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3. POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA E O SOFT POWER

4.3 Conferências Habitat: A Agenda da ONU para as cidades

4.3.5 Terceira Conferência das Nações Unidas sobre Moradia e Desenvolvimento

4.3.5.1 Documentos e Resultados da Conferência Habitat III

A Conferência Habitat III teve como resultados a assinatura e aceitação, por parte dos Estados-membros, da Nova Agenda Urbana e da Declaração de Quito Sobre Cidades Sustentáveis e Assentamentos Urbanos para Todos, além de legados e objetivos que poderão ter reflexo no futuro do meio ambiente urbano.

A Nova Agenda Urbana é o principal documento resultante da Conferência Habitat III, que se traduz em um extenso documento de 175 itens, na qual se insere a Declaração de Quito Sobre Cidades Sustentáveis e Assentamentos Urbanos para Todos, contando com 22 itens, e o Plano de Implementação de Quito para a Nova Agenda Urbana, com o restante dos itens (UN-HABITAT, 2016a).

Na Declaração de Quito Sobre Cidades Sustentáveis e Assentamentos Urbanos para Todos, os atores, incluindo Chefes de Estados e Governos, ministros, ministras, e altos representantes, com a participação de governos subnacionais e locais, parlamentares, organizações da sociedade civil, comunidades autóctones e locais, representantes do setor

privado, profissionais, comunidades científica e acadêmica, entre outros, se comprometem na adoção da Nova Agenda Urbana.

No documento são mencionados a tendência da intensificação da urbanização mundial e os desafios de se garantir a sustentabilidade em áreas como “habitação, infraestrutura, serviços básicos, segurança alimentar, educação, empregos decentes, segurança, e recursos naturais” (UN-HABITAT, 2016a, p. 3). Citam-se avanços desde a Habitat I, contudo ressalta-se que

a persistência de múltiplas formas de pobreza, de crescentes desigualdades e degradação ambiental subsistem entre os maiores obstáculos para o desenvolvimento sustentável em todo o mundo, sendo a exclusão socioeconómica e a segregação espacial realidades frequentemente manifestas em cidades e aglomerados urbanos (UN-HABITAT, 2016a, p. 3).

Ademais, a Declaração faz menção às oportunidades relacionadas à urbanização, e sobre a ajuda que a Nova Agenda Urbana trará para acabar com a fome e a pobreza, redução das desigualdades, crescimento sustentável, igualdade de gênero e empoderamento de mulheres e meninas, melhorias na saúde e bem-estar humanos, além da promoção da resiliência24 e preservação ambiental (UN-HABITAT, 2016a, p. 3).

Assume ainda compromissos com as conferências anteriores, especialmente as de 2015, sobre Desenvolvimento Sustentável, Mudanças Climáticas e Desenvolvimento Social. Reconhece as contribuições dos governos nacionais, subnacionais e locais na definição da Nova Agenda Urbana. Reafirma ainda o compromisso com o desenvolvimento urbano sustentável, com a necessidade da coordenação e integração nas escalas globais, regionais, nacionais, subnacionais e locais, para a concretização de tal objetivo. E, por fim, exalta a cultura e a diversidade cultural como contributos importantes para o desenvolvimento sustentável das cidades (UN-HABITAT, 2016a, p. 4).

O documento ainda traz uma série de compromissos para o desenvolvimento urbano sustentável e a afirmação dos ideais acima mencionados. Podemos destacar, entre os compromissos, os princípios de eliminar “a pobreza em todas as suas formas e dimensões”, “assegurar economias sustentáveis e inclusivas”, bem como a “sustentabilidade ambiental” (UN-HABITAT, 2016a). Além de trabalhar para modificar o paradigma urbano, encerrando-

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De acordo com o Documento Temático da Habitat III sobre Resiliência Urbana, o termo resiliência é tanto uma qualidade do desenvolvimento urbano sustentável quanto um estímulo ao próprio desenvolvimento. Sendo assim, foca não apenas na forma como os indivíduos, comunidades e negócios agem face aos diversos impactos e pressões, como também na forma que eles identificam oportunidades para um desenvolvimento transformacional.

se os 22 itens da Declaração de Quito Sobre Cidades Sustentáveis e Assentamentos Urbanos para Todos com os dizeres:

22. Adotamos esta Nova Agenda Urbana como uma visão coletiva e um compromisso político para promover e concretizar o desenvolvimento urbano sustentável, e como uma oportunidade histórica para alavancar o papel fulcral das cidades e dos aglomerados urbanos como catalisadores do desenvolvimento sustentável num mundo cada vez mais urbanizado (UN-HABITAT, 2016a, p. 9). A Nova Agenda Urbana, subdividida por Moreno (2016), resumidamente evoca 30 pontos-chaves de ação, que podem ser divididos em 5 campos: Política Urbana Nacional; Legislação Urbana – Regras e regulamentos; Planejamento e Projeto Urbano; Economia Urbana e Finanças Municipais; Extensões / Renovações Urbanas Planejadas.

Um dos pontos de maior destaque dos eventos preparatórios e da conferência foi a discussão sobre a incorporação ou não do direito à cidade na lista de metas internacionais urbanas a serem alcançadas pelos atores responsáveis. Durante a preparação da Habitat III, o direito à cidade foi abordado nos documentos técnicos preparatórios (policy unit 1). Entretanto, o termo não foi reconhecido na Nova Agenda Urbana. A definição de Direto à Cidade não é clara, sendo alterada de país para país. Renato Balbim aponta que

A expressão “direito à cidade”, atualmente, remete imediatamente tanto às formulações marxistas-lefebvrianas quanto aos diversos documentos produzidos nas últimas décadas por organizações e movimentos internacionais que lutam pela transformação do modelo de urbanização baseado na terra e na cidade primeiramente como uma commodity, logo, como um negócio (BALBIM, 2018, p. 22).

Exemplifica ainda outras diferentes definições e reconhecimentos do Direito à Cidade pelo mundo. De acordo com ele,

normalmente, a Europa defende o reconhecimento dos direitos humanos na cidade. Nos países africanos, o direito à cidade pode ser entendido como o direito de estabelecer relações na cidade – por exemplo, o comércio de produtos rurais. A América Latina, genericamente, coloca-se a favor do direito à cidade com um entendimento mínimo do que é afirmado na Carta Mundial pelo Direito à Cidade25; o reconhecimento legal, como ocorre no Brasil, não necessariamente garante a aplicação dos seus princípios. Os Estados Unidos, por sua vez, têm posição histórica relacionada ao seu sistema legal que não reconhece direitos coletivos como direitos universais no Sistema ONU (BALBIM, 2016a, p. 158).

O conceito de Direito à Cidade foi desenvolvido pelo sociólogo francês Henry Lefebvre no livro “Le droit à la ville”, de 1968. De acordo com ele, o direito à cidade é uma

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O documento basicamente defende o direito de todas as pessoas a uma cidade sem discriminação de gênero, idade, raça, etnia e orientação política. Mas também garante aos cidadãos a participação, de forma direta e representativa, na elaboração, definição e fiscalização da implementação das políticas públicas e do orçamento municipal.

utopia, a ser construída e conquistada por meio das lutas populares contra a lógica capitalista de produção da cidade, e refere-se ao “direito à vida urbana, transformada, renovada” (LEFEBVRE, 1968, p. 118), distanciando de um direito jurídico. Define ainda o direito à cidade como o direito “à vida urbana, à centralidade renovada, aos locais de encontro e de trocas, aos ritmos de vida e empregos do tempo que permitem o uso pleno e inteiro desses momentos e locais etc.” (LEFEBVRE, 1968, p. 139).

Como explicitado, o conceito direito à cidade não foi claramente absorvido pela Nova Agenda Urbana, apenas aparece uma vez no documento ao tratar de uma visão compartilhada da cidade. Balbim (2018, p. 23) ressalta que “o termo não é apresentado como integrante da visão compartilhada dos signatários, mas sim como o esforço de alguns governos em apresentar uma síntese da “visão compartilhada” entre os países”.

Sendo assim,

o direito à cidade não é reconhecido nos documentos vinculantes entre países – ou seja, na NAU (Nova Agenda Urbana), nesse caso. Isso se deve, entre outros motivos, ao fato de que seu reconhecimento acarretaria o rompimento com o modelo urbano funcionalista, excludente e segregador, inaugurado no século XIX e que vem se metamorfoseando ao longo do tempo (BALBIM, 2018, p. 23).

Outro termo, não embasado teoricamente, substitui o direito à cidade na Nova Agenda Urbana, colocado como “cidade para todos”. Na Nova Agenda Urbana, item 11, o termo é referente

à igualdade de utilização e fruição de cidades e aglomerados urbanos, procurando promover a inclusão e assegurar que todos os habitantes, das gerações presentes e futuras, sem discriminações de qualquer ordem, possam habitar e construir cidades e aglomerados urbanos justos, seguros, saudáveis, acessíveis, resilientes e sustentáveis e fomentar a prosperidade e a qualidade de vida para todos. Salientamos os esforços envidados por governos nacionais e locais no sentido de consagrar esta visão, referida como direito à cidade, nas suas legislações, declarações políticas e diplomas (UN-HABITAT, 2016a, p. 5).

É relevante destacar que as conferências sobre o desenvolvimento urbano “não têm a mesma relevância daquelas que tratam de temas como segurança, economia, meio ambiente ou direitos humanos” (BALBIM, 2016b, p. 286). Contudo, de acordo com Balbim (2016b),

os esforços recentes em convergir agendas sociais e ambientais no cenário pós-2015 dão novos significados para os possíveis resultados da Habitat III, que já se inicia tendo firmado o tema urbano em um dos 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, agenda que supera a dos Objetivos do Desenvolvimento do Milênio (ODMs), que se encerrou em 2015, e une as nações em todo o mundo em torno de ampliados esforços comuns até 2030 (BALBIM, 2016b, p. 286).

Ademais, no direito internacional, um documento como a Nova Agenda Urbana é considerado como Soft Law, ou seja, é fonte de Direito Internacional, mas não é dotado de cogência, ou seja, não induz à obrigatoriedade do cumprimento. Para Hildebrando Accioly, apesar da ausência de obrigação, uma soft law “exerce certa pressão política sobre os

estados; se estes se conformarem com a pressão, uma prática pode desenvolver-se e resultar depois de algum tempo na consciência de que existe obrigação jurídica, que pode

dar origem ao nascimento de costume” (ACCIOLY, 2009, p. 171 – grifos do autor).

Entre as críticas recebidas pelos resultados da Habitat III estão que, assim como os documentos anteriores, este foi um documento genérico, resultado da construção de consensos entre diferentes países com culturas, religiões, políticas e economias distintas. Com olhar positivo, Renato Balbim compara os documentos resultados das conferências de Istambul e Vancouver, a Nova Agenda Urbana demonstra maior chance de resultados positivos. Isso porque, “ao que indicam várias das tratativas pós-Habitat III, tanto os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) quanto a Agenda de ação para o clima parecem orientar com maior precisão os rumos a serem tomados pelos Estados-nação nos anos vindouros” (BALBIM, 2018, p. 14).

Outro ponto frágil dos documentos acordados é que, segundo o Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil (2016b),

a agenda não vincula os Estados-membros ou prefeituras a metas ou objetivos específicos, mas é uma “visão compartilhada” que estabelece normas para a transformação de áreas urbanas em regiões mais seguras, resistentes e mais sustentáveis, com base em um melhor planejamento e desenvolvimento (CAU/BR, 2016b).

Ou seja, os Estados e outros atores participantes não têm a obrigação de cumprir as metas estabelecidas, tornando a ação optativa, mas que podem ser implementadas a partir da pressão interna e externa da sociedade, em um mundo que globaliza também suas reivindicações políticas e sociais.

Com o apresentado, verificam-se pontos de movimentações positivas entre a Habitat III e as duas conferências Habitat anteriores. Pontua-se como relevante a incorporação do objetivo 11 (objetivo urbano) entre os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, elevando a um novo patamar os debates sobre as cidades em nível internacional e conferindo maior relevância às Conferências e Programa HABITAT. Entretanto, outros pontos parecem não ter avançado entre as conferências. Um exemplo é a ausência de obrigatoriedade do documento assinado pelos Estados-membros e a forma genérica tomada pela Nova Agenda Urbana, seguindo os passos de suas antecessoras, apesar do entendimento da dificuldade de

construção de consensos entre países das mais diversas realidades. Outro exemplo que merece ser destacado entre as críticas é a forma superficial que o direito à cidade, muito discutido nos preparativos para a conferência, é tratado na Nova Agenda Urbana, para não alterar o modelo urbano excludente, segregador e perpetuador de desigualdades.

Ressalta-se ainda que as conferências Habitat, assim como outras conferências de temáticas sociais e ambientais, são tidas como oportunidade para países periféricos apresentarem suas ideias e consolidar seu papel na construção de agendas internacionais e, consequentemente, fortalecer seu soft power, como é o caso do Brasil, que buscou consolidar seu papel como importante ator político e econômico e se lançar como um global player, por meio de estratégias estudadas no capítulo 3 (Política Externa Brasileira e o Soft Power).

5. O BRASIL E A HABITAT III: PREPARAÇÃO, PARTICIPAÇÃO E