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Uma doença respiratória

Muito citado, quando se questionam os “excessos de memória” do mundo contemporâneo, é “Funes, o memorioso”. Mas, aqui, gostaria de ressaltar outro aspecto trabalhado na escrita de Borges, quer dizer, o caráter de síntese que há na palavra. Na mente do memorioso, aloja-se uma imensa capacidade para a observação do detalhe. O pormenor torna- se tão percebido que a árvore de hoje não é a mesma de ontem. Nessa lógica, admite-se que, em cada situação, a árvore é única, pois apresenta- se aos olhos de maneira inédita. As aparências de várias árvores, exigem vários nomes. Há, portanto, uma incapacidade para a síntese.

Ora, a rigor, não há duas árvores completamente iguais, como 1=1 ou A=A, mas sim propriedades que deinem o “ser árvore”, em um procedimento que permite a comunicação entre os humanos. É por isso que o adjetivo é sempre restritivo diante do substantivo. Sem síntese, Funes morre de uma doença respiratória.264 O mundo tornara-se muito

grande, não era mais possível respirar. Sem abstrações conceituais (necessariamente genéricas) que residem em qualquer substantivo, o mundo icou sem substância compreensível. Isso não tem nada a ver

263 TAVARES, Gonçalo. O senhor Juarroz. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2007, p. 21.

264 BORGES, Jorge Luís. Funes, o memorioso. In: Obras completas. São Paulo: Globo, 1998, p. 546.

com falta de eiciência na comunicação, mas com a denúncia sobre as astúcias constitutivas da palavra, em sua ânsia permanente para nomear o inominável, generalizando o particular e particularizando o geral. Em certa medida, a icção de Gonçalo Tavares repõe esse mesmo problema, mas com um desfecho peculiar:

Para mostrar que não se submetia à ditadura das palavras o se- nhor Juarroz todos os dias dava um nome diferente aos objetos. Metade do seu dia de trabalho passava-o assim a atribuir nomes às coisas.

Por vezes, icava tão cansado com essa tarefa inaugural, que pas- sava a segunda parte do dia de trabalho a descansar.

Quando adormecia os novos nomes das coisas misturavam-se, nos sonhos com os antigos nomes, e por vezes o senhor Juarroz acordava tão embaralhado que deixava cair a primeira coisa que tentava segurar, e essa coisa, da qual por momentos não sabia o nome, partia-se.265

Aqui, o im não é a morte do Sr. Juarroz, como ocorre com o memorioso, e sim o im dos objetos, que se partem porque não su- portam tantos nomes. No inal das contas, ressalta-se o desejo dos es- critores contemporâneos no sentido de escrever sobre os mistérios das palavras, juntamente com a determinação de desvendar articulações de poder. Assim, critica-se o autoritarismo da linguagem a partir da quanti- dade de palavras. Os escritores percebem que, tanto o aumento quanto a diminuição de vocábulos pode expressar a vontade de poder do sujeito diante do objeto.

O caso do livro 1984, de George Orwell, é emblemático. O “Dicionário da Novilíngua”, constantemente atualizado sob as ordens do Grande Irmão, pretendia reduzir, gradativamente, o número de pala- vras em uso corrente. O intuito era claro: tornar o mundo completamente objetivo. Diminuir a complexidade do real com a diminuição da língua. Syme era um dos ilólogos que trabalhavam na “destruição das palavras”.

Foi ele quem explicou para Winston como a palavra “mau” seria abo- lida. Em seu lugar icaria o oposto de bom: “imbom”. Do mesmo modo, “muito bom” seria apenas “plusbom”, melhor seria “dupliplusbom”. Em operações semelhantes, a língua ia diminuindo e icando mais precisa: “todos os conceitos necessários serão expressos exatamente por uma pa- lavra, de sentido rigidamente deinido.” Cada “signiicado subsidiário” seria automaticamente esquecido. Nesse mundo onde se pretendia con- trole total, acreditava-se que o futuro dependia do novo dicionário: “A Revolução se completará quando a língua for perfeita”.266

Em 1984, o leitor ica sabendo que, em 2050, a “Novilíngua” será o único idioma conhecido. Teríamos, então, o oposto da literatura, em seu desejo sempre ardente de recriar o mundo na recriação do trânsito de palavras que faz os leitores percorrerem outros trajetos pelo mundo concreto, alargando as possibilidades do existente.

Francis Ponge costumava dizer que sua poesia vinha do mutismo dos objetos. É como se eles necessitassem da palavra, assim como ele mesmo necessitava desse mutismo ambulante, essa falta de fala que o seduzia. O mutismo das coisas provocava uma emoção que empurrava a sua própria escrita: “[...] tenho o sentimento de instâncias mudas da parte das coisas, solicitando que inalmente nos ocupemos delas, que as digamos [...]”.267 Para Francis Ponge, o objeto é um abismo e uma

ponte. Diante desse perigo de queda no vazio, dessa ameaça de descon- trole, a palavra vem para organizar, domesticar.

As placas museológicas são (re)produzidas a partir desse mutismo. O grande desaio está em assumi-lo. Não para lhe dar a palavra inal, mas no intuito de admitir que a escrita não é uma inscrição ditada pelos próprios objetos e sim uma maneira de circunscrever. Se assim se faz, a amarra entre a palavra e a coisa deixa se ser solução para se tornar questão. É por isso que a história dos objetos pressupõe uma história das palavras.

A palavra digniica o objeto — assim Gustavo Barroso pensava. É isso que dá para notar nas legendas que autorizava para o museu,

266 ORWELL, George. 1984. São Paulo: Editora Nacional, 1991, p. 53. 267 PONGE, Francis. Métodos. Rio de Janeiro: Imago, 1997, p. 85.

e, ainda mais, nas narrativas de viagem. Viajante, ele se faz autor de descrições que descambam para um romantismo que lembra José de Alencar e Victor Hugo. As pedras falam aos seus ouvidos, ou seja, pro- nunciam um dialeto que ele sabe decifrar. Trata-se de uma linguagem em camadas de tempo, mais ou menos veladas, mas passíveis de mani- festar algum resto de passado, ou melhor, algum acúmulo de tempo que dá ao presente uma sensação nostálgica e nobre.

Nas legendas que ele aixava nos objetos em exposição, também era possível ouvir as vozes dos inados. Nesse caso, a sua verve de narrador compulsivo diante da materialidade das coisas vinha de ma- neira mais tangencial, sobretudo nos seus “contos históricos” em torno da Guerra do Paraguai. No meio da trama, e dela fazendo parte, ele costumava informar que certo objeto que compunha o cenário descrito estava sob a guarda do Museu Histórico Nacional, pronto para ser devi- damente apreciado.

Mas ainda há outro lado da sua escrita inquieta em face dos ar- tefatos: a própria escrita da legenda, que não poderia seguir, de modo algum, o ritmo dos “contos históricos”. Aí, na letra que se põe diante do objeto, dando-lhe nome e importância, o que vale é ser breve, resumido ao máximo. A plaqueta deveria ser mais informativa e menos narrativa, mais descritiva e menos explicativa. Assim, ele parecia pressupor que o visitante já tivesse algum acúmulo de narrativas e explicações. Nesse raciocínio, caberia ao museu fornecer informações e descrições. A sua legitimidade como diretor passava pela autoimposição do dever autoral. Se não era ele quem sempre escrevia as plaquetas postas na exposição, ele nunca permitia uma escrita sem o seu aval. Era ponto de honra dizer que, no seu museu, jamais seria possível encontrar erros em um texto dado à leitura dos visitantes.