filhos da Barragem, inspirado em outros grupos que já haviam se formado na região e pensando em dar conta do crescente número de convites que vinha recebendo para tocadas.

Com relação a essa questão, Bau disse: “Eu vi que dava para formar um grupo de samba” (Entrevista em 27/01/2017). Assim, antes não dava para formar um grupo de samba, mesmo que há décadas o grupo informal de seu pai tocasse nos carurus e festas. Para que fosse possível formar um grupo de samba, era preciso que este fosse uma atividade que gerasse renda e permitisse, mesmo que parcialmente, a remuneração dos sambadores e a compra de figurinos, instrumentos e equipamento de som. Do mesmo modo, a formação de um grupo de samba de roda demandava que o grupo de tocadores se expandisse para além da rede de parentes e vizinhos e abarcasse

sambadores profissionais de outros bairros, como foi o caso de seu Pedro Galinha

Morta, do finado Rochedo (cavaquinho) e de Ivan da Maraca, que passam a integrar o grupo logo nos primeiros anos de sua atuação.

Tudo isso se torna possível em um contexto no qual as tocadas são remuneradas com cachês. O núcleo do grupo - e que posteriormente viria a ser o coletivo fundador da Associação Cultural Filhos da Barragem, que representa o grupo - seguia a ser a rede limitada de parentes e vizinhos do bairro da Lagoa Encantada. Já os tocadores profissionais, mesmo que passem anos atuando em um grupo, não chegam a formar esse núcleo sólido, tendo uma relação menos visceral com os grupos em que tocam.

No final dos anos 1980 Bau tentou transferir a presidência do grupo para Osmário, que era dono do restaurante Recanto de Oxum, muito frequentado por turistas no Centro Histórico de Cachoeira. Lá eles passaram a tocar todo final de semana mediante o pagamento de cachê. Como Osmário ficou devendo alguns cachês para o grupo, Bau tirou-o da presidência. Antes de sair, no entanto, Osmário negociou

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com a prefeitura a tocada do grupo no São João Feira do Porto de 1984, que foi a primeira apresentação de grande porte do grupo.

Bau também é compositor de sambas e vários deles formam parte do repertório do grupo, assim como alguns sambas de sua sogra, dona Dejanira. Além do samba, sua outra paixão é o futebol: até hoje ele pratica o esporte todos os finais de semana, jogando no mesmo ritmo que os garotos de vinte e poucos anos e apresentando uma compleição física impressionante para a sua idade. Bau também deu, voluntariamente e por muitos anos, treinos de futebol para os jovens do seu bairro. Seja pelo samba ou pelo esporte, Bau é uma referência para a juventude da Lagoa Encantada e é entre esses jovens que recruta os novos integrantes do Filhos da Barragem, que tem como uma de suas marcas a presença majoritária de jovens entre os componentes. A predominância dos jovens influencia no modo de tocar samba do grupo, como veremos mais à frente.

1.5.2. Zel do Samba – o marujo

Zel do Samba (José Pereira da Conceição) nasceu em Cachoeira, em 1967. Atualmente é o presidente do Samba de Roda Filhos do Caquende. Zel é filho de Jerônimo, já falecido, que foi pai-de-santo do terreiro Lobanekum, um dos mais antigos da cidade, fazendo parte do conjunto de terreiros baianos tombados pelo IPAC (IPAC, 2015). Atualmente o terreiro está sob a liderança de Mãe Lúcia e Zel segue a

dar obrigação como filho-de-santo da casa. O Lobanekum fica na Terra Vermelha,

uma longa ladeira na zona rural de Cachoeira que liga a zona urbana com os quilombos da região do Iguape. A infância de Zel se deu entre o bairro do Caquende e o terreiro, servindo como garoto de recados para o pai.

Zel aprendeu a tocar e cantar samba nos carurus e rezas da vizinhança e nos

toques de caboclo do Lobanekum. Em sua infância ainda alcançou os festejos de Reis

e a esmola cantada de sua tia, duas manifestações que já não acontecem mais no bairro. Quando o Samba de Roda Filhos do Caquende foi fundado, em 1983, Zel ainda era adolescente e passou a fazer parte do grupo desde o começo, primeiro tocando pandeiro e timbal, passando depois para a viola. Aos poucos Zel assumiu a responsabilidade pela organização do grupo e, com a saída ou morte dos sambadores mais velhos, recebeu a função de presidente ainda no final dos anos 1980. Vale ressaltar, contudo, que entre os fundadores do grupo estava seu irmão mais velho, Chuíte, mas a responsabilidade do grupo recaiu sobre ele.

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Foi Zel quem organizou a construção da sede do grupo em um terreno doado pela prefeitura na gestão de Dinho Farofa (Raimundo Leite - 2001-2004), sendo que a obra foi feita em regime de mutirão com materiais doados pela gestão municipal subsequente (Tato Pereira – 2005-2008). Enquanto presidente, Zel é o responsável por negociar, fechar e organizar as tocadas para as quais o Filhos do Caquende é contratado, assim como recebe o pagamento dos cachês. Zel também decide qual será a divisão dos cachês entre os sambadores, fazendo a distribuição dos recursos e administrando a parte que fica para a caixinha do grupo - que financia parcialmente as reformas na sede, a organização de festas e a compra de instrumentos e equipamentos de som. Em meados dos anos 2000 Zel saiu da presidência do grupo por alguns anos, que foi assumida por Wagner Cruz, retornando Zel ao cargo com a saída de Wagner, que deixou o Filhos do Caquende para criar um grupo de partido alto, o Morenos do Samba.

Durante a adolescência Zel chegou a ser aluno da banda filarmônica Minerva Cachoeirana, mas abandonou os estudos antes de aprender a ler partituras e escolher um instrumento. Dois de seus filhos seguiram os passos do pai e também entraram para a Minerva: Jhan e Camilo. Como o pai, Camilo logo abandonou as aulas da filarmônica, mas Jhan seguiu e hoje é saxofonista da banda principal. Tanto Jhan como Camilo fazem parte do Filhos do Caquende, tocando instrumentos de percussão, bem como de corda.

1.5.3. César do Samba – o sucessor

César do Samba (Evandro César Pereira Lessa) faz parte do Samba de Roda Filhos de Nagô (São Félix) desde a sua fundação, em 13 de maio de 1970. O grupo começou como uma brincadeira de amigos - uma zuada - na porta do Banco do Brasil de São Félix e ao redor do tabuleiro de uma baiana que vendia acarajé ali. Através da brincadeira o samba foi ganhando fama na cidade, passando a ser convidado para

carurus e festas particulares. Daí ele começou a ser chamado de Samba de César, em

alusão ao organizador da brincadeira, que anos depois viria a ser conhecido como César do Samba ou César de Nagô. Aos poucos o samba se organizou, os primeiros integrantes compraram novos instrumentos e, como decorrência desse processo, a reunião de amigos se formalizou em um grupo, o Filhos de Nagô. A partir daí, César cedeu a liderança do grupo para seu Mário, que atuou como presidente do grupo – e da associação que o representa como pessoa jurídica – até a sua morte, em 2014.

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Ainda que a brincadeira tenha se organizado ao redor de César, foi seu Mário o responsável pelo salto de organização que resultaria em um dos grupos mais antigos e longevos da região. César, contudo, sempre foi ativo na gestão do grupo e de suas atividades, sendo o herdeiro natural de Mário no cargo de presidente do grupo e da associação36. Além de atual presidente do grupo, César – dono de um timbre de voz grave e rouco - é também o puxador do Filhos de Nagô e o responsável por negociar as tocadas do grupo.

César e Mário participaram ativamente do processo de patrimonialização do samba de roda, sendo que o pedido de registro para o IPHAN é assinado por Mário na qualidade de presidente da Associação Cultural Filhos de Nagô37. Os dois

sambadores foram atuantes nos primeiros anos da ASSEBA e defenderam a vinda da

sede da associação para a antiga estação ferroviária de São Félix. Com a decisão polêmica do IPHAN de levar a sede para Santo Amaro da Purificação (Sandroni, 2010), César e Mário perderam o interesse pelas reuniões da ASSEBA e se afastaram do processo de patrimonialização como um todo. Hoje, César não sabe sequer quem está na diretoria da associação e fala de modo crítico da patrimonialização, afirmando que ela trouxe poucos resultados para os sambadores da região, ao passo que beneficiou excessivamente alguns poucos grupos.