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Tudo indicava que a vida icaria maior, porque todos teriam mais tempo com a falta de sono. A doença da insônia foi bem vinda, e Buendía chegou a dizer: “se a gente não voltar a dormir, melhor”. Melhor porque a vida, sem o intervalo da noite e sem o cansaço do dia, seria mais longa. É por isso que a “peste da insônia” foi bem vinda em uma das passagens de Cem anos de solidão.240

Como em vários outros trechos do livro, García Márquez enfren- tava a questão do tempo e da memória. A ausência do sono, que trouxe ge- neralizada alegria, “porque havia então tanto o que fazer em Macondo”, começou a trazer problemas: “trabalharam tanto que logo não tiveram mais o que fazer”. As madrugadas insones “com os braços cruzados” vieram acompanhadas de algo muito mais grave: o esquecimento.

239 SERRES, Michel. Júlio Verne: a ciência e o homem contemporâneo. Rio de Janeiro: Bertrand

Brasil, 2007, p. 167.

Foi Aureliano quem concebeu a fórmula que havia de defendê- -los, durante vários meses, das evasões da memória. Descobriu-a por acaso. Insone experimentado, por ter sido um dos primeiros, tinha aprendido com perfeição a arte da ourivesaria. Um dia, es- tava procurando a pequena bigorna que utilizava para laminar os metais, e não se lembrou do seu nome. Seu pai lhe disse: ‘tás’. Aureliano escreveu o nome num papel que pregou com cola na base da bigorninha: tas. Assim, icou certo de não esquecê-lo no futuro. Não lhe ocorreu que fosse aquela a primeira manifestação do esquecimento, porque o objeto tinha um nome difícil de lem- brar. Mas poucos dias depois, descobriu que tinha diiculdade de se lembrar de quase todas as coisas do laboratório. Então, marcou-as com o nome respectivo, de modo que bastava ler a inscrição para identiicá-las. Quando seu pai lhe comunicou o pavor por ter-se esquecido até dos fatos mais impressionantes da sua infância, Aureliano lhe explicou o seu método, e José Arcádio Buendía o pôs em prática para toda a casa e mais tarde o impôs a todo o povoado. Com um pincel cheio de tinta, marcou cada coisa com o seu nome: mesa, cadeira, relógio, porta, parede,

cama, panela. Foi ao curral e marcou os animais e as plantas: vaca, cabrito, porco, galinha, aipim, taioba, bananeira.241 Está aí uma questão fundamental: a letra como instrumento de memória. Não é sem propósito imaginar que as plaquetas de identii- cação de peças expostas em museus guardam certa semelhança com a solução encontrada por Buendía. Em museus ou no povoado de García Márquez, a escrita procura suprir a carência de memória. Mais do que isso porque, diante das coisas, as palavras não são apenas informativas. A nomeação dá sentido (e existência) ao que é nomeado. Em uma so- ciedade com memória coletiva comum, compartilhada, não haveria ne- cessidade de peças identiicadas, ou melhor, não existiria a necessidade de identiicar o que já era conhecido.

A narrativa continua e mostra que o remédio das plaquetas não foi suiciente. Quando tudo parecia estar resolvido diante da peste do esquecimento, veio outro problema. A doença aumentou, e ninguém

recordava mais a utilidade das coisas. A solução foi complementar os textos. As inscrições, além de identiicar, começaram a explicar. Na vaca, por exemplo, icou pendurado o seguinte letreiro: “esta vaca, tem- -se que ordenhá-la todas as manhãs para que produza o leite e o leite é preciso ferver para misturá-lo com o café e fazer café com leite”. A situação, pouco antes da chegada de uma substância milagrosa, icou tão crítica que Buendía passou a imaginar a construção da máquina da memória, uma espécie de dicionário giratório, para exibir noções gerais: “A geringonça se fundamentava na possibilidade de repassar, todas as manhãs, e do princípio ao im, a totalidade dos conhecimentos adquiridos na vida”.242

No calor da icção, o escritor testa o poder das palavras para ma- nipular as coisas. Assim, o autor faz uma relexão sobre sua autoria, realiza-se ao perseguir o seu próprio poder de nomear. Promovendo o encontro do escritor com a escrita, reconhece a fragilidade das inscri- ções. Ora, é nesse caleidoscópio de poder e fraqueza, de abundância e necessidade, que vai se compondo a trama de (de)pendências entre a palavra e o objeto. Nessa via, o início do livro é emblemático: “O mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nome e para men- cioná-las se precisava apontar com o dedo.”243

Está em jogo, então, a imposição da palavra diante dos objetos, a proposição da escrita para posicionar restos e vestígios em espaços de lembrança. Nesse sentido, será possível argumentar que, nos chamados “processos de musealização”, a palavra cerca o objeto, atribuindo-lhe uma existência especíica, para atender a certas demandas. Assim, é preciso levar em consideração a variedade de relações com o passado por meio de objetos, inclusive com graus variados de dependência diante da escrita, da oralidade ou de outros objetos.

Cem anos de solidão preocupa-se, portanto, com uma determi- nada maneira de nomear, que fez e faz da escrita um “lugar fundamental” no Ocidente. Como ressalta Foucault, o chamado “Renascimento”, que

242 MÁRQUEZ, Gabriel García. Cem anos de solidão, p. 51. 243 MÁRQUEZ, Gabriel García. Cem anos de solidão, p. 07.

testemunha o desenvolvimento da imprensa, alimenta certos valores atribuídos ao texto: “Doravante, a linguagem tem por natureza primeira ser escrita”. A voz será algo transitório e precário. Ainal, Deus deixara para os homens as suas palavras por meio da escrita: “[...] a Lei foi coniada a Tábuas, não à memória dos homens; e a verdadeira Palavra, é num livro que a devemos encontrar.”244

Apropriar-se é fragmentar e, para separar, é preciso nomear. Com a explicitação desse processo, Barthes analisa a “vontade de inventário” constituída na tessitura da Enciclopédia. De certa maneira, Barthes cor- robora com as investidas de Foucault no sentido de perceber a centra- lidade da escrita para os modernos. Também citando a Bíblia, Barthes adverte que, no planto mítico, a posse do existente não tem início no Gênesis. O começo da apropriação mundana estaria no Dilúvio, “quando o homem foi obrigado a nomear cada espécie de animal e alojá-la, isto é, separá-la de suas espécies vizinhas”.245

O estudo de Barthes não é propriamente sobre a escrita da Enciclopédia, e sim sobre as pranchas. O seu comentário sobre o uso da vinheta pode ser perfeitamente adequado para se perceber a função da placa museológica. Esse tipo de escrita, admite Barthes, “transmite sossego, segurança”. Por outro lado, as iguras da Enciclopédia podem confundir, coisa que os objetos expostos em museus também costumam fazer: “[...] logo que se abandona a vinheta para passar às pranchas ou iguras mais analíticas, a ordem tranquila do mundo ica abalada em proveito de certa violência”. O que se conclui, então, é que o mundo nomeado nunca permanece seguro: “o próprio espírito analítico, arma da razão triunfante, não pode fazer mais que reproduzir o mundo ex- plicado por um mundo a explicar”. Além disso, há um “processo de circularidade ininita que é o do dicionário onde a palavra não pode ser deinida senão por outras palavras”.246

244 FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. São Paulo: Marins Fontes, 1999, p. 53 245 BARTHES, Roland. O grau zero da escrita. São Paulo: Marins Fontes, 2000, p. 114. 246 BARTHES, Roland. O grau zero da escrita..., p. 129.