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A profundidade da superície

Em suma: uma questão de fundo. Fundo falso, ou melhor, falta de fundo. Autores como Gustavo Barroso ou Alexandre Herculano viam na assinatura do tempo mais uma prova do autêntico. Autêntico sig- niica quantidade de tempo. O tempo, então, está disponível na super- fície. Mas, há algo no fundo, dentro da matéria que se oferece ao olhar.

85 MORITZ, Karl Philipp. Viagem de um alemão à Itália: 1786-1788, nas cartas de Karl Philipp

Em princípio, algo que pode ser evocado em termos teológicos, como alma ou espírito. Mas insistir nessa ponte entre religião e romantismo não me parece adequado, sobretudo se há uma tentativa de perceber a relação entre cultura material e regime de temporalidade. Se o sagrado fosse decisivo para o romantismo, o romantismo não seria o berço do romance dito “histórico”. Aos olhos dos românticos, o fundo não revela eternidade. Pelo contrário, o que se abre à percepção é o tempo. Daí a pesquisa aliada à viagem. Pesquisar para viajar / viajar para pesquisar — assim viaja-se, também, pelo tempo. Dito de maneira mais simples: o tempo do fundo é o tempo narrado; o mistério incrustrado nos inters- tícios só existe na medida em que ganha formato narrativo. Narrar a matéria faz da matéria um pedaço de tempo.

O “culto da saudade”, apesar das várias semelhanças com o campo religioso, a começar pela ideia de cultuar, não se confunde com a veneração que se faz presente nos ritos sagrados. O “culto” pregado por Gustavo Barroso tem sua peculiaridade: é menos cultuar e mais cultivar. Em seu relatório sobre Ouro Preto para o Governo de Minas, Gustavo Barroso deixa muito clara a diferença entre a vida religiosa dos católicos e a vida profana dos objetos históricos. A questão é que os objetos de culto da Igreja Católica precisavam ser, também, objetos de culto da história. Somente com atributo sagrado, o objeto histórico corria o risco de ser violado: “O que vi se fazendo no Carmo é um crime e mostra que se não se deve coniar às irmandades o cuidado de restauração dos templos, e sim entregá-lo a quem entenda do assunto”. Gustavo Barroso icou sabendo que havia sido colocado um piso novo, em assoalho brilhoso com tacos de duas cores. O piso original fora removido porque estava com algumas partes carcomidas. Mas, a renovação gerou o protesto de alguns devotos. Até aí tudo bem, porque o erro poderia ser consertado, com a recolocação das velhas tábuas de braúna em forma de campas quadradas, com os respectivos números das antigas sepulturas, tal como era comum até meados do século XIX. A madeira que estivesse avariada seria substituída por uma nova, desde que fosse braúna e acompanhasse o desenho original das campas. O problema é que se teve a ideia de resolver o problema serrando os ve-

lhos tabuões coloniais em tiras estreitas — problema para Gustavo Bar- roso e não para os devotos, evidenciando que o culto não era o mesmo: “Ora, o tabuado de campas é característico do tempo em que a igreja foi construída e representa o uso dos enterros no sagrado, como se dizia, isto é, dentro do templo. É um crime tocar nisso”. Na sua concepção, até poderia ser feita, para segurar melhor as tábuas “com seus números sig- niicativos”, uma base de concreto. Ninguém a veria e “o aspecto conti- nuaria tradicional”. Em tom conclusivo, ele ressalta que o Governo não deverá gastar dinheiro com restaurações assim executadas. Mas, mesmo sem o apoio público, o patrimônio continuaria em risco. É por isso que ele não perdeu a oportunidade de exercitar a ironia: “Aliás, a igreja do Carmo tem urgente necessidade de outros consertos além do assoalho, embora seja a melhor conservada de Ouro Preto por ter alguma renda de apólices. Mas a irmandade gosta de um pouco de luxo”. Na igreja de São Francisco, o erro foi outro, mas igualmente lamentável. As portas, que deveriam ser enceradas, ou até envernizadas, foram pintadas. “É um crime” — Gustavo Barroso dispara mais uma vez.86

Fundo falso: superfície produzida artiicialmente. Sem fundo: superfície sem história, olhar ignorante. Os comerciantes que, por exemplo, deixaram José Lins do Rego revoltado, venderiam objetos de fundo falso, sem passado, porque foram forjados no presente, imitando antiguidades. As ironias de Garret, Eça e Twain parecem ignorar ou menosprezar a história, ou melhor, o fundo visível aos que conhecem algo do passado, tornando-o algo único. Por outro lado, a crítica desses autores parece ser mais cortante em face do turista: sem informação, ele mantém uma fé mais religiosa do que o intelectual. E, nesse ponto, todos são unânimes: o turista é um ser inferior, exatamente porque des- provido de dados. Gustavo Barroso, por exemplo, trata-o sempre com desprezo, como se vê no trecho citado a seguir:

86 BARROSO, Gustavo. Relatório dirigido ao Exmo. Sr. Presidente Antônio Carlos. Rio de Janeiro,

De pé no meio da praça do Hotel de Ville de Bruxelas, após ter visitado no seu interior os vestíbulos góticos forrados de venerá- veis lambris, as salas do Renascimento cheias de pinturas so- lenes e as galerias de cujos tetos artezoados, pendem ainda as sonolentas bandeiras das antigas corporações, examinava uma a uma as casas lamengas que a emolduram e são carinhosamente conservadas.

Dum lado, o velho e dourado Paço dos Duques do Brabante, o antigo sobrado chamado de Rômulo e Remo, com a Loba Ro- mana no pórtico, e a moradia de Victor Hugo. Doutro, os casa- rões dos Marítimos, dos Bordadores, dos Ourives, dos Arcabu- zeiros, dos Besteiros, dos Tecelões e de outros mesteirais que zelosamente guardavam foros e franquias, cartas de liberdade custosamente ganhas do século XIV ao século XV. Adiante, a rendilhada fachada da Casa do Rei, de onde saíram para subir o patíbulo espanhol os condes de Horn e de Egmont. Por im, a joia arquitetural do Hotel de Ville, onde o olhar se desvanece de estátua em estátua, de mísula em mísula, de lorão em lorão. Fui detidamente me deslumbrando em seus pormenores. Quando mais abstrato me achava, um vendedor de cartões-postais co- meçou com sua voz cantante e mecânica de cicerone a me ex- plicar a história mal decorada e pior estropiada do edifício mo- numental. Fez-me notar que a porta central e principal estava fora do eixo da torre, formando visível assimetria. Ao serem re- tirados os andaimes que entaipavam a construção, o arquiteto dera pelo erro e se atirara desesperado do eirado do torreão. E o impostor apontava um pedaço do calçamento da praça, acrescentando:

— Ali o corpo do pobre homem se despedaçou!

Sorri da lenda destinada à admiração inconsciente das inglesas velhas e à ignorância multiforme e espetacular dos turistas norte-americanos. Um nicho delicadamente cinzelado em pedra, colocado entre o umbral da porta e o cunhal da grande torre, provava-me o propósito do construtor. Os arquitetos góticos não cometiam erros tão grosseiros. O truque assimétrico fora delibe- radamente executado. Demonstrava-o amplamente aos meus olhos a assimetria de toda a imensa fachada, com duas alas divi- didas pela torre, absolutamente desiguais. Idêntica desigualdade de motivos, não de proporções, nos elementos decorativos das

duas partes, — capitéis, fustes, rosáceas, gárgulas. Os mestres de

pedra viva da Idade Média costumavam tirar efeitos especiais

desses aparentes desequilíbrios, feitos com tamanha perícia e arte que só um estudo minucioso da ediicação logra descobrir. Ao primeiro olhar, nada se nota, a simetria parece perfeita. Eu sabia disso e sorria do detestável cicerone que insistia em me impingir a canhestra invencionice. Para ver-me livre dele, meti- -lhe na mão uma placa belga de 50 cêntimos, horrendamente cunhada em estanho. O homem retirou-se com mesuras, balbu- ciando agradecimentos. Pude, então continuar em silêncio minha adoração diante daquele verdadeiro altar de pedra viva, de vivis

lapidus, como se dizia medievalmente.87

Em outros termos, o turismo é uma superfície falsa, sobre a qual anda um ser sem fundo: o turista. Turismo e turistas são as partes de- sagradáveis da viagem. A reclamação, aliás, tonou-se imprescindível. Em todo e qualquer relato, o recurso que distancia o relator dos outros viajantes o torna portador de uma sensibilidade que o faz especial e, portanto, capaz de relatar coisas que só ele pode perceber. Por outro lado, a vitalidade de mais uma imagem — de vivis lapidus. Também reclamando dos que não sabem por onde andam, ou pior, dos que não sentem por onde pisam, Michelet tornou-se referência — não somente para os românticos do século XIX, mas também para aqueles que, no século XX, continuaram a cultivar o romantismo, como é o caso, de Gustavo Barroso:

Esse colossal teatro do drama sacro, após sua linda gesta da Idade Média, mergulhou no silêncio e na sombra. A fraca voz que se escuta, a do padre, é impotente para preencher abóbadas cuja amplidão foi feita para acolher e conter a voz do povo. [...] Seu profundo simbolismo, que falava tão alto então, tornou-se mudo. É agora um objeto de curiosidade cientíica, de explica- ções ilosóicas, de interpretações alexandrinas. A igreja é um museu gótico que os doutos visitam: eles passeiam ao redor, ob-

servam irreverenciosamente, e aplaudem em vez de rezar. Sabem eles ao menos o que aplaudem? O que lhes causa encanto, o que lhes agrada na igreja, não é a igreja em si; será o trabalho deli- cado de seus ornamentos, a granja de seu manto, seu rendado de pedra, alguma obra laboriosa e sutil do gótico em decadência. Há algo de grande aqui, seja qual for a sorte desta ou daquela religião. O futuro do cristianismo não importa. Toquemos essas pedras com precaução, andemos cuidadosamente sobre essas lajes. Um grande mistério passou-se aqui. Dele não vejo mais que a morte, e sou tentado a chorar. A Idade Média, a França da Idade Média, exprimiram na arquitetura o seu mais íntimo pensamento. As catedrais de Paris, de Saint- -Denis, de Reims, atestam isso mais do que longas narra- tivas. A pedra se anima e se espiritualiza sob a ardente e se- vera mão do artista O artista faz brotar dele a vida. Com muita razão ele foi chamado na Idade Média: ‘O mestre das pedras vivas’. Magister de vivis lapidus. 88

88 MICHELET, Jules. História da França. p. 482 (Tomo II- Esclarecimentos). Apud BARTHES, Ro-