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1. Trajetórias pessoais no samba de Cachoeira

1.1. Os personagens do samba de Cachoeira

O uso de trajetórias pessoais não é comum e muito menos sistemático nos estudos sobre samba na Bahia. Ainda que em muitos trabalhos algumas trajetórias pessoais apareçam esparsas ao longo dos textos, apenas dois trabalhos usam de modo deliberado essa ferramenta: o primeiro é o livro Cantador de Chula: o samba antigo

do Recôncavo, da pesquisadora Katharina Döring (2016), no qual as histórias de vida

de sambadores antigos13 aparecem como um anexo e abordam, sobretudo, os períodos da infância e da juventude; o segundo é o estudo de história oral Da fábrica ao samba

no pé: o samba de Dalva, dissertação de mestrado transformada em livro de Hamilton

Celestino da Paixão Filho (2018), que trata da vida de dona Dalva Damiana a partir de entrevistas feitas com ela, familiares e amigos.

No caso dessa tese, a diferença fundamental com os dois trabalhos apontados é que, além daquelas figuras reconhecidas como grandes personalidades, apresento também a trajetória de sambadores pouco conhecidos fora do próprio contexto do samba. Para entender tanto os grupos de samba de roda, como um regime menos institucionalizado e mais difuso do samba, é necessário apresentar e analisar trajetórias pessoais que estejam além das figuras de referência ou de liderança dos

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A lista de entrevistas consta como Anexo 2 essa tese.

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grupos. Outra diferença é a preocupação que tenho em, como já foi dito, partir das trajetórias pessoais para chegar em categorias operacionais no universo do samba de Cachoeira.

Seguindo Kofes (1994), as histórias de vida sintetizam não apenas a singularidade dos sujeitos, mas também a interação com o pesquisador – materializada no próprio ato da entrevista – e a relação do sujeito com um universo social mais amplo. Ao pesquisador, entre outras coisas, caberia intercruzar a história de vida com outras narrativas da mesma natureza: ainda que as histórias de vida tenham relevância enquanto trajetórias singulares e exemplares, o intercruzamento das narrativas abre novas possibilidades interpretativas (Kofes, 1994). Em um trabalho posterior, Kofes (2001) passa do conceito de histórias de vida para o de trajetória, que para a autora se configura como um itinerário no qual o sujeito apresenta deslocamentos e ocupa posições sucessivas em um dado espaço social. Essa noção de itinerário me interessa na medida em que as trajetórias aqui apresentadas têm valor não apenas pelas histórias singulares que representam, mas, sobretudo, por como se intercruzam em um contexto social no qual fazem e desfazem coletivos.

Por isso, faço a escolha de trabalhar com a noção de trajetórias pessoais em lugar de histórias de vida ou ainda biografias. As trajetórias pessoais - entendidas como itinerários intercruzados com outros itinerários - vão paulatinamente desenhando os coletivos formados pelos sambadores, permitindo entrever suas lógicas processuais de coesão, conflito e fissão. Por isso, antes de abordar os sujeitos coletivos – principalmente os grupos de samba de roda – é preciso compreender quem são as pessoas que os constituem e quais as suas trajetórias.

Esse trabalho compreende um período e um espaço de pesquisa razoavelmente amplos: vai do final dos anos 1950 até hoje e abarca toda a cidade de Cachoeira. Assim, para dar conta de um grupo representativo de trajetórias de vida, o escopo da pesquisa não me permite apresentar a fundo e relacionar entre si todas as histórias de vida envolvidas na criação, manutenção e crise dos grupos de samba de roda. Apresento brevemente um número relativamente grande de trajetórias pessoais – dezesseis -, para então relacioná-las entre si e à história dos grupos aos quais se conectam, entendendo que são trajetórias exemplares a partir das quais podemos entrever categorias operantes no samba.

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Ainda que eu não tome os grupos de samba de roda como dados e problematize a sua existência em um contexto no qual o samba encontra diversas outras formas de ser e outros coletivos de expressão, escolho esses grupos como âmbitos privilegiados de análise. Em um estudo inaugural sobre a institucionalização e profissionalização do samba no Rio de Janeiro, Goldwasser (1975) toma a Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira como âmbito de análise, partindo da instituição para chegar à comunidade do Morro de Mangueira e as relações de sua população com o samba. A partir daí, a autora rebate o argumento da invasão da classe média nas escolas de samba e da excessiva burocratização do samba partindo do cotidiano da Escola e de suas atividades lúdicas e administrativas.

Mesmo que não use de histórias de vida, Goldwasser (1975) mostra como a ação individual dentro da organização é relevante para a manutenção na escola de samba de formas organizativas mais antigas e flexíveis do mundo do samba no Morro de Mangueira. Por outro lado, a autora aponta que o crescente regime de profissionalização e burocratização faz nascer não apenas subdivisões dentro da organização global, mas também categorias – estatutárias ou não – a partir das quais os elementos da escola passam a se posicionar e a se relacionar entre si.

A intenção desse e do próximo capítulo, portanto, é partir das trajetórias pessoais para, através delas, delinear os grupos de samba de roda como organizações formadas por sambadores que, mesmo em um contexto de crescente institucionalização e profissionalização, seguem a responder a outras formas associativas oriundas dos eventos musicais, da religiosidade e das relações sociais da vida cachoeirana. A partir dessas trajetórias busco compreender lógicas processuais de coesão e conflito nos grupos de samba de roda para, no próximo capítulo, abordar de modo mais aprofundado a história dessa forma específica de organização social dos sambadores na cidade de Cachoeira.