• Nenhum resultado encontrado

3. POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA E O SOFT POWER

4.3 Conferências Habitat: A Agenda da ONU para as cidades

4.3.2 A segunda Conferência das Nações Unidas sobre Assentamentos Humanos

A população mundial vivendo em cidades cresceu desde os anos 1970 até os anos 1990, década da realização da Segunda Conferência das Nações Unidas sobre Assentamentos Humanos (Habitat II), saltando de1,6 para 2,3 bilhões de pessoas, aproximadamente 43,5% do total (ANTONUCCI et al., 2010, p. 45). De acordo com o Relatório Global do Centro das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos, destacado por José Augusto Lindgreen Alves (2001),

dentre os 2,5 bilhões de indivíduos que habitavam as cidades na metade da década de 1990, cerca de 500 milhões não tinham moradia, 400 milhões não contavam com esgotos, 250 milhões não dispunham de acesso à água tratada e 10 milhões morriam, a cada ano, em decorrência da poluição e da falta de saneamento e água limpa (LINDGREN ALVES, 2001, p. 247).

A inserção da temática urbana ganhou força em 1996 devido às consequências da intensificação da urbanização na saúde, moradia, empregabilidade e dignidade da população humana, especialmente nos países em desenvolvimento. Segundo Mauad (2011), o secretário da Habitat II, Wally N´Dow21, afirmou “Nenhuma guerra mata tanto!” (MAUAD, 2011, p. 65). Virgílio Arraes também destaca a importância dos cuidados com o meio urbano no que tange à saúde, uma vez que “80% das doenças, por exemplo, advinham da falta de saneamento básico e de água potável” (ARRAES, 2006, p. 22).

Nesse contexto, quase 15 mil pessoas se reuniram na cidade de Istambul, na Turquia, na primavera de 1996, para discutir os rumos da urbanização mundial (ROLNIK, 2006, n.p.), após dois anos de processo preparatório envolvendo delegações e representantes dos Estados-membros da ONU, principalmente formado por representantes dos países em desenvolvimento (ANTONUCCI et al., 2010, p. 46): 171 países foram representados (UN-

21 Wally N’Dow foi o secretário-geral de origem gambiana da Habitat II. Ele trabalhou na ONU África por mais de 25 anos e é co-presidente do State of the World Forum (Fórum que reúne parceiros no mundo em busca de soluções para desafios globais críticos).

HABITAT, 1996a, p. 123), e o Comitê Habitat II ressaltou a importância da participação de atores não-estatais na conferência e na construção de acordos para a melhoria do meio urbano. Na conferência, “os governos participantes reconheceram a deterioração mundial dos assentamentos e das condições de vida, que já havia alcançado proporções críticas em vários países do mundo em vias de desenvolvimento” (ONU Habitat, 2018, tradução do autor).

De acordo com Raquel Rolnik (2006), a Conferência Habitat II teve como objetivo principal

atualizar os temas e paradigmas que fundamentam a política urbana e habitacional, com vistas a reorientar a linha de ação dos órgãos e agências de cooperação internacional para estes temas, incluindo a do próprio Centro das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos – Habitat (ROLNIK, 2006, n.p.).

Segundo relatório da Comissão Especial do Senado Federal Brasileiro da Conferência Habitat II, de 1997,

a HABITAT II desenvolveu-se como um dos eventos internacionais mais importantes do final do século XX, apresentando características metodológicas originais, entre elas a realização simultânea de plenários e comitês, nos quais, além dos representantes oficiais dos países, atuaram os chamados "parceiros" (poder municipal, parlamentares, acadêmicos, as fundações, os profissionais e as ONGs) (SENADO, 1997, p. 2).

A participação de novos atores (que não o Estado) ocorreu de maneira mais intensa, quando comparado com outras conferências, sendo uma das questões chaves de Istambul, refletindo-se na agenda urbana. Segundo Rolnik (2006), há “a formulação de um novo papel para o Estado e, sobretudo de novas formas de relação deste com os demais atores que incidem diretamente na constituição das cidades”. Pela primeira vez as autoridades locais tiveram relevância e um comitê específico (Comitê II) (ANTONUCCI et al., 2010, p. 49).

Vinte anos depois da primeira conferência sobre a temática urbana, a segunda conferência se baseou na premissa do Estado mínimo, ideia seguida por boa parte dos Estados e, dessa forma, “os Estados-nação deveriam responder apenas a questões geopolíticas, de segurança nacional e outras essenciais, e em macro escala” (BALBIM, 2016b, p. 294).

De acordo com Renato Balbim (2016b), na Habitat II “o problema urbano é novamente colocado como uma questão e um processo em escala globais, porém com impactos locais, o que demandava, portanto, a participação de atores locais na construção de resultados práticos eficazes” (BALBIM, 2016b, p. 294). Entretanto, o autor aponta para questões estratégicas para a inserção de novos atores na conferência internacional, visando à diminuição do Estado e delegando atividades a governos locais, ONGs e atores privados.

O contexto internacional se apresenta mais complexo que o de 1976, com intensa mobilização da sociedade civil e da diplomacia, impulsionadas pelas conferências sociais da década de 1990 e o ganho de importância da ONU como espaço de resolução de problemas globais (BALBIM, 2016b, p. 294).

A concepção de desenvolvimento sustentável, consolidada pela Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (Eco-92 ou Rio-92), no ano de 1992, influenciou as conferências sociais posteriores, incluindo a Habitat II, com a temática de desenvolvimento sustentável dos assentamentos humanos.

Além do tradicional debate sobre o acelerado processo de urbanização, a Habitat II focou ainda em temas como de moradia adequada para todos e o desenvolvimento sustentável dos assentamentos humanos (BALBIM, 2016b, p. 294).

A Habitat II teve como resultados documentos importantes como a Agenda Habitat e a Declaração de Istambul sobre Assentamentos Humanos, com o objetivo de guiar a urbanização mundial para os próximos 20 anos, além do estabelecimento da Agência Habitat e o fortalecimento da pauta urbana no cenário internacional.

4.3.2.1 Documentos e Resultados da Conferência Habitat II

Como resultado das discussões, 171 países aprovaram um plano estratégico com mais de 100 compromissos e 600 recomendações, denominado de Agenda Habitat, o principal documento político da conferência, articulada com os documentos resultantes das conferências sociais anteriores daquela década (UN-HABITAT, 1996a). A Agenda pauta-se como uma plataforma de princípios que devem resultar em práticas de gestão urbana.

O destaque foi o direito à habitação, vinculado aos direitos sociais e humanos, onde todos sem discriminações deveriam ter acesso. Foi estabelecido ainda que os Estados devem “promover políticas e programas nacionais necessários à sua superação, tendo em vista os desequilíbrios sociais, econômicos e ambientais, e as graves consequências provenientes da má qualidade de vida a que está submetida a população em todo o mundo” (ANTONUCCI et al., 2010, p. 54).

O direito à moradia estabelecido na Conferência das Nações Unidas sobre Assentamentos Humanos em 1996 é fruto da reafirmação dos direitos humanos para todos os Estados e a inserção de novos direitos humanos, promovido pela Conferência Mundial sobre Direitos Humanos em Viena, em 1993. Entretanto, houve resistência da delegação dos Estados Unidos, junto a outras delegações, na aceitação do direito, “uma vez que essas

delegações temiam que seus países pudessem ser objeto de processos iniciados por pessoas sem moradia contra o Estado” (MAUAD, 2011, p. 75). Cenário que acarretou em atrasos na redação dos documentos finais da conferência, “mas foi posteriormente resolvida com a qualificação do direito à moradia como progressivo” (MAUAD, 2011, p. 75).

Em meio a seus princípios e objetivos, a Agenda Habitat estabelece o direito a moradias adequadas a toda a população, a provisão de assentamentos humanos sustentáveis, a erradicação da pobreza e o desenvolvimento sustentável, articulando o crescimento econômico, o desenvolvimento social e a proteção ambiental, “assegurando o desenvolvimento econômico, oportunidades de emprego e progresso social em harmonia com o meio ambiente” (ANTONUCCI et al., 2010, p. 57). Em seus princípios gerais, destaca cuidados na implantação de novos assentamentos, nos quais devem ser garantidos a proteção da saúde pública, a integração social e educacional, acessibilidade, preservação do patrimônio histórico, espiritual, religioso e cultural, assegurar a paisagem local e o meio ambiente, entre outros (ANTONUCCI et al, 2010, p. 57).

De acordo com Antonucci et al. (2010, p. 61), “os países signatários da Agenda Habitat comprometeram-se a viabilizá-la – em âmbito internacional, nacional estadual, metropolitano e local -, objetivando o alcance do progresso, da segurança e do bem-estar social”. E para atingir os objetivos, haveria a necessidade de habilitação e capacitação de agentes e atores.

A cooperação internacional também se destaca na agenda, uma vez que os compromissos acordados pelos chefes de Estado e agências internacionais são de grande relevância no que tange a doação e recebimento de assistência técnica e financeira.

Já a Declaração de Istambul sobre Assentamentos Humanos, outro documento resultante da Habitat II, traz metas universais, aceitas por chefes de Estado e governo, para “garantir moradia adequada a todos e tornar os assentamentos humanos mais seguros, saudáveis, habitáveis, equitativos, sustentáveis e produtivos” (UN-HABITAT, 1996). Além disso, ressalta temas como a igualdade de gênero, financiamento de habitação e assentamentos humanos, capacitação e desenvolvimento operacional, coordenação e cooperação internacional, assim como destaca a atenção especial a grupos específicos, como mulheres, idosos, crianças, deficientes e jovens (BALBIM, 2016b, p. 296).

Contrária à Conferência de Vancouver, que tinha a urbanização como problema, a Declaração de Istambul a vê como oportunidade e completa reconhecendo que “as cidades grandes e pequenas como centros de civilização, geradoras de desenvolvimento econômico,

social, espiritual e de avanços científicos” (UN-HABITAT, 1996). Contudo, reafirma a importância de proporcionar o desenvolvimento de áreas rurais, mitigando as migrações para as áreas urbanas.

Apesar da busca por abranger a questão urbana como problema global, a Declaração reconhece as especificidades ao afirmar que “os desafios dos assentamentos humanos são globais, mas os países e regiões também enfrentam problemas específicos que necessitam de soluções especificas” (UN-HABITAT, 1996).

Criticamente, Balbim (2018) aponta problemáticas lançadas pelos objetivos da Agenda Urbana de Istambul. Um deles é a produção industrial de habitação, associada à meta de “moradia para todos” da agenda, na qual bancos internacionais de desenvolvimento promoveram a massificação da construção de moradias, não atendendo aos anseios dos movimentos sociais e de ideias de produção social da cidade e da moradia. Nesse sentido,

a ideia emanada pelos bancos e pelas agências de fomento internacionais era não apenas de viabilizar habitação às famílias mais pobres nos países periféricos, mas também de constituir uma nova classe média, atrelada ao financiamento, com o compromisso dos países de constituir fundos para alimentar o sistema financeiro internacional (BALBIM, 2018, p. 15).

Outra crítica é a dualidade da descentralização preconizada pela Habitat II, que é relevante ao incorporar novos atores nas decisões sobre os espaços locais, atribuindo a eles também a função de alcançar as metas abordadas pela Agenda Urbana de Istambul, mas que incorpora o neoliberalismo com o “enxugamento do Estado”, ao redistribuir suas funções.

De forma conclusiva, a Habitat II promoveu a descentralização do Estado e promoveu a democratização das conferências internacionais ao incorporar novos atores decisivos na discussão. Além da importância de assegurar o direito à moradia, progressivamente, como um direito humano fundamental. Entretanto, atendeu aos interesses do capitalismo financeiro ao contribuir com o “enxugamento do Estado”, com a descentralização da agenda urbana, e viabilizou a construção de moradias em massa (sob o pretexto de atender ao objetivo de “moradia para todos”), desconsiderando as ideias de produção social de moradia e da cidade, além dos movimentos sociais que lutaram por esse direito.