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Em certa medida, o passado é manipulável, ou sustentável, porque morreu, e vai morrendo ainda mais, na medida em que a his- tória se faz presente. Aliás, é exatamente isso que Michel de Certeau256

apresenta sobre a escrita da história: é uma maneira de dar túmulo ao passado e, dessa maneira, abrir espaço aos vivos. A abertura, como mostra Rosalinda, é tensa e não se separa das demandas do presente. Como disse Lucien Febvre, é em função da vida que a história “inter- roga a morte”.257

Imagino, assim, que os usos do passado guardam íntima relação com os modos de encarar a morte. Quando se faz a distinção entre passado e presente (uma das bases da ideia de progresso), é preciso deinir a fronteira dos ausentes, inclusive para aberturas e fecha- mentos diante do futuro. O caráter explicativo da história é, também, uma estratégia paciicadora, para colocar o caos de fragmentos no seu devido lugar. Lugar que, a partir da história cientíica, sempre deve explicações, que está sempre em débito e, por isso mesmo, abre as

256 CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982. 257 FEBVRE, Lucien. Combates pela história. Lisboa: Presença, 1989, p. 257.

mais variadas portas para as muitas maneiras de desenvolver relexão crítica. Por outro lado, a potência relexiva não elimina, apesar de sua tendência conlitiva, a acomodação de sentidos e mesmo a produção de esquecimento.

Sobre isso, não consigo evitar a sedução de citar Mário de Andrade, exatamente quando ele descreve a cena central do conto “Peru de Natal”. O pai estava ausente na ceia, ausência velada, incomodando, com sua igura cinza, “acolchoado no medíocre”. Era desprezível em vida e, depois de morto, continuava estragando o inal do ano. Estava ali, inado e como assunto proibido, uma questão sem solução e silen- ciosamente estridente.

Principiou uma luta baixa entre o peru e o vulto de papai. Ima- ginei que gabar o peru era fortalecê-lo na luta, e, está claro, eu tomara decididamente o partido do peru. Mas os defuntos têm meios visguentos, muito hipócritas de vencer: nem bem gabei o peru que a imagem de papai cresceu vitoriosa, insuportavelmente destruidora.

— Só falta seu pai...

Eu nem comia, nem podia mais gostar daquele peru perfeito, tanto que interessava aquela luta entre os dois mortos. Cheguei a odiar papai. E nem sei que inspiração genial, de repente me tornou hipócrita e político. Naquele instante que hoje me parece decisivo da nossa família, tomei aparentemente o partido de meu pai. Fingi, triste:

— É mesmo... Mas papai que queria tanto bem a gente, que morreu de tanto trabalhar pra nós, papai lá no céu há de estar contente... (hesitei, mas resolvi não mencionar mais o peru) con- tente de ver nós todos reunidos em família.

E todos principiaram muito calmos, falando de papai. A imagem dele foi diminuindo, diminuindo e virou uma estre- linha brilhante do céu. Agora todos comiam o peru com sensu- alidade, porque papai fora muito bom, sempre se sacriicara tanto por nós, fora um santo que “vocês, meus ilhos, nunca poderão pagar o que devem a seu pai”, um santo. Papai virara santo, uma contemplação agradável, uma inestorvável estre- linha do céu. Não prejudicava mais ninguém, puro objeto de

contemplação suave. O único morto ali era o peru, dominador, completamente vitorioso.258

De qualquer modo, isso é outra questão: a relação das imagens com a oralidade, que, assim como a escrita, cumpre papéis no sentido de organizar o passado em sintonia com necessidades do presente. Os ausentes, enim, dão trabalho. E os historiadores não podem desprezar esse trabalho que os ausentes necessariamente provocam.

Além de pensar a respeito da fé no passado, é preciso, então, investigar como a crença se sustenta, como constrói rituais, provas e ar- gumentos coniáveis. Na sua capacidade de ordenar vestígios, a história seria um ato de fé. Fé na potência desconcertante da crítica ou no poder construtivo do exemplo.

É com isso que Mia Couto faz sua icção: as crenças constitutivas do tempo, impregnadas na maneira de juntar e separar acontecimentos, como mostra a epígrafe do conto Rosalinda, a nenhuma:

É preciso que compreendam: nós não temos competência para arrumarmos os mortos no lugar do eterno.

Os nossos defuntos desconhecem a sua condição deinitiva: de- sobedientes, invadem-nos o quotidiano, imiscuem-se no terri- tório onde a vida deveria ditar sua exclusiva lei.

A mais séria consequência dessa promiscuidade é que a própria morte, assim desrespeitada pelos seus inquilinos, perde o fas- cínio da ausência total. A morte deixa de ser a mais incurável e absoluta diferença entre os seres.259

Mia Couto sabia que as dominações eram variadas, e o seu foco aproxima-se sobretudo das dominações e das resistências sobre o ato de memorar. Sua literatura está vinculada à atual “cultura da memória”, que institucionaliza defesas do passado, mas o seu enfoque também se alimenta de críticas aos poderes que procuram dominar os mundos

258 ANDRADE, Mário de. Contos novos. São Paulo: Marins, 1978, p. 101. 259 COUTO, Mia. Cada homem é uma raça. Lisboa: Caminho, 1990, p. 47.

africanos por meio de estratégias gerenciadoras de heranças e maneiras de lidar com o tempo. Os emplacamentos, ele sabe muito bem, não são inocentes. Estão incados em um ponto central: no lugar da crença. Não qualquer crença, mas exatamente aquela que dá sentidos ao tempo.

Por outras vias, o romance As intermitências da morte também enfoca os efeitos do nexo entre a lápide e o túmulo. Com a eliminação da morte, a procura de muitos passou a ser o direito de morrer, que foi conquistado quando se descobriu que, para além da fronteira, qualquer um poderia voltar a ser mortal, como nos velhos tempos. Mas, começou outro problema, a incomodar a “maphia” das agências funerárias:

Era simples. Disseram-lhe as famílias, quase sempre em meias palavras, dando só a entender, que uma coisa tinha sido o tempo da clandestinidade, quando dos entes queridos eram levados a ocultas, pela calada da noite, e os vizinhos não tinham precisão nenhuma de saber se permaneciam no seu leito de dor, ou se se tinham evaporado. Era fácil mentir, dizer compungidamente, Coitadinho, lá está quando a vizinha perguntasse no patamar da escada, E então como vai o avozinho. Agora tudo seria diferente, haveria uma certidão de óbito, haveria chapas com nomes e ape- lidos nos cemitérios, em poucas horas a invejosa e maledicente vizinhança saberia que o avozinho tinha morrido da única ma- neira que se podia morrer, e que isso signiicava, simplesmente, que a própria cruel e ingrata família o havia despachado para a fronteira. Dá-nos muita vergonha, confessaram.260

Do túmulo de Jacinto ao gato sem nome passando pelas placas de Aureliano Buendía, estão em cena enredos a respeito das possibilidades de (re)nomear. São testadas a fraqueza e a força das identiicações, em situações que não se reduzem a uma regra geral.

Tudo indica que há uma dependência da escrita para se chegar a certos contornos do objeto. Não se defende, com isso, uma centralidade inevitável e teleológica da escrita, até porque imagens e objetos pos- suem linguagens que são peculiares, com potências especíicas. Entre

palavra e imagem, foram constituídas muitas articulações e conlitos em uma complexa rede de dependências. Nesse sentido, a pequena placa de identiicação em um museu (ou qualquer outro lugar de me- mória) é uma maneira de delimitar campos de signiicação, que, além de direcionar leituras, indica a astúcia da letra diante do artefato.

Fala-se, atualmente, em discurso museológico, textos feitos não com palavras e sim com objetos, luzes, músicas, ambientações, ceno- graias. Mas tudo sempre vem de mãos dadas com as identiicações emplacadas. Nomes e mais nomes, a começar pelo nome do museu e da exposição. Por diversas razões, vinculadas sempre a certos posicio- namentos políticos e procedimentos interpretativos, o destino atual do patrimônio é ser cada vez mais emplacado.

Por outro lado, o desejo de informação que justiica e exige a presença de placas revela a própria ausência da memória. Assim como ocorrera com a doença da falta de sono em Cem anos de Solidão, a proliferação de placas em museus é sinal da ruptura entre o sujeito que quer saber e o objeto que já não é conhecido como antes. Não é à toa: mais lugares de memória podem signiicar mais esquecimento, como bem ressaltou Pierre Nora.261

O museu pressupõe que seu acervo está separado das memórias socialmente compartilhadas, por isso precisa de legendas, inventários, catálogos. Aliás, a relação entre aquilo que chamamos genericamente de “nosso patrimônio” e as placas de identiicação sempre denuncia que o patrimônio já não é nosso e talvez nunca tenha sido. Não escapou à Mário Quintana essa contradição da vontade mnemônica, como se vê em um texto-poema chamado “placas”: “Ah, meu pobre Coronel Emerenciano, quem sois vós? Quem sois vós, Dona Maurília, Renando Ivo? Altamirando Barbosa da Silva? Quem sois vós, com todos esses inúteis cartões de visita deixados teimosamente em cada esquina. Que vergonha, velhinhos... Essa coisa de a gente virar rua é uma forma pública de anonimato”.262

261 NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemáica dos lugares. Projeto História, São

Paulo, n. 10, p. 7-28, 1993.